Kafka não apanhou

[Washington Ramos]

Recentemente li “Carta ao pai”, um dos textos mais famosos da literatura universal. Dele, já ouvira falar muito, mas, só agora nesta quarentena, após lembrar-me de ter folheado “Ribamar” na Nova Aliança há uns seis meses, foi que me deu vontade de ler essa obra kafkiana, até mesmo para poder ler, com mais embasamento, o romance de José Castelo, que parece ser uma boa narrativa.

É um texto forte a Carta, mas, entre os muitos sentidos que podem ser comentados sobre essa obra, faço destaque para o fato de Kafka chamar seu pai de tirano. Há razões para o autor assim o chamar. Mas talvez haja um pouco de exagero, se considerarmos uma parte dos pais nordestinos que tratam seus filhos com xingamentos e pancadas. Estes, sim, podem ser considerados verdadeiros tiranos cruéis. Kafka não acusa o pai de espancá-lo.

Agora vamos dar uma olhada no tanto que as crianças nordestinas sofrem, aguentando palavrões, chutes tapas e surras de cinturão, de corda etc. Lembremo-nos do texto do Livro “Infância”, de Graciliano Ramos, no qual ele retrata uma pisa que levou do pai sem motivo nenhum que a justificasse (é difícil haver uma razão que justifique uma violenta surra de cinturão numa criança). Retirada desse livro do Velho Graça e muito citada é esta frase: “Batiam-me porque podiam bater-me e isto era natural.” O seja, na autoritária maneira de se educar uma criança aqui no Nordeste, está esta ideia nefasta segundo a qual o espancamento é algo natural e transparente como o ar. Faz parte de nossa educação, principalmente nas famílias de menor condição financeira e pouco acesso a escolas e que vivem nas regiões interioranas, afastadas do Conselho Tutelar que, de vez em quando, nas cidades, recebe graves denúncias de crianças submetidas a maus-tratos e precisa intervir para evitar que o abuso continue. Além disso, não esqueçamos que a violência permanece, apesar de tantas campanhas que têm sido feitas a favor de uma educação sem pancadas.

Kafka não conheceu o Nordeste e não apanhou. Se tivesse sofrido como nossas crianças, teria fugido de casa também, como muitos de nossos meninos ainda hoje fazem.

****

Leia resenha de Carta ao Pai, de Kafka