ELMAR CARVALHO

 

 

Jack, algumas galinhas e alguns descendentes do falecido galo garnisé

 

Dois meses atrás, quando estive na Várzea do Simão, reparei na beleza perfeita e miúda de um galo garnisé. Todo recoberto de penas escuras e vermelhas, mas em diferentes gradações e tonalidades; algumas chegavam a ser furta-cores. De crista altiva, bem recortada, e de um vermelho muito vivo, quase como se fora uma joia, o galinho parecia imponente, mesmo sendo tão pequeno. Dizer-se que um garnisé é pequeno é quase uma redundância, mas se o digo é para lhe realçar a beleza minimalista, quase como se fora uma caprichosa escultura da ourivesaria de Botticelli. Consciente ou inconsciente do seu próprio ser, com certeza era desprovido de orgulho e vaidade.

 

Contudo, caminhava empinado, bem ereto e de peito estufado, como se nada temesse. Seu canto, embora agudo e um tanto curto, era um claro, metálico e vibrante toque de clarim. O Didi, que me havia dado algumas informações sobre o galinho garnisé, aduziu que ele me pertencia, uma vez que o Reginaldo, morador da Várzea, me dera de presente (embora disso eu ainda não tivesse conhecimento). Fiquei satisfeito com o mimo. Com efeito, o galinho era mesmo mimoso. Parecia uma pintura, um encanto, ou mais que isso: parecia uma obra de arte feita diretamente pelo artista Supremo, em que Ele tivesse desejado superar-se a si mesmo.

 

Vendo a beleza dessa ave, sem outra preocupação a não ser ciscar e catar grãos no terreiro, lembrei-me do que me contou um amigo, faz algumas décadas. Esse amigo recebera de presente de seu pai um galo garnisé. Criou-lhe grande afeição. O pequenino garnisé passou a ser o seu brinquedo favorito e o seu mais valioso tesouro.

 

Certo dia, porém, após comer um delicioso prato de galináceo a molho pardo, recebeu de seu pai a brutal notícia de que acabara de deglutir o seu galinho de estimação, em decorrência do aperto financeiro por que passava. O meu colega ficou chocado. Não sei se chegou a vomitar. Segundo ele me afirmou, nunca mais comeu galinha em sua vida, em razão do trauma que lhe ficara.

 

Recentemente, ao retornar à Várzea, perguntei ao Didi pelo meu galinho garnisé. Fiquei consternado ao receber a impactante notícia de que ele morrera. Fora “assassinado”, de forma covarde, por um galo que devia ter cinco vezes o seu tamanho. O matador, além de seu porte avantajado, devia pesar pelo menos seis vezes mais que o minúsculo garnisé.

 

O algoz, que naturalmente se sentia o rei do pedaço, senhor absoluto do poleiro e de todas as galinhas, tentou cobrir o pequenino garnisé. Acho que o tomara por uma franga. O garnisé, todavia, era bravo e repeliu o insolente assédio. Macho que era, rechaçou a inoportuna e impertinente investida do galo grandalhão.

 

O brutamontes não lhe perdoou a heroica recusa; furiosamente o matou com várias bicadas em sua formosa cabecinha, coroada com a magnífica crista escarlate de que já dei notícia. O Didi passou a chamá-lo de Jack Estuprador, e passou a alimentar um forte desejo de comê-lo a molho pardo, tendo como complemento um apetitoso pirão de parida. Todavia, o seu dono recusou a proposta, em virtude de que Jack é um competente reprodutor, e de não possuir ainda um outro galo capaz de substituí-lo à altura.

 

O epíteto Estuprador, convém salientar, não é de todo bem posto, uma vez que o intento restou frustrado. Isto porque o galinho não tinha a menor inclinação para ser galinha de quem quer que fosse, e muito menos daquele desabrido e aloprado galo. Ao contrário, tinha a sua companheira, uma galinha garnisé, imaculadamente branca. Deixou descendência, entre os quais alguns pintinhos e uma galinha e um galo, que ainda não tem a imponência e o canto vibrátil do seu falecido genitor.

 

O galinho garnisé era macho, destemido e heroico em sua pequenina e delicada formosura, e não aceitava insolências e deboches.