Os jovens leitores de hoje, que vêem emagrecer de dia para dia o espaço dos jornais destinado aos assuntos literários, estão longe de imaginar o que era o “Suplemento Dominical” do “Jornal do Brasil” nos últimos anos da década de 50: um caderno especial de 12 páginas, formato grande (60 cm x 40 cm), com paginação sofisticada, onde poemas inteiros eram transcritos com ilustrações e espaços em branco largamente utilizados em benefício da composição estética. Seu diretor, Reynaldo Jardim, inovador da feitura gráfica, paginador de vanguarda, estava aos poucos transformando um compósito de artigos sobre “artes” num conjunto homogêneo de assuntos literários.
Pouco a pouco foram sendo devidamente “aposentadas” decrépitas seções de balé e crítica teatral, conselhos domésticos e notícias literárias, cujos velhos colaboradores iam se queixar furiosos à condessa Pereira Carneiro da intromissão “desses jovens” nas searas em que vinham respigando (e ruminando) havia décadas. Mas o genro da condessa, Nascimento Brito, desejoso da remodelação do jornal, deu respaldo à turma do “Suplemento”, que conseguiu ultrapassar a crise.
Foi nesse espaço que apareceu, a 23/09/56, a página inteira denominada “Poesia-Experiência”, sob a assinatura de Mário Faustino, jovem poeta piauiense radicado em Belém, que logo em seguida se transformaria num dos maiores críticos literários do país. Se o “Suplemento Dominical” já era para os jovens poetas de minha geração leitura semanal obrigatória (para torná-lo ainda mais sui generis, o dominical saía aos sábados), com o aparecimento de Mário Faustino, a folha transformou-se em motivo de cult. Isso porque ele representava para nós tudo aquilo por que vínhamos ansiando: o mestre capaz de nos fornecer, da maneira mais dinâmica e atraente possível, as teorias de que necessitávamos e que não poderíamos adquirir fosse por falta de recursos financeiros, fosse por desconhecimento de suas fontes originais. Faustino ensinava Poesia, matéria que não estava nos tratados legíveis, e dela nos dava exemplos (exhibits em sua linguagem) que abrangiam desde os tempos clássicos greco-romanos ou mesmo de literaturas mais remotas como a chinesa, até as grandes vozes do presente (Rilke, Pound, Eliot) sobre as quais ouvíamos falar nas sem haver ainda ouvido (ou visto) o que diziam. Seus “Diálogos de Oficina” eram conversas imaginárias entre mestre e discípulo, ou entre dois interlocutores cultos, sobre a conceituação do ser e do fazer poéticos, expressos numa linguagem acessível, mas sempre elevada.
A seção “O Melhor em Português” antologiava e comentava os clássicos portugueses, e o “É Preciso Conhecer”, os grandes poetas estrangeiros em tradução. Havia ainda os “Subsídios de Crítica”, com trechos selecionados de mestres do gênero, principalmente os de língua inglesa, e a seção “0 Poeta Novo”, a que mais interesse despertava entre nós, pois Faustino convocava democraticamente os inéditos a colaborar, submetendo-os no entanto a uma seleção impiedosa.
Vítima de timidez aguda, estive várias vezes para lhe mandar minha colaboração, mas só me arrisquei quando Faustino passou a publicar e analisar alguns poemas traduzidos. Enviei-lhe o soneto 3 da primeira parte dos “Sonetos a Orfeu”, de Rainer Maria Rilke (Ein Gott vermags), e fiquei abismado e confuso quando, na semana seguinte, abrindo o suplemento, dei com o original e a tradução em “0 Poeta Novo”, tendo embaixo a seguinte nota: “0 poeta novo da semana apresenta-se com uma tradução. Alguns leitores poderão estranhá-lo. Nós, porém, somos dos que pensam poder haver tanta criação poética – ou mais – em uma tradução quanto num poema original. Algumas das obras mais importantes das maiores literaturas do mundo têm sido traduções…” Diante de tal acolhimento, ganhei coragem e fui visitar a redação do “Jornal do Brasil”, àquela época na avenida Rio Branco. Lá encontrei Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Oliveira Bastos e Assis Brasil, mas Faustino não estava presente, só ia ao jornal uma vez por semana levar a página de “Poesia-Experiência”.
Poucos leitores o conheciam; na entrevista que deu a Ruth Silver para o mesmo “Suplemento”, em vez de se deixar fotografar, preferiu copiar a mão uns versos de Camões e de Pessoa.
Devia ser um velho sistemático, mas eu queria de qualquer forma agradecer-lhe a “promoção”. Reynaldo aconselhou-me a procurá-lo na Fundação Getúlio Vargas, onde trabalhava num departamento da ONU, e aconteceu que um dia resolvi aparecer por lá. Recebeu-me um colega dele, fiquei à espera junto à mesa em que havia um paletó e um bilhete escrito em francês: “Voltarei dentro de alguns minutos. Mário.” Logo chegou, muito jovem (eu esperava um senhor quarentão, Mário tinha apenas 26 anos, um ano mais novo do que eu), nada alto, rosto redondo, perfeitamente escanhoado, cabelo à West Point, fisionomia rosada de esportista, olhar vivo e brilhante, gestos um tanto nervosos -enfim, o inverso do que se convencionou ser o “tipo intelectual”. A conversa começou meio amarrada da minha parte, não conseguindo repetir o ensaiado discurso de agradecimento. Mário cortou curto. Não lhe devia agradecer. Não havia nenhuma concessão em sua escolha.
Perguntou-me se conhecia um verso de Pound: “A piedade matou minhas Ninfas” e falou-me algo sobre a honestidade na crítica de arte. Percebendo minha atitude de acólito, tratou de anular a impressão de que gostava de ser mestre. Estava procurando aguçar em todos nós o senso crítico através do conhecimento. Mas o gosto artístico, ou saber distinguir em arte, deveria ser a conquista de cada um com os recursos de que dispusesse. Pediu para ver outros trabalhos meus. Mostrei-lhe a tradução que tentava fazer da “Ode a uma Urna Grega”, de Keats, e Mário tomou o papel onde escrevera o bilhete em francês, e nele anotou um remanejamento do verso “Beauty is truth and truth is beauty”, dizendo que a frase se tornara proverbial em inglês e era portanto necessário conseguir uma forma de traduzi-la com o mesmo pique em português. Saí levando comigo o papel, que ainda guardo.
No ano seguinte, encontrei Mário novamente, desta vez na redação do jornal. Sabendo da importância que dava às traduções, queria mostrar-lhe algumas dos sonetos de Shakespeare, que ele imediatamente publicou (27/10/57), também com uma nota: “Ivo Barroso é, a nosso ver, um dos maiores tradutores para a língua portuguesa em ação atualmente: os leitores desta página hão de estar lembrados de seu comparecimento à seção ‘O Poeta Novo’ , traduzindo um dos ‘Sonetos a Orfeu’ de Rilkje. Volta agora Barroso com três sonetos de Shakespeare, todos surpreendentemente traduzidos, a ponto de superarem, em nossa opinião, as traduções (em alexandrinos), já por nós elogiadas, de Jerônimo de Aguiar (Editora Melhoramentos). Ivo Barroso estará dentro de algumas semanas em ‘Poesia em Dia’, com página de traduções do inglês, do italiano, do alemão, etc.” Mas sem esperar pelas semanas vindouras, pediu a Reynaldo que me acolhesse entre os colaboradores do “Suplemento” e me vi, de um momento para outro, fazendo parte da equipe.
Nesse mesmo ano de 1957, o “Suplemento” passaria por um momento histórico com sua adesão ao concretismo, teorizado pelos irmãos Campos e Décio Pignatari, de S. Paulo, e encampado, no Rio, por Jardim e Gullar, que lhes abriram as portas para a publicação de manifestos e poemas. O “Suplemento” passou a estampar versos “espaciais” que causavam exasperação entre os conservadores e pedidos veementes à condessa “para que pusesse um paradeiro ao descalabro”. Nós, poetas novos, prontamente aderimos. Eu próprio tive alguns poemas concretos publicados, entre eles o SAPO PULA/ PAUL PULULA, e o ÉPOCA/ÉPICO, reproduzidos com grande destaque. Mário não aderiu de primeira hora nem de corpo inteiro ao movimento, embora respeitasse a cultura e probidade de seus mentores. Mas escreveu um artigo de página inteira, “A Poesia Concreta e o Momento Poético Brasileiro”, que situava o movimento vis-à-vis da atuação dos grandes poetas da época, e que, pela sua coragem e agudeza de análise, permanece, até hoje, significativamente como um dos mais avançados patamares de crítica literária objetiva. Como Manuel Bandeira, não deixou também de fazer, em seus poemas subsequentes, algumas incursões pelos “recursos espaciais” concretistas, mas, entre nós, confessava não acreditar na “morte do verso”.
Muitas outras vezes estive e falei com Mário, e dele recebi conselhos e orientações, sempre dados de maneira informal e sugestiva. Lembro-me de quando achou estranho que eu tivesse traduzido para o Suplemento uma série de artigos do crítico literário norte-americano R. P Blackmur, contrários a Ezra Pound, um de seus ídolos intocáveis. Como houvesse o permanente endeusamento de Pound nas páginas do Suplemento, Reynaldo achou que era oportuno mostrar também “a outra face”, e eu concordei em traduzir os artigos. “Blackmur é sério, mas eu prefiro Pound, que é espiroqueta”, ainda ouço Faustino dizendo. “Os críticos teorizam, mas só os gênios criam.”
Em dezembro de 1959, Mário ausentou-se do Brasil para exercer um cargo na ONU em Nova York, só regressando em 62, como editorialista do “Jornal do Brasil” e da “Tribuna da Imprensa”, que estava sendo adquirida pelo primeiro. A “Tribuna” passava por grandes transformações e entre seus redatores estava Paulo Francis, com quem eu já trabalhara na revista “Senhor”, e que me convidou para traduzir um folhetim, “Os Ladrões de Corpos”, para aquele jornal. Lá encontrei um dia Mário Faustino, que passara a dirigir o órgão e se mostrava naquele dia extremamente agitado. O jornal publicara ou ia publicar uma entrevista com Luís Carlos Prestes, e havia reações de toda espécie. Mário disse-me que a vida política brasileira estava muito conturbada e ficava muito difícil exercer o papel de orientador da opinião pública. Preferira aceitar a oferta do jornal para fazer uma série de artigos e reportagens sobre Cuba, México e Estados Unidos. Perguntou, como sempre atencioso, pelos meus trabalhos e mostrei-lhe alguns “Sonetos de Abraxas”, em que eu vinha trabalhando. “Merece um prefácio”, disse-me com afeição que não pude esquecer. No dia 27 de novembro daquele ano, Mário embarcou para Nova York para não mais voltar.
Os jovens poetas de minha geração tudo devem a Mário Faustino. foi ele quem nos ensinou a encarar a poesia como algo sério, algo comprometedor; a considerar como uma das necessidades do poeta o conhecimento de línguas e literaturas estrangeiras; a desenvolver uma avaliação crítica sem a qual iríamos sempre passar de diluidores. Não consegui nunca, em vida, agradecer-lhe por isso. Mas em 1991, quando publiquei a antologia de traduções “0 Torso e o Gato”, nela inscrevi seu nome, in memoriam, como um singelo tributo.
(Publicado na revista PALAVRA de abril de 2000 com uma caricatura de Chico Marinho e a reprodução da página inteira ‘Poesia-Experiência’ do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, de 23/9/1956
A HORA DO POETA MÁRIO FAUSTINO
Quando chegou ao Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em 1956, Mário Faustino já era autor de um livro de poemas, “O Homem e sua Hora”, publicado pela editora Livros de Portugal, no ano anterior. Mas ao se fazer crítico literário, orientador de jovens poetas e divulgador dos grandes nomes da literatura mundial, viu relegada a segundo plano sua própria produção poética em face de seu empenho em propagar a poesia alheia. Esse “objetivo maior” do crítico-poeta ocorreu num momento-chave, em que os “estreantes” andavam à procura de novos rumos, no suposto “marasmo” (expressão de Faustino) em que recaíra a literatura brasileira, após um período pletórico de atividade criadora (Claro Enigma, de Drummond, em 1951; Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, em 1952; Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, em 1953, e A Luta Corporal, de Ferreira Gullar, em 1954). Durante três anos (1956-1959), ele assumiu, com a página Poesia-Experiência, o lugar do condottiere literário, que indicava os pressupostos rumos e objetivos da grande poesia, e talvez por isso dele se esperassem mais os ensinamentos teóricos do que o resultado concreto de sua própria experiência poética. Os poucos poemas que veio a publicar depois do livro, a maior parte no próprio Suplemento, fora de sua página habitual, eram tão diversos da poesia então vigente, que mais pareciam os de “outro” dos ícones de seu repertório antológico, revelados semanalmente pela sua cultura multilingue e o inesperado de suas opiniões. Isto não quer dizer, no entanto, que a poesia pessoal de Mário Faustino não tivesse então seu valor no confronto com a de seus contemporâneos, ou que viesse a cair no ostracismo com o decorrer do tempo. Bastante considerado pela crítica como um “poeta de maturidade técnica”, dele se esperavam grandes realizações.
Em 1966, quatro anos depois de sua morte precoce, já uma segunda edição do livro era lançada, dessa vez pela Civilização Brasileira, permitindo com que se pudesse enfim dissociar o crítico-poeta do poeta-crítico. Prefaciada por seu amigo de infância e maior exegeta literário, Benedito Nunes, a poesia de Faustino era finalmente mostrada e analisada como um corpus autônomo, desvinculada da aura do magister teórico. Benedito indicava até que ponto Mário havia transfundido em versos os ensinamentos de seus “mestres” Ezra Pound e T. S. Eliot, orientado pela divisa do culto do antigo perene conjugado com o moderno inovador. E chamava a atenção para o fato de o poeta, que teorizava sobre as excelências do poema longo, ter mostrado, na prática, o que se podia fazer a respeito, nos versos que lhe davam título à obra. Embora não lhe faltasse em muitos e altíssimos momentos, uma dicção própria e experiente, era evidente que Faustino praticava, não raro, uma obsessiva subserviência poundiana: a exaustiva evocação de personagens mitológicos ou literários, a marchetaria das frases em línguas vivas ou mortas, a cômoda intertextualidade de que os jovens poetas não conseguiram se afastar até hoje — tudo servia de instrumentos para as manifestações conflituosas de um espírito sensível que sabia exprimir-se através de um requintado conhecimento da arte poética. .
Em 1976, a ênfase sobre o crítico-poeta volta à tona pela Editora Perspectiva com “Mário Faustino, Poesia-Experiência”, em que seu fiel prefaciador Benedito Nunes reproduz os tópicos principais daquela página jornalística (já famosa): “Diálogo de Oficina, Fontes e Correntes da Poesia Contemporânea e Poesia Brasileira”. Em 1985, nova chance para a poesia de Faustino, agora acompanhada de seus últimos poemas e de suas traduções, a mais realizada das quais, no entanto, ficara em “Fontes e Correntes da Poesia Contemporânea”: “Alba”, de Ezra Pound — um emblema ao que chamavam de “fanopeia” – o momento em que Faustino atinge plenamente o status de recriador. Tornava-se indiscutível que ambos os componentes da personalidade literária de Mário Faustino (poeta e crítico) mereciam uma leitura extensiva por parte das novas gerações de poetas e leitores de poesia.
Coube à profª Maria Eugênia Boaventura promover a revivescência da “obra completa” de Faustino: em 2002, ela publicou pela Companhia das Letras o primeiro de cinco volumes (“O Homem e sua Hora e outros poemas”), seguido, em 2003 por “De Anchieta aos Concretos”, abarcando tudo o que ele escreveu sobre poesia brasileira e seus poetas, e em 2004 pelos “Artesanatos de Poesia” (Fontes e Correntes da Poesia Ocidental), estando ainda por sair o volume correspondente às antologias (“O poeta novo”, “Pedras de Toque”, “Bibliografia”) e o dedicado às traduções (completo). O primeiro volume, com a obra pessoal de Faustino, sai agora em edição de bolso pela mesma Companhia das Letras, antecedido por abrangente estudo da organizadora, em que situa a influência de Mário Faustino no panorama da poesia brasileira de então e seu papel renovador. Mostra como se deveu a ele o empenho no conhecimento da poesia de outras línguas, a valorização do poema traduzido, o estudo das técnicas empregadas e desenvolvidas pelos grandes “poetas-faróis” de nosso tempo. E, mais que tudo, o exemplo de como sua formação clássica, sua cultura abrangente, seu domínio perfeito do verso (seus admiráveis decassílabos brancos) concorreram para a realização de sua obra. Um dos poetas mais significativos da chamada geração pós-45, a leitura de “O Homem e sua hora” trará aos novos leitores momentos de uma arte culta e elevada, como nos admiráveis “Sonetos de Amor e Morte”, na “Balada” (a um poeta suicida) e no soneto que começa por “Necessito de um ser”, em que entremeia decassílabos com hexassílabos, bem como nos habilidosos cortes de seus vários sonetos fragmentados.#
(Publicado no suplemento Proda & Verso, do Jornal do Brasil)