LENDO PULANDO NUVENS
Por Cunha e Silva Filho Em: 04/11/2016, às 10H31
“Meu Deus, creio que estais aqui presente!"
Cunha e Silva Filho
Será, leitor, que existe crítica literária para certos livros? Digamos, assim, para a Bíblia Sagrada, para As confissões, de Santo Agostinho (354 d.C- 430 d.C), e para outras obras superiores da cultura universal? Sim e não, não importa. O que releva é a sua grandeza. Livros há que são forjados por inteiro pelo universo fabuloso das subjetividades e sobretudo no terreno das afetividades, lexema do campo semântico que tanto peso tem na obra ora lançada, que é Pulando nuvens (Teresina: Bienal Editora, 2016,148 p), do jornalista e escritor Zózimo Tavares, piauiense de coração, mas nascido no Ceará.
A pergunta acima não é uma blague, mas uma constatação que me inclina mais para o não, visto que, no domínio literário, o que prevalece é a qualidade da linguagem e o sentido específico de como o tema foi trabalhado artisticamente pelo autor. Formalmente, o livro é ousado na sua construção e me lembra logo de cara uma estratégia, tão bem entrevista numa ensaio “A ciranda da malandragem” de Jesus Antônio Durigan acerca da escrita do contista João Antônio (1937-1996), na qual o ficcionista não só se vale da imaginação - espaço do domínio da ficção, da mimese -, mas do que lhe oferece a vida, a realidade que, no caso do livro, são textos que se contextualizam e se unificam ao mundo de esperanças e de anseios de Daniel, jovem sintonizado com os modos de vida e os costumes saudáveis de sua geração.
Deste modo, se inserem, de maneira alusiva, ao texto geral dos relatos o capítulo inicial de Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva, uma letra de música de Gabriel, o Pensador, o soneto “Amarante” de Da Costa e Silva (1885-1950), um excerto de uma peça teatral de Ariano Suassuna (1927-2014), um famoso fragmento poético de Gonçalves Dias( 1823-1864), um fac-símile do poema “O menino que descobriu as palavras,” de autoria de Cinéas Santos e Gabriel Archango ,marcado por Daniel a lápis e com as respostas escritas à mão, um fac-símile de um “manifesto redigido à mão, dirigido aos condôminos de um prédio e reivindicando liberdade e respeito aos direitos de brincar no espaço comum do moradores. O nomezinho de Daniel (p.34) aparece no espaço reservado aos subscritores, assinalado à mão, um texto de um jovem que sabe expressar-se literariamente, como o Dilson Tavares, irmão de Daniel Tavares,este último assunto nuclear da obra de Zózimo.
Escreve sobre si mesmo e principalmente sobre Daniel. Ao mesmo tempo busca em outros textos complemento de sua inquietação extravasada belamente, harmoniosamente, no texto em seu todo, gerando uma unidade de sentido e verossimilhança narrativa, ao fazer convergir outra vozes que, ao cabo, se confundem e de alguma forma, mutatis mutandis, se equivalem.
Ora, construir uma obra assim exige esforço e criatividade, porquanto, na ficção, ou no gênero híbrido em que se materializa este livro, misturando memórias, textos alheios, inserções autorias compatíveis no campo da linguagem literária, inclusive a parte referente aos textos virtuais, em forma de anexo ao texto geral da obra só a vivificam ainda mais.
Na realidade, decorre desses recursos do autor a qualidade do texto. O exemplo mais ilustrativo dessa singularidade textual, dessa recolha de textos diversos mas que tenham direta ou indiretamente ligação cultural com a vida de Daniel Tavares, é haver Zózimo Tavares pinçado o tocante texto, acima citado, “Daniel mano” (p. 115) escrito para servir, como título e, a meu ver, como metáfora do livro e do seu personagem principal, Daniel Tavares, um jovem que, aos 21 anos, filho do autor, com toda as esperanças de uma vida vitoriosa, é de repente, pelos insondáveis arcanos da vida terrena, afastado de nós mortais.
Zózimo Tavares, jornalista piauiense tarimbado, de estilo objetivo, contudo não destituído de uma profunda sensibilidade que, por vezes, alcança as fontes do lirismo, como seria exemplo, entre outros no livro, aquele trecho em que ele, menino, em Água Branca, Piauí, avistava, da calçada da igreja, na distância, aquele tempo católico que lhe parecia cada vez maior à medida que dele se aproximava, situação tão bem expressa da perspectiva da memória e linguagem infantis: “Chega dava tontura!” (“De volta ao começo,” primeira seção, p. 21).
Pulando nuvens é mais um livro sobre a vida, e não sobre a morte, pela vida pulsando delicadamente na memória do autor e cobrindo todas as lembranças tenras, guardadas no fundo do coração do escritor. É uma narrativa que se propõe provocar, na sensibilidade dos leitores, o compartilhamento dos deliciosos momentos da presença querida desse jovem belo, forte, amante da vida intensa e de todas as alegrias que a existência pode propiciar a quem sabe amá-la com o peito aberto às amizades, aos amores de juventude, às predileções culturais, seja na música, no teatro, na dedicação ao parkour, à arquitetura e às passarelas, no campo da imagem publicitária, na vida familiar. E que exemplo de bem-aventurança familiar nos dá o autor, até mesmo no sentido pedagógico de um pai extremoso, responsável e intensamente amoroso de sua família!.
Tudo isso é muito bem relatado pela voz paterna que, ao contrário de outros autores, não faz da tragédia familiar um oceano de lamúrias, mas conserva, no limite do possível, resguardar o que de vivo e amado o filho lhe deixou. O espírito do livro se bifurca entre as recordações do autor e as do filho trazido ao texto pela força da linguagem que sustenta a narrativa através da exaltação à vida – urge sublinhar - suscitada pelas múltiplas e preciosas recordações do filho vivo, falecido precocemente em acidente ao pular da ponte sobre o rio Longá, em Esperantina, interior piauiense.
Em algumas passagens do livro não há como não se comover até às lágrimas diante de situações que são verdadeiros modelos de amor, de amizade, de solidariedade, entre o autor e o filho,ou entre o autor e a família. Confesso que, durante a leitura desse livro de afetividades – repito - lamentei não ter conhecido e abraçado (o abraço forte desse menino-gigante), esse rapaz que, no verdor dos anos, admirado pelos amigos e por todos os que por acaso o conheceram. Daniel, na verdade, não foi embora, não. Está vivo e esbelto não apenas na memória impressa de Pulando nuvens – milagre do poder da linguagem -, a qual, em forma de arte, se torna, fenomenologicamnte, vida perene - mas também no pensamento fiel e recorrente das reminiscências que duram porque são eternas. *Cf. Orações do meu dia a dia, coordenação do Pe. Lourenço Ferronatto.São Paulo : Associação Católica Nossa Senhora de Fátima. 1ª ed., 2016, p.7-8.