Romancista veterano, integrante do Movimento Armorial, o pernambucano Raimundo Carrero é um dos principais defensores das oficinas de criação literária no País. Há 20 anos, trabalha com o formato e já publicou dois guias para iniciantes: "Os segredos da ficção" (2005); e "A preparação do escritor" (2009). Prestes a lançar seu novo romance - "A Minha Alma e Irmã de Deus" -, Carrero falou ao Caderno 3 sobre sua formação e o trabalho com quem deseja se aventurar pela literatura


Como se deu sua formação como escritor?

Como em todo autor brasileiro da minha idade, ela se deu através de leituras, leituras e muitas leituras; e, no meu caso específico, dois grandes mestres: o primeiro que me orientou em tudo, e com quem ainda hoje mantenho contato, foi o Ariano Suassuna; e o outro foi Gilberto Freyre, que me ajudou muito. Não é todo mundo que tem a oportunidade ter dois mestres como estes. O Pessoa de Moraes, que não é um escritor tão conhecido, também me orientou em meus primeiros momentos. Me parece que essa formação de leitura sistemática, aliada à capacidade de ter três mestres espetaculares, me ajudou muito.

E como se davam essas relações de aprendizado?

O mais sistemático, pode-se dizer assim, entre aqueles com quem estudei, foi o Ariano. Claramente, não passava por sua cabeça que ele estivesse fazendo uma oficina comigo. Mas me mostrava livros e autores fundamentais. E não era só para ler. É aí que entra a questão: Ariano me fazia discutir uma cena, um cenário, a abertura de um livro, o fechamento de uma novela. Quando fiz parte do Movimento Armorial, escrevi "A história de Bernarda Soledade" (1975), publicada pela Arte Nova com prefácio dele, que deve muito a estas discussões. Era um estudo sistemático que fazíamos. Eu trabalhava com Ariano na universidade e, no domingo, ia pra casa dele às 9 horas da manhã e só saia de lá às 9 da noite. Lembro que ele me mostrou uma cena de "O retrato do artista quando jovem", de James Joyce, e discutiu comigo ela toda, como foi feita, as razões de ser daquele jeito. E essa cena ficou comigo pra sempre. O Gilberto foi mais no começo. Ele não era sistemático como Ariano, mas corrigia meus textos e indicava muitas leituras.

Como você começou a ministrar oficinas?

Além de Ariano e Gilberto, tive um mestre indireto: Autran Dourado. Ele foi um dos primeiros no Brasil a escrever sobre técnica literária. Comecei a ler, estudar e aplicar nos meus romances. E a fazer novas técnicas. "Bernarda Soledade" era uma romance armorial; "As sementes do Sol" (1981) já é um romance técnico, com técnicas próprias que eu vinha tentando criar. Depois, dei de cara com dois livros fundamentais: "Madame Bovary", de Flaubert, e "A Orgia Perpétua", de Vargas Llosa, esse um estudo detalhado do romance de Flaubert. Tive um grande interesse em discutir aqueles livros com os amigos. Em 89, quando escrevi "Maçã agreste", fiz todas as peregrinações que precisava fazer sem o que o leitor percebesse. Cada um dos cinco capítulos é contado na voz de um personagem. Nesse mesmo ano, fui à Livraria Síntese, na sala Graciliano Ramos, e pedi que disponibilizassem um espaço para escritores e fiz uma oficina. O Marcelino Freyre foi aluno dessa primeira turma. Foi quando precisei ir pros Estados Unidos, para um programa internacional de escritores na Universidade de Iowa. Tem gente que diz, como saiu na Folha de S. Paulo, que trouxe essa experiência pra cá. É lá que eles têm a maior oficina literária do país, mas que não cheguei a participar. O programa de que fiz parte era mais uma reunião de escritores, que conversavam e faziam oficinas entre si. Quando voltei, fui demitido do Diário de Pernambuco, e você sabe como é ser jornalista desempregado em uma cidade provinciana. Eu fui atrás de outras coisas. A primeira oficina profissional que dei foi no Sindicato dos Jornalistas. Em 1999, estabeleci o projeto.

O que consegue se fazer numa oficina de criação literária?

Essa pergunta é fundamental. É um equívoco se imaginar que a oficina faz, inventa, escritor. Não é verdade. Ela é auxiliar. Digamos que você já escreve, e vai à oficina pra aprofundar. Esse é o caráter dela. Ela não exerce feitiço, bruxaria, nem é alquimia. Não tem o poder de transformar pedra em escritor. Ela oferece uma série de técnicas e sugestões para o escritor jovem ou pra quem quer se aprofundar. Tanto que tem gente que fica comigo cinco, seis anos.

Você acredita em talento?

Não, usei a palavra mais para ilustrar. Tive a sorte de ir há pouco pra Bienal de Curitiba e dividi uma mesa com Cristovão Tezza e João Gilberto Noll. Fiquei feliz em ouvir dos dois que não existe inspiração. Existe intuição. A inspiração é algo que não tem o menor sentido. Você tem que saber encontrar seus caminhos, mas tem que trabalhar para encontrá-los.

Nesses dez anos de estudo e ensino sistemático, o que a oficina mudou na sua forma de trabalhar a criação literária?

Amadureço demais com ela. Começo a entender que tipos de técnicas posso usar naquele momento certo para seduzir o leitor. Aliás, essa é a principal tarefa do escritor: seduzir o leitor. Se você for um mero contador de piadas e não tiver técnicas, não vai acertar nunca. É por isso que os humoristas também estudam para contar piadas. Então, penso que efeito posso tirar de uma cena, de um diálogo, de um solilóquio... Hoje, como conheço bem estas técnicas, sei como seduzir o leitor e atraí-lo para perto de mim. O que me impressiona é que os poetas estudam demais, métrica, isso e aquilo. Só que quando chega na prosa, as pessoas acham que de qualquer jeito tá bom.


Me parece que, ao questionar a validade das oficinas literárias, parte dos escritores está defendendo uma idéia sacralizante do ato de criar, romântica até. Em outros áreas, essa visão já caiu por terra. Por que na literatura ela ainda resiste?

É claro que tenho meus equívocos, meus enganos. Mas acho que é porque ela sempre foi vista como diletantismo. No Brasil, raríssimas pessoas têm a literatura como primeira profissão. Se você não vai ser profissional, então pra que estudar? - tem gente que pensa assim. O que é confuso, porque os poetas, mesmo sabendo que não vão ganhar dinheiro, estudam muito. Nos EUA, onde as oficinas são mais bem aceitas, a literatura é vista como profissão. O máximo que acontece é o cara ser professor, e às vezes da própria área de criação literária. Aqui, em geral, eles iam ser advogados, e nas horas vagas escreviam, porque gostavam de escrever. Nem os jornalistas, que trabalham escrevendo, não se dedicavam a isso. Mas, você sabe, tem jornalista que nem lê. O que é um absurdo.

Toda a nossa conversa foi perpassada por este alerta, de que ao escritor é necessário a leitura. O que ele deve ler?

Primeiro, ficção, claro. É preciso ter uma biblioteca básica, partindo de Homero, passando pelos clássicos da antigüidade, até os autores de hoje. Nessa biblioteca, a "Poética" (de Aristóteles) é fundamental. Ele tem que se dedicar aos romance, contos e poemas. Todo bom prosador lê bons poemas. Em segundo, ler crítica literária. Não tem essa de "não gosto de crítico". Tem que gostar. E, terceiro lugar: exercitar, estudar todo dia. Você pega umas duas horas no dia e estuda uma cena de um romance, até entender porque ela foi feita assim, porque o tempo é esse. Isso é essencial. Afinal, jogador de futebol treina todo dia e ainda erra, então...
 


A preparação do escritor Raimundo Carrero

Quando comemora 20 anos de sua primeira oficina, e 10 que estabeleceu o curso regular em Pernambuco, Carrero lança este "A preparação do escritor". Nada mais apropriado: o livro é uma espécie de síntese escrita do trabalho que o escritor desenvolve em suas aulas. Em "Os segredos da ficção", seu outro "guia" das artes da palavra, era uma espécie de ensaio que apontava caminhos para o candidato à escritor, enquanto discutia seus principais conceitos operatórios. Aqui, Carrero é ainda mais simples. O livro é corretamente didático, sem ser raso. Ele se divide em 11 aulas, que tratam de temas como a invenção do personagem, os diálogos e os cenários, além de propor uma série de exercícios.
 

Raimundo Carrero: "é um equívoco se imaginar que a oficina faz, inventa, o escritor. Não é verdade. Ela é auxiliar. Você vai à oficina pra aprofundar. Esse é o caráter dela. Ela não é alquimia"
 


Iluminuras
2009
221 páginas
R$ 44

Fonte: Diário do Nordeste, 13.09.2009