Leonardo Castello Branco

                         [Reginaldo Miranda - da Academia Piauiense de Letras]

Foi um paladino da liberdade que liderou tropas na Guerra do Fidié, quando o bravo povo piauiense levantou-se em armas para libertar-se do jugo português e garantir sua adesão à Independência do Brasil. Também envolveu-se na Confederação do Equador, protestando contra o centralismo do poder monárquico no nascente Império. Vencido em ambos os embates, foi duas vezes preso e encarcerado, mas nunca esmoreceu em seu ânimo varonil. Foi também um visionário, cujo sonho foi a construção do moto-contínuo, nele empregando toda a laboriosidade de sua longa existência, inclusive quatorze anos de estudos em Portugal e seis no Rio de Janeiro.

Filho de família abastada perdeu quase todo o seu patrimônio nesses estudos e na perseguição dessa ideia fixa. É como disse o muito vivo defunto Brás Cubas, pela pena de Machado de Assis: “Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa!”. Leonardo consumiu seu tempo nesse sonho tresloucado de fazer ciência no sertão do Piauí colonial, o que se lhe apresentou inviável. Era um mundo prático em que ninguém tinha tempo para atividades fora das lides agropecuárias. Por isso, a fala e a luta desse idealista foi recebida com reservas por seus pares, só lhe restando o caminho da Europa.

Nascera na fazenda Taboca, à margem esquerda do rio Longá, no Município de Parnaíba, depois Barras, hoje Esperantina, em 1788. Provavelmente, no dia 6 de novembro, consagrado no calendário cristão a São Leonardo de Noblac, um dos santos mais populares da Europa central. Seus pais eram ricos proprietários, o baiano de Jacobina Velha, radicado no Piauí, Miguel de Carvalho Castelo Branco e a piauiense Ana Rosa Clara Castelo Branco, todos descendentes de velhas estirpes. Foram avós paternos o capitão-mor Antônio Carvalho de Almeida, português radicado na Bahia e depois no Piauí, e D. Maria Eugênia de Mesquita Castelo Branco; maternos, o coronel Francisco da Cunha e Silva Castelo Branco, importante fazendeiro e chefe político da vila de Campo Maior, e D. Ana Rosa Pereira Teresa  do Lago, também natural de Jacobina Velha, na Bahia.

Leonardo de Carvalho Castelo Branco viveu a infância e mocidade na casa paterna, alternando os banhos no rio Longá, as armadilhas para pegar passarinhos e outras peraltices de criança de fazenda, com os ensinamentos e leituras orientados pelo pai, que fora educado em colégio dos padres jesuítas, na Bahia. Consta que recebeu educação esmerada, estudando com o genitor noções elementares de português, latim, geografia, física e matemática. Quem assim afirma é seu parente Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco(2.º), traçando-lhe a biografia em 1879, seis anos após o óbito do biografado. Deve ter estudado com outros mestres da época, na própria fazenda, conforme o costume, completando o resto como autodidata. Desde cedo mostrou inteligência invulgar, dando-se à leitura constante de forma a adquirir sólida formação intelectual.

Mal atingiu a maioridade, casou-se com Judite da Mãe de Deus Castelo Branco, de cuja união teve nove filhos, sendo seis do sexo feminino e três do masculino, entre esses o poeta Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco, cognominado “Poeta caçador”. Foi seu neto o festejado poeta Hermínio de Paula Castelo Branco, autor da Lira sertaneja. Ao casar-se em 1807, fundou as fazendas Lagoa Grande, hoje Lagoa da Caiçara, e Limpeza, no atual Município de Esperantina, sendo só o que se lhe conhece de atividade prática.

Elegeu-se eleitor de paróquia, representando a vila de Parnaíba no colégio eleitoral. Nessa qualidade, em 1821, compareceu em Oeiras, capital da capitania de São José do Piauí, para votar na eleição dos representantes do Piauí perante as cortes portuguesas. Foram eleitos Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco(1.º) e Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, declinando este e em seu lugar assumindo o suplente, Pe. Domingos da Conceição. Durante sua permanência em Oeiras, causou sensação ao divulgar suas ideias liberais e recitar bela poesia para distinta plateia, onde deu mostras de sua inteligência e cultura.

No entanto, no ano seguinte iria notabilizar-se ao ombrear com os idealistas da Parnaíba no movimento da Independência. Residindo na fazenda Limpeza, estava em perfeita sintonia com o Dr. João Cândido de Deus e Silva e outros líderes do movimento naquela vila litorânea, confabulando permanentemente. Em 19 de outubro de 1822, aqueles proclamaram a adesão da vila de Parnaíba à Independência do Brasil, seguindo a política do príncipe regente e o sonho de liberdade. Porém, com a marcha de João José da Cunha Fidié, português, governador das armas do Piauí, para abafar o movimento sedicioso naquela vila, os exaltados nacionalistas da causa brasílica tiveram de fugir para as vilas de Granja e Sobral, no Ceará.  Tal era o comprometimento de Leonardo Castelo Branco com aquele movimento que, também, sentiu-se ameaçado e, assim, foi ao encontro dos líderes parnaibanos no Ceará, unindo sua sorte à deles. Ali, no curto período de exílio, confabulavam e armavam a estratégia de revanche. Em Viçosa, conseguem convencer e arregimentar homens para formar uma considerável tropa, que organizou em duas divisões, ficando uma sob o comando de Leonardo Castelo Branco e outra sob o comando do capitão José Francisco de Miranda Osório, outro bravo paladino da mesma causa.

Liderando seu contingente, Leonardo Castelo Branco entra no Piauí dia 22 de janeiro de 1823, lançando-se sobre Piracuruca, onde surpreende e aprisiona a guarnição que Fidié ali deixara para garantir-lhe a retaguarda. Embalado pela fácil vitória, dois dias depois redige manifesto aos povos do Piauí e Maranhão, conclamando-os à causa. Esse manifesto, mais tarde, seria utilizado como peça processual na ação penal que se lhe moveram.

De Piracuruca, marchou sobre a vila de Campo Maior, onde chegou a 1.º de fevereiro, sendo recebido apoteoticamente. Depois de conferenciar com os líderes da comunidade, entre esses muitos parentes, proclama a adesão da vila à causa da independência em 2 do mesmo mês, não sem antes efetuar algumas prisões de elementos lusitanos. No dia seguinte, dirige manifesto à câmara municipal e ao comando militar de Caxias, próspera vila maranhense, informando dos acontecimentos do Piauí e conclamando-os a também aderirem. Era o líder que se afirmava em ação.

Consolidada, assim, a ação em Campo Maior, retorna a Piracuruca,“onde havia deixado parte das forças que trouxe de Viçosa”, diria ele em carta, mais tarde, levando-a para a fazenda Melancias, à margem do Parnaíba, defronte do porto maranhense de Repartição, onde estabelece quartel. Então, tentando aliciar as autoridades maranhenses à mesma causa, a fim de evitar a guerra civil, diria ele, “dirigi-me depois à vila do Brejo dos Anapurus, levando apenas três soldados, com o fim de me entender com o comandante geral daquela vila, Severino Alves de Carvalho, e persuadi-lo a aderir à causa do Brasil”. Foi, porém um plano mal avaliado, pois “ao passar o rio Parnaíba, o oficial que guarnecia o respectivo porto (José Antônio Correia) prendeu-me (a 1.º de março) e conduziu-me, na garupa do animal que cavalgava, para a vila do Brejo, de onde fui logo remetido para o Maranhão, dizendo-se na parte oficial dirigida ao governo daquela província, que eu era o homem mais perigoso do Piauí!”, disse ele.

Conduzido para São Luís do Maranhão, foi recolhido à prisão do Forte de Santo Antônio da Barra, na Ponta da Areia, onde aguardou o trâmite do processo criminal conduzido pelo ouvidor do crime, Des. José Leonardo da Silva e Sousa, sendo condenado como faccioso e fervoroso chefe do partido da independência. Com o fim do processo foi enviado para Lisboa a bordo do brigueSociedade Feliz, chegando em fins de maio e encarcerado na cadeia do Limoeiro em 2 de junho de 1823. Porém, para sua felicidade, registrou ele:  “na prisão fui muito socorrido pelo deputado do Piauí Dr. Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco, e pelo coronel maranhense Honório José Teixeira, que então se achavam em Lisboa”.

Foi, porém, de curta duração a sua prisão porque logo mais D. João VI entra em Lisboa acompanhado de alguns regimentos de cavalaria, dissolvendo as cortes e retomando a plenitude do poder. Por decreto de 6 de junho daquele ano indulta todos os presos políticos. Então, Leonardo pleiteia a sua soltura, que lhe é concedida em 22 de julho, por acórdão da Relação de Lisboa. A essa altura, havia muito rezado e se apegado a vários santos, inclusive com a soltura, modificando seu nome, em pagamento de promessa, para Leonardo da Senhora das Dores Castello-Branco.

Depois de alguns acertos regressa ao Brasil via Pernambuco, onde se demora alguns dias, sendo recebido com especial atenção pelo presidente Manuel de Carvalho Paes de Andrade, eleito provisoriamente, depois da renúncia de Francisco Paes Barreto, em 13 de dezembro de 1823 e confirmado em 8 de janeiro seguinte, à revelia do poder central. Então, dirige-se à Bahia, onde pretendia entender-se com o governo local a respeito da causa da independência no Piauí, que ele ainda supunha em guerra contra Fidié, quando foi, então, inteirado dos recentes acontecimentos em sua terra natal.

Satisfeito com a boa nova recebida, retorna ao Piauí, chegando ao seio da família um ano depois de violentamente arrancado por força das armas. Entretanto, não chega nem a descansar, porque em 2 de julho de 1824, o referido Paes de Andrade, apoiado por Frei Caneca e outros líderes, proclama a Confederação do Equador, unindo Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará contra o centralismo do poder monárquico. Pretendiam convocar uma nova assembleia constituinte para a elaboração de uma Constituição de caráter liberal, diminuir o centralismo político e acabar com o tráfico negreiro. Novamente, Leonardo Castelo Branco entra em concerto com os idealistas da Parnaíba e adere a essa nova causa. Aqueles proclamam a adesão da vila de Parnaíba, este a da vila de Campo Maior.

Porém, o movimento é sufocado em Pernambuco e nas demais províncias rebeladas, com a prisão dos líderes, inclusive fuzilamento de Frei Caneca e Padre Mororó. No Piauí, foram presos e encarcerados em Oeiras, José Francisco de Miranda Osório e Leonardo da Senhora das Dores Castelo Branco. Depois de um ano no cárcere, este último foi enviado para São Luís do Maranhão, onde, depois de alguns novos dissabores, alcançou a liberdade, retornando ao Piauí; porém, triste, amargurado, bastante desiludido da política.

Mas o seu sonho, o grande sonho que o embalou por toda vida, desde a mocidade, foi a construção do moto-contínuo. Nele empregou quase toda a fortuna herdada de seus ancestrais e a laboriosidade de sua vida, cujas incursões pela política foram meras atividades intermitentes. Passou noites insones estudando, pensando, planejando a construção de uma máquina que gerasse energia, a partir de seu próprio movimento. A partir de 1860, já septuagenário, doente, com sinais de senilidade resolveu pôr em prática o conhecimento adquirido nos anos de estudo, temendo morrer sem ver a realização de seu sonho e iniciou a construção de uma enorme máquina de madeira que dizia ser o tal moto-contínuo Nessa atividade infrutífera empregou os últimos treze anos de sua vida.

Mas voltemos um pouco no tempo. Recuemos ao ano de 1833, quando, desiludido com a atividade política, volta-se completamente aos estudos e à realização da ideia fixa. Desejando aprimorar o conhecimento, nesse ano viaja para Lisboa, a fim de estudar mecânica, astronomia e ciências em geral, demorando-se ali quatorze anos. Para isso hospeda-se inicialmente na casa do conselheiro Antônio de Menezes Vasconcellos de Drummond, ministro plenipotenciário do império naquela corte e admirador do trabalho do piauiense.

Em Lisboa, ainda que de forma aleatória, sem escola formal, aprofundou os estudos de mecânica, lendo tudo que lhe caía às mãos, entabulou grandes projetos e publicou alguns livros. O escritor Inocêncio Francisco da Silva, que o conheceu aí pelo ano de 1839, depõe: “parece-me ser excelente pessoa, mui afável e sincero no seu trato, divisando-se apenas tal qual excentricidade, quando mui seriamente expunha e analisava as suas invenções e descobertas mecânico-astronômicas”(SILVA, Inocêncio Francisco da. Dicionário Bibliográfico Português. 1860. P. 175. Apud CASTRO, Valdemir Miranda de. Leonardo e seus poemas religiosos. In: CASTELO BRANCO, Leonardo da Senhora das Dores. O santíssimo  milagre. 2.ª Ed. Coleção centenário 16. Teresina: APL, 2013).

Nesses quatorze anos de estudos em Lisboa(1833 – 1847), deu à estampa as seguintes obras: O ímpio confundido ou Refutação a Pigault Le Brun, primeiro canto(Lisboa: Tipografia A. J. S. de Bulhões, 1835); O ímpio confundido ou Refutação a Pigault Le Brun(Lisboa: 1836), em três cantos, constituindo reedição ampliada da primeira; O ímpio confundido, em três cantos(Lisboa: Tipografia da Viúva Silva e Filhos, 1837), sendo esta uma reimpressão da segunda edição, tratando-se de poemas filosóficos onde o autor tenta demonstrar, pela filosofia e pela história, a existência de Deus e a verdade da religião católica, refutando a obra contrária de um escritor francês; O santíssimo milagre, canção (Lisboa: Tipografia Carvalhense, 1839), composta em quadras líricas para o gosto popular; O santíssimo milagre, poema (Lisboa: Tipografia Carvalhense, 1839), versando sobre o mesmo tema da anterior, porém na forma épica, exaltando a história da vila portuguesa de Santarém e de um milagre da hóstia sagrada que ali ocorrera, tendo sido esses dois últimos reeditados em 2013 pela Academia Piauiense de Letras, em volume único (Coleção Centenário 16); Memória que contém a sexta parte da obra intitulada ‘Tesouro Descoberto no Rio Máximo Amazonas’, da autoria do jesuíta João Daniel, manuscrito inédito(Lisboa: IHGB, 15.05.1841); Memória acerca das abelhas da província do Piauí no Império do Brasil(Lisboa, 1842), manuscrito do IHGB; e, Astronomia e mecânica leonardina(Lisboa: Tipografia de G. M. Martins, 1843), de que foram publicados apenas alguns fragmentos.

Afora essas duas últimas de caráter histórico, Leonardo Castelo Branco cultivou em suas obras o poema épico de temática religiosa, composto em versos brancos de dez sílabas poéticas, com tônica na sexta e na décima, chamados decassílabos poéticos ou heroicos. É um árcade tardio, com influência e temática nitidamente portuguesa, só tendo esses poemas de piauiense a origem do autor.

Dois de seus principais biógrafos, Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco e Clodoaldo Freitas, no que são seguidos mais recentemente por Monsenhor Joaquim Chaves, informam que ele somente retornou de Portugal em 1850, depois de 17 anos afastado da família. Contudo, é certo que ali ainda estava em 1845, quando elaborou um parecer a respeito de um discurso dum escritor luso-paraense, mas já estava em São Luís do Maranhão em 1847, quando ali publicou o mesmo parecer. Provavelmente, mandou-o publicar quando de sua chegada pelo porto daquela cidade. Trata-se do Juízo, ou Parecer dado em Lisboa em 1845 a pedido de hum diplomático brasileiro, sobre o discurso do senhor Tenente Coronel d'artilharia, Antonio Ladislau Monteiro Baena, dirigido ao Instituto Histórico do Brazil(Maranhão: Typ. Cons. de I. J. Ferreira, 1847; 32 páginas).

O caso gerou polêmica com a resposta dada pelo militar, geógrafo e historiador Baena, autor de interessantes obras sobre o Pará. Nos Anais daBiblioteca Nacional do Rio de Janeiro(1881 – 1882), volume IX(Rio de Janeiro: Tipografia de G. Leuzinger & Filhos, 1881), consta referência àquele parecer e a esta outra publicação: Carta reversal ao Ilmo. Sr. Leonardo da Senhora das Dores Castello Branco(por Antonio Ladislau Monteiro Baena) sobre alguns lugares de um pequeno Folheto, acompanhada de uma carta dirigida a Antonio Ladislau Monteiro Baena(pelo mesmo Leonardo da Senhora das Dores Castello Branco) (Oeyras do Piauhy: Typographia Saquarema, 1849; 26 pag).

Ainda em 1849, adquire auxílio do governo provincial no valor de cinco contos de réis para construir uma barca de novo maquinismo, destinada à navegação no rio Parnaíba, como sempre sem qualquer resultado prático.

Sempre inquieto, depois de algumas experiências fracassadas resolve buscar ajuda financeira para a construção de sua sonhada máquina, cujo projeto estava delineado. Então, no ano de 1851 viajou para o Maranhão(São Luís), de onde seguiu para a Bahia(Salvador), demorando-se ali por quase dois anos em estudos e experiências. Em 1853, parte para o Rio de Janeiro para entender-se com o ex-presidente da província do Piauí, José Antônio Saraiva que acabara de ser eleito deputado à Assembleia Geral pelo Partido Liberal(1852). E por intermédio deste, que o conhecia do Piauí, teve audiência com o imperador D. Pedro II, que, sempre animoso do estudo e da ciência, franqueou-lhe no Arsenal da Marinha os meios de que necessitava para a construção de sua inexequível máquina do moto-contínuo, que em nada resultou.

É que esse moto-contínuo ou máquina de movimento perpétuo(perpetuum mobile), era cientificamente inexequível, ao menos para a ciência da época e de hoje, constituindo-se numa máquina que reutilizaria indefinidamente a energia gerada por seu próprio movimento, fornecendo ao exterior mais energia do que aquela que consome e, dessa forma, geraria  movimento a partir do nada. Isso contraria as leis da termodinâmica, embora ainda hoje haja quem se volte ao assunto, tentando mostrar o erro de Isaac Newton(1643 – 1727) ao formular suas leis que norteiam a física.

Durante sua estada no Rio de Janeiro, publicou em 1856 o poema A criação universal, ora reeditado, de que logo mais teceremos alguns comentários. Todavia, embora tenha pleiteado ao governo geral e provincial, não conseguiu verba para a publicação de outro livro, Mecânica astronômica, de que só se conhecem alguns fragmentos.

Por fim, fracassado em seus experimentos, retorna ao Piauí, via marítima pelo Maranhão, onde chega em 1859, depois de 8 anos de ausência. Desde então, até o óbito trabalha incessantemente na construção de uma engenhoca de madeira que dizia ser o moto-contínuo e lhe consome os últimos treze anos de vida.

Leonardo da Senhora das Dores Castello-Branco foi um visionário, um obsessivo, que consumiu toda a sua vida em busca de um sonho até agora fisicamente inexequível. Sua obsessão beirou as raias da demência, tendo abandonada mulher e nove filhos, muitos ainda pequenos, para viver sozinho quatorze anos na Europa. Mal chegado, convive quatro anos com a família e torna a entrar no mundo onde passa mais oito anos ausente. Por fim, ao retornar definitivamente ao seio da família, que sempre o recebeu com carinho, velho e doente, isola-se alheio a todos na construção do tal moto-contínuo, consumindo os últimos recursos da família e os últimos anos de vida.

A Academia Piauiense de Letras, em convênio com o Senado Federal, ora reedita o livro A criação universal, publicada há quase cento e sessenta anos e desde muito clamando por reedição. É um poema épico religioso dividido em seis cantos, segundo a ordem da criação, conforme o livro do Gênesis, contendo 4.247 estrofes. Segundo o autor, é uma obra de caráter científico, em que descreverá em forma de verso ou cousa que o pareça, a criação universal narrada por Moisés, explicando-a filosoficamente. Clodoaldo Freitas, um dos primeiros a exercitar a crítica literária entre nós, foi rigoroso em seu julgamento, influenciando outros escritores que sempre o repetiram, sem conhecer a obra cuja edição resumida cedo desapareceu de livrarias e mesmo das bibliotecas, gerando dificuldades até mesmo para reeditá-la. Para proporcionar a presente reedição foi necessário recorrer ao acervo da Biblioteca Nacional de Portugal, vez que não se localizou qualquer exemplar no Brasil. Segundo aquele crítico, o poema é “ilegível, sem elevação de estilo, sem arte, cheio de puerilidades. Não tem uma página, uma linha que possa merecer a posteridade. Tudo nele é prosaico e chato” (Freitas, Clodoaldo. Vultos piauienses. 3.ª Ed. Coleção Centenário 4. Teresina: APL/EDUFPI, 2012; p. 82).

Todavia, devemos receber com reservas esse rigoroso julgamento feito pelo primeiro presidente de nossa academia, porque externa a sua própria visão de mundo, sua crença positivista, para quem somente pode-se afirmar a comprovação de uma teoria se ela for provada cientificamente, desprezando-se o conhecimento advindo de religiões, crenças e superstições, que, a seu juízo, não colaboram para o desenvolvimento da humanidade. Portanto, essa arraigada crença de Leonardo Castelo Branco no catolicismo e seus dogmas, deve ter-lhe causado reservas. E Castelo Branco era essencialmente católico, a ponto de mudar o nome para homenagear a Virgem Maria e direcionar a sua escrita para exaltar o catolicismo e a preponderância de Deus na criação do mundo, compondo uma verdadeira trilogia épico-católica: O ímpio confundidoO santíssimo milagre e A criação universal.

De toda sorte, Clodoaldo também soube reconhecer: “Seja como for, Leonardo das Dores, pelo seu trabalho indefeso, pelos seus estudos, pela sua obra sobre mecânica, não é de todo um nulo e bem poderia ser, se a tivesse publicado, que fosse um benemérito da ciência. Ele dorme esquecido o sono da morte. A posteridade, infelizmente, ratifica o juízo dos coevos com relação a seus trabalhos científicos e literários; mas deve honrar a sua memória como patriota que trabalhou denodadamente e sofre gloriosamente pela nossa independência, cumprindo, como nenhum outro contemporâneo, seus deveres de cidadão através de tremendos padecimentos físicos e morais, sem ter jamais recebido, por tudo quanto fez, a mínima recompensa” (FREITAS, Clodoaldo. Vultos piauienses. 3.ª Ed. Coleção Centenário 4. Teresina: APL/EDUFPI, 2012. P. 89).

Faleceu esse ilustre piauiense em 12 de julho de 1873, no sítio Barro Vermelho, sendo sepultado no cemitério da fazenda Limpeza, ambos naquele tempo pertencentes a Barras, hoje a Esperantina. E a Academia Piauiense de Letras, fazendo-lhe justiça, reedita a obra para resgate da memória e conhecimento dos contemporâneos.

 

* REGINALDO MIRANDA, éadvogado, escritor e membro da Academia Piauinse de Letras.

** Excerto do livro inédito a ser brevemente lançado pela Academia Piauiense de Letras: MIRANDA, Reginaldo. Piauienses notáveis. Teresina: APL, 2017.

Bibliografia:

 

CHAVES, Mons. Joaquim. Obra Completa. 2.ª Ed. 2.ª Reimpressão. Teresina: FCMC, 2013.

CASTELO BRANCO, Miguel de Sousa Borges Leal. Apontamentos biográficos de alguns piauienses ilustres de outras pessoas notáveis que ocuparam cargos importantes na província do Piauí. 2.ª Ed. Coleção Centenário 3. Teresina: APL/Senado Federal, 2014.

CASTRO, Valdemir Miranda de. Leonardo e seus poemas religiosos. In: CASTELO BRANCO, Leonardo da Senhora das Dores. O santíssimo milagre. 2.ª Ed. Coleção centenário 16. Teresina: APL, 2013.

FERREIRA, Edgardo Pires. A mística do parentesco – uma genealogia inacabada. Vol 5. Os Castello Branco e seus entrelaçamentos familiares no Piauí e Maranhão. 2.ª Ed. São Paulo: ABC Editorial, 2013.

FREITAS, Clodoaldo. Vultos piauienses. 3.ª Ed. Coleção Centenário 4. Teresina: APL/EDUFPI, 2012; p. 82).

PINHEIRO, João. Literatura piauiense – escorço histórico. 3.ª Ed. Coleção Centenário 11. Teresina: APL, 2014.