Leituras de guerra
Por Gabriel Perissé Em: 01/06/2006, às 21H00
Os jornais dizem que um dos maiores líderes do crime organizado no Brasil é leitor assíduo e aprecia dois clássicos da literatura universal: A arte da guerra, de Sun Tzu, e A divina comédia, de Dante.
Dantescas referências. Por um lado, toda uma sabedoria de combate a ser assimilada. Horas de reflexão sobre recomendações seculares: “Ao inimigo cercado deve-se deixar uma rota de fuga”; “a rapidez é a essência da guerra”; “dirigir muitos é o mesmo que dirigir poucos, trata-se de uma questão de organização”...
Arrisco-me a afirmar que Marcos Herbas Camacho, o Marcola, o leitor-prisioneiro, nos deu uma lição terrível com seu contra-exemplo. A leitura lhe dá a liberdade de agir para além das grades. A leitura a serviço da transgressão e da morte.
Uma das máximas da filosofia ocidental — conhece-te a ti mesmo — recebe em Sun Tzu aplicação beligerante: “Conhece o inimigo e conhece-te a ti mesmo. Assim, em uma centena de batalhas nunca estarás em perigo”. Nós somos, suponho, os inimigos dele, e ele nos conhece melhor do que nós...
O livro como arma intelectual, como esforço estratégico. “Bandidos loucos”, no pensamento de Sun Tzu, são aqueles que fazem a guerra sem conhecimento, sem idéias, sem linguagem, sem objetivos.
É leitor de Dante. Do inferno na terra conhece, ao vivo, as imagens produzidas pelo poeta. Traz no corpo as marcas de quem nele sobreviveu. A lógica da punição, os demônios insaciáveis, a tortura, os gritos, a dor, os criminosos de todas as classes. O crime não compensa, ontem e hoje... é preciso abandonar toda a esperança, mas sempre há um caminho para o céu...
Marcola refere-se ao presídio como a “faculdade”. Lá dentro encontrou o ócio necessário para dedicar-se ao exercício da mente. Nada no mundo se faz sem planejamento. Gerenciar seus “alunos”, “irmãos” e “soldados” requer controle das emoções. Requer disciplina interior. Vocabulário preciso. Concepções claras.
Marcola também teria em sua biblioteca um exemplar de Estação Carandiru, do Dr. Drauzio Varella. Este livro foi revelação para quem jamais visitou um presídio, mas, para um homem que já passou boa parte da vida lá dentro, aquelas páginas devem ser recordatório, reencontro, constatação da realidade.
A leitura permite a Marcola habitar uma dimensão inacessível. Se é verdade que tal avidez de leitura existe, está comprovado, para o bem ou para o mal, o seu poder.