Infância

{Beth Medeiros]

O contato dos meus pés com aquela lama bem que poderia ser o início de um contato com a realidade de que tantas vezes depois tentaria não fazer parte e de que a minha frágil condição humana não era capaz de evitar. Pois muitas vezes depois eu veria sempre, ano a ano, o desespero de minha mãe e de meu pai e meus irmãos mais velhos.

Eu fora sentada ali por meu pai para que não pisasse na lama. A lama real, escura, imunda e fedorenta que eu pequenina e dispersa no mundo mágico da infância não conseguia perceber. Era uma mesa alta pra mim e meu irmãozinho menor, mas ali me maravilhava ficar sobre o quadrado de mesa reduzido e protetor, cuja confusão e bagunça eu achava ser uma brincadeira nova. Eu e meu irmão íamos ficando apertados por causa dos objetos que minha mãe e meu pai colocavam ao nosso redor: panelas, pratos, copos colheres, garrafas um espanador, discos do Roberto Carlos, ferramentas e outras pequenas coisas, além de três cadeiras viradas que serviam de cercado talvez para evitar que caíssemos.

O espaço não era mais confortável, e, eu logo comecei a achar a brincadeira na mesa sem graça. A água, a lama fria e escura tocou os meus pés quando desci. E eu vi com verdade que minha casa estava diferente. Desarrumada e grande. Era ali que eu morava? Nossa casa era baixa na parte da frente, se eu subisse na cadeira poderia tocar as telhas que nos protegiam, isso na parte de frente da sala, mas a parte restante da casa, uma imensa palhoça nos cobria com sua fragilidade. Mamãe vivia reclamando, pedindo “quando a gente vai tirar essas palhas, homem de Deus!”.

Mas minha casinha pequena era pra mim tão grande e me engolia por tantos e tantos anos, que eu podia me perder dentro dela, por entre espaços pobremente decorados.

Pra mim, nessa época, ali era uma casa mágica. Onde as brincadeiras dos irmãos se transformam em isolamento festivo para mim. Os mais velhos subiam desaparecendo por uma pequena abertura no alto do teto da sala. Eu via algo especial da parte de baixo, um monstro de um olho só, um fantasma apavorante que aparecia e desaparecia; de novo eu via o monstro  pegando os meninos, fazendo-os gritar de terror; mas logo eles escapavam, desciam aos gritos e gargalhadas mudando o rumo da aventura. Eu os seguia tonta  para o quintal e via que o fantasma estava sempre do meu lado, ainda tentando uma conversa isolada comigo.

Meu irmão, apesar de menor, virava um heroizinho animado subindo veloz ao topo do pé de ata, arrancava as frutas maduras enfiando tudo na boca e, como se fossem tiros, arremessava as sementes pretas em mim, elas obedeciam meu irmão e me atacavam, sem que eu pudesse me defender. Além, disso, havia outras árvores  imensas  altas e hostis, as bananeiras, o pé de ceriguela, o pé de goiaba, o de tomarindo e o estranho pé de urucum... sopravam ameaçadoras só pra mim que se eu quisesse até poderia subir, mas iam me derrubar.

Havia ainda aquelas pessoas engraçadas, com suas roupas antigas. A menina Lila, de cabelo amarrado com lenço azul, sempre me visitava e me contava alguma história diferente ou mesmo me orientava dizendo para não subir nas árvores, pois elas podiam me  machucar. Havia minha boneca que se sentava no meu colo e cantava uma ou duas músicas engraçadas para que eu não ficasse triste porque não podia brincar na rua nos dias de chuva e estava doente, também me dizia pra não ter medo do meu irmão mais velho só porque ele era mais forte e gostava de bater nos pequenos. Havia Wilker, que se fazia indispensável, ocupando meu tempo, o fantasma agora sempre falava comigo e era com ele  eu fazia meus próprios barquinhos de piratas, gostava de me visitar quando as meninas da rua não queriam brincar comigo, algo que não sabia entender como a infância podia ter a face de exclusão. 

Todos eles não deixavam que ficasse sozinha e me ensinavam coisas meus amiguinhos. Às vezes eu queria até apresentá-los pra meus irmãos e irmãs e também pra minhas colegas, mas com medo de ficar sem amigos de novo não apresentava.

Eu era uma menina tímida, mas não era medrosa. Apenas gostava de ficar quietinha olhando as coisas daqueles dois mundos, misturava-os um no outro, embora gostasse mais quando Wilker me chamava pra sua realidade e eu não fugia, topava a invasão.