Eu era menino, e os loucos conviviam normalmente na rua com as pessoas da cidade. Digamos que havia uma certa normalidade, já que, aqui ou acolá, um ou outro com o seu destempero quebrava a ordem estabelecida. Parece que esse costume não acabou de todo, e, vez por outra, damos de cara com algum maluco a dividir o espaço urbano numa boa.
      Em geral, esses doidos são de famílias de poucos recursos sem condições de mantê-los em suas casas. A rua é o caminho inevitável. Quem pode segura seus doidos em casa, quase sempre os encerra em um quarto. Não sei o que é pior para o doido: ficar preso num quarto, ou ser exposto na rua à insensibilidade do povo, principalmente da molecada que, pródiga em danações, tem prazer em colocar neles apelidos perturbadores.   
      Aí, me vem do breu do esquecimento Judith, uma tia, que vivia confinada num quarto dos fundos, perto da cozinha, na casa de familiares. Ela subsistia envolta numa capa de mistério, e os adultos a escondiam de nós, crianças que éramos. Eu tinha medo: ainda hoje ressoam na minha mente os gemidos e lamentos dela que escutava quando eu ia ao quintal tirar imbu. 
      Eu nunca a vira. Até que uma tardinha, saindo do quintal para o interior da casa, com os bolsos do calção cheios de imbu, estaquei de susto no limiar da porta da cozinha: a Judith estava lá dentro, sozinha, sentada num banco de madeira. Pude vê-la através do vão acima da porta inferior, que estava fechada por uma tramela. Ela era gorda e muito branca, tinha acabado de tomar banho e vestia um chambre claro muito limpo. Por um segundo, o olhar dela cruzou com o meu, e o tempo parou para mim ali petrificado diante daquela porta. Não deu nem pra correr tal a paralisia que senti. Até que ouvi a sua voz grave, imperiosa, mandando que eu entrasse, que não tivesse medo, que ela não era nenhum bicho.
      O tom resoluto da voz dela, instantaneamente, me deu forças. Abri a porta, atravessei a cozinha com o coração nos pés, cheguei à sala e respirei. Essa foi a única vez que a vi, mas a cena ainda é forte aos meus olhos como os seus gemidos o são aos meus ouvidos. 
      Alcancei o corredor e ganhei a porta da rua. A bola de fogo do sol já sumia por trás das torres da Igreja. Apalpei os imbus dentro do bolso e trouxe um até a boca, deliciando-me com a sua doçura.
      Somente agora quando escrevo esta crônica é que me dou conta do quanto foram lúcidas aquelas palavras da Judith e, mais ainda, do quanto foi genial a sua percepção daquele momento. Os loucos são assim mesmos: sempre estão a surpreender os que acham que eles são doidos.