INVEJA
Por Elmar Carvalho Em: 11/04/2015, às 10H00
ELMAR CARVALHO
Afonso Rodrigues Miranda iniciou sua carreira no serviço público aos 22 anos de idade, logo após ter concluído seu curso de Economia. Cordato, trabalhador, diligente, prestativo, logo se tornou chefe da seção de pessoal de sua repartição. Era um literato, e colaborava em alguns jornais e revistas da capital. Amante da música, tocava violão com rara perícia.
Aos domingos, tomava sua cervejinha com moderação. Bom conversador, gostava de contar fatos engraçados ou interessantes, que ouvira ou lera, alguns remontando ao seu tempo de garoto. Às vezes, recitava poemas, tanto de sua autoria, como de grandes mestres da literatura brasileira e piauiense. Com muita inteligência emocional, desenvolvia suas atividades com criatividade e eficiência, porém da maneira mais simples possível, por entender que as soluções menos complexas são invariavelmente as mais eficazes e mais econômicas.
Dois ou três anos após seu ingresso na administração pública, foi trabalhar em sua seção um servidor recém aprovado em concurso público. Chamava-se Abel Silva do Nascimento, e era três anos e alguns meses mais novo que Afonso. Também era formado em Economia. Começou a observar os modos e o jeito de conversar do chefe, que considerava elegante. Procurou mesmo se tornar seu amigo, e veio a ser o seu substituto eventual na chefia da seção.
De maneira sutil, diria mesmo imperceptível, começou a imitar o chefe, tanto no trajar, como no seu modo de conversar e gesticular. Passou a usar camisa por dentro da calça, com um bom cinto, como costumeiramente Afonso fazia. Não relaxava uma caneta no bolso da camisa, tal qual o outro gostava de fazer, tendo mesmo uma coleção vistosa desse objeto. Chegou ao cúmulo de comprar um par de sapatos exatamente igual ao dele.
Não bastasse isso, procurou ler algumas obras literárias, se bem que um tanto de maneira forçada, e ainda que suas leituras fossem apressadas e superficiais, sem maiores aprofundamentos e reflexões. Quando menos se deu pela coisa, eis que Abel iniciou a colaboração em jornais da cidade. E disso fazia alarde. Proclamava que sua vocação vinha da infância, quando, na verdade, antes ninguém lhe conhecia como tendo veleidades literárias, ainda que pífias ou precárias.
Não tinha o respeito de muitos de seus pares, todavia a sua carreira literária prosseguiu com certa regularidade, graças à sua pertinácia e “forçação de barras”. Vez ou outra lançou mão das ideias de seu mestre, mudando uma vírgula aqui, um ponto acolá, e colocando uma palavra sinônima em outro ponto ou trecho. Não era uma cópia servil, em alguns casos, mas com certeza vários de seus textos podiam ser considerados como um exemplo de plágio.
Contudo, uma coisa era certa: Abel não tinha a simpatia e o carisma de seu mestre. Ademais, adquiriu alguns desafetos por ser um tanto falastrão e falador da vida alheia. Por outro lado, no afã de fazer amizades, correndo feito barata tonta de um lado para outro, terminou angariando certo desprezo, tanto dos colegas do serviço público como dos literatos, que reprovavam a sua superficialidade, diletantismo e oportunismo, mormente ao tentar se promover a qualquer preço.
Vendo Abel o sucesso profissional e o crescimento literário de Afonso, a sua admiração pelo seu chefe começou a se transformar em inveja, a princípio tênue, dissimulada, quase imperceptível, mas que foi, com o passar do tempo, tomando corpo, se tornando visível, através de insinuações, “brincadeiras”, certas ironias veladas, e até mesmo por intermédio de atos, ações e omissões, no desígnio inconfessável de minimizar ou ocultar o brilho de seu paradigma, conquanto jamais admitisse, nem mesmo para si próprio, sua condição de discípulo e muito menos de êmulo.
Abel, por ser boêmio, perdulário e ainda viciado em jogatina, vivia sempre atrapalhado em suas finanças. Ao contrário, Afonso, inclusive por ganhar mais, tinha sua casa própria, seu carro e um pequeno sítio, de nome Pasárgada, perto do povoado Cacimba Velha, onde passava os finais de semana, com sua mulher e seus dois filhos. Vez ou outra, convidava Abel para um churrasco, em que degustavam algumas cervejas. Tudo isso em meio a uma boa conversa e banhos na piscina. Poemas eram recitados, e Afonso, com sua bela voz, entoava algumas lindas canções, acompanhando-se ao violão, que dedilhava quase como um virtuose.
Uma ou duas horas antes do retorno, Afonso parava de beber. Tomava um demorado banho na piscina e tirava um revigorante cochilo, no intuito de conduzir o automóvel com segurança. Numa dessas ocasiões, quando o carro chegou a um determinado ponto despovoado da estrada, à boca da noite, Abel pediu para que Afonso parasse o veículo, pois desejava urinar. O motorista, que vinha no banco à sua frente, lhe pediu para que aguentasse um pouco, pois aquele trecho era perigoso, já tendo acontecido vários assaltos. Acrescentou que dali a apenas dois quilômetros existia um posto de gasolina, onde ele poderia urinar em segurança e com mais conforto.
Abel, contudo, não gostou da negativa, e insistiu para que Afonso parasse imediatamente o veículo. Novamente este, com bons modos, repetiu as suas ponderações. Então, de modo totalmente inesperado, ouviu-se um estampido no interior do automóvel.
Abel estourara os miolos de Afonso, com um tiro em sua nuca. Sangue e pedaços de cérebro salpicaram o teto do carro, pois o disparo fora efetuado de baixo para cima. O veículo, descontrolado, embora estivesse em baixa velocidade, saiu da estrada e entrou num matagal ralo, mas nenhum passageiro sofreu a mais leve lesão. Estavam no automóvel, Afonso, sua mulher, os dois filhos do casal e o assassino.
Feitas as investigações, efetuadas as necessárias perícias e ouvidas as testemunhas, presenciais e referenciais, o delegado indiciou Abel como tendo praticado o crime de homicídio doloso por motivo fútil, sendo este o fato de Afonso não ter parado o carro logo que o homicida exigiu. O promotor de Justiça ajuizou a denúncia com esse mesmo entendimento.
Em nenhuma ocasião alguém falou em inveja; muito menos Abel, mesmo porque ninguém jamais admite possuir esse triste sentimento.