Instigado pela visita a Sete Cidades, eis que empreendi nova incursão à pré-história pelo fascinante interior do Piauí. Dessa vez, o percurso exigia mais fôlego: quase mil quilômetros por estradas nada agradáveis, hotéis pouco convidativos e o calor incomparável da região a essas latitudes do ano.

Fortaleza foi o ponto de partida; deixando Tauá e o museu da família Feitosa, segui por Picos, passei por Oeiras e embarquei numa estrada abominável que quase sempre obriga a descer do carro para a troca de pneus, tamanho o desgaste proporcionado pelo impacto dos buracos.

O medo do “assalto à diligência”, da proximidade da noite e do restante da inabordável estrada causou a esperada apreensão, empurrando-me finalmente até São Raimundo Nonato, que agora abriga apenas 30% do Parque Nacional da Serra da Capivara (o restante ficou para um município recém-criado). Mesmo assim, a cidade ainda é considerada o principal centro de apoio aos visitantes, e também é lá onde se concentram os guias obrigatórios nas visitas aos sítios arqueológicos.

No dia seguinte, o roteiro foi feito com a ajuda de minha cicerone, que tem nome de santo; para começar, Dona Conceição levou-me até o Museu do Homem Americano, fundado pela afamada arqueóloga Niède Guidon. O museu impressiona não apenas pelas peças coletadas mas também por toda a sua estrutura, julgada até mesmo improvável para tal isolamento.

Saindo do museu, seguimos até o Circuito do Desfiladeiro para ir parar, literalmente, no Inferno. Dona Conceição me fez acompanhá-la até um lugar que leva esse nome para conhecer os efeitos causados, há milhares de anos, pelas transformações climáticas e pelo efeito da erosão em rochas altíssimas, compondo um panorama inaudito.

Logo além, várias passarelas encravadas nas pedras dão acesso ao verdadeiro motivo da viagem: as diversas pinturas rupestres espalhadas por toda a área, revelando de forma criativa o cotidiano do homem pré-histórico. Rituais, cenas de caça e, principalmente, de sexo, criam vida nas paredes arenosas, como uma intrigante narrativa feita apenas de imagens, o que valeu ao parque o título de Patrimônio Cultural da Humanidade concedido pela UNESCO.

Reunindo a maior concentração de pinturas rupestres do mundo, o local atrai o visitante a uma viagem no tempo, enquanto incita a imaginação a vaguear pelos motivos desenhados nas paredes e grutas milenares.

Outro espetáculo à parte fica por conta de alguns atrativos naturais como formações rochosas curiosas, a exemplo da Pedra Furada, um dos símbolos do parque, ou das Torres Gêmeas, que a mim fazem lembrar as formas do local onde, na Polônia, o rei Popiel foi devorado por ratos.

O cânion das andorinhas é um passeio ímpar, feito obrigatoriamente depois das 17 horas, pois é quando as aves retornam aos paredões para descansar. Aos poucos, elas vão se unindo em bandos, realizando despretensiosos passeios em círculos até mergulharem, num voo vertiginoso e barulhento, no interior das fendas rochosas, devolvendo aos expectadores o encanto que, em algum momento de suas vidas, pode ter ficado perdido por uma das tantas estradas que nos levam a agradáveis surpresas como esta. 

                                                                                                               Renato Barros de Castro

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Trecho retirado do livro "Geografia Afetiva" - Prêmio Milton Dias, 2011.
Outras obras do autor estão disponíveis neste link (Livraria Saraiva).