HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XXV

A matrona de Évora

Elmar Carvalho

Na minha infância, aos domingos, quando eu ia com meu pai participar da missa da manhã, para depois assistirmos à sessão matinal do Cine Galileia, vi algumas vezes dona Ângela Fontenele sentada na larga calçada de seu vetusto sobrado solarengo. Simpática, gentil, sempre com um sorriso nos lábios, cumprimentava todos os passantes. Às vezes nos dirigia breves palavras. Aprendeu meu nome. Certa vez disse, talvez para aumentar minha autoestima:

– Para onde você vai, Marcos, tão bonito, tão bem vestido? Parece que vai a um baile, ou então se encontrar com alguma namoradinha...

Fiquei encabulado e nada respondi. Meu pai respondeu por mim:

– Vai pra missa, aprender a rezar, e depois vai assistir a um filme de faroeste, com Giuliano Gemma.

– Ah, muito justo. Como vai dona Rita? Estimo que esteja bem, nunca mais tive o prazer de encontrá-la.

– Vai bem, obrigado, dona Ângela. Só que sempre muito ocupada com os afazeres de mãe e dona de casa.

Ângela Fontenele era uma mulher alta, considerando-se a época e a região. Na juventude, segundo soube, era esbelta, conquanto não fosse magra. Comentava-se que havia sido uma muito bela mulher, alva e loura, de olhos claros, verde-azulados. Descendia de franceses, que se fixaram na Ibiapaba. Com o tempo, tornara-se um tanto corpulenta, mas não gorda, o que lhe dava uma imponência de matrona romana. Vestia-se com elegância, mas sempre com sobriedade, de modo a jamais afrontar a pobreza de quem quer que fosse. Sua voz era suave, audível, porém nunca elevada.

Morreu quando eu tinha uns quinze anos de idade, ou um pouco menos, já não sei ao certo. Teve, creio, uma morte suave, discreta, sem sofrimento e sem testemunhas. Faleceu à noite, em sua cama. A empregada, de manhã, quando foi chamá-la para o café, já que ela não viera espontaneamente para a enorme mesa de refeições, como era seu costume, a encontrou morta. Seu velório e cortejo fúnebre foram o de maior acompanhamento de que já se teve notícia. A igreja matriz ficou lotada durante a missa de corpo presente.

Provocado por minha curiosidade e consequentes perguntas, meu pai, aos poucos, foi me contando a vida de dona Ângela. Também fui sabendo de outros pormenores através de diversas pessoas. Sem dúvida, sua vida dava um romance, porque fora um verdadeiro romance, a que não faltou um pouco de picaresco e de tragédia. Irei resumi-la, o máximo que me for possível.

Seus avós e parentes eram retirantes, fugidos da Ibiapaba, por causa de terrível seca, que assolou a região, no final do século 19. Passaram a morar em Évora, com ânimo definitivo; afinal haviam vendido tudo que possuíam na Serra Grande. Seu avô, gracejando, dizia que em Évora poderiam até morrer de fome, por preguiça, mas jamais de sede, pois que ali havia o grande lago Galileia e o caudaloso Paraguaçu. A sua graciosa e querida Viçosa perdera o viço naquela seca medonha.

Quando Ângela completou catorze anos, e a sua beleza começou a esplender com muita intensidade, entrefechado ou entreaberto botão de rosa, como cantou, em versos nada originais, enfatuado vate eborense, o rico comerciante Constantino Cardoso, que recentemente ficara viúvo, a pediu em casamento, através de seu pai. Não me deram detalhes sobre essas tratativas.

Mas o certo é que Constantino, além de sua sortida loja de tecidos e de grande mercearia, tinha um enorme armazém atacadista, que fornecia produtos comestíveis, higiênicos e de limpeza aos pequenos comércios a varejo, entre os quais bodegas, bares, lanchonetes e botecos. O pai de Ângela sustentava a família com sua pequena mercearia, localizada no bairro Rabo da Gata, nas imediações do lago Galileia. Abastecia seu pequeno comércio graças ao crédito que possuía junto ao grande empório de Constantino. Algumas vezes atrasava o pagamento, que deveria ser mensal, mas o proprietário, condescendente, lhe dilatava o prazo.

Dizem que Ângela, a princípio, se opôs ao casamento, por achar Constantino feio, rude e muito velho para ela. Relutou, relutou, mas acabou aceitando, em face dos argumentos e da insistência dos pais. Faria esse sacrifício para o bem de sua família, sobretudo pais e irmãos. Os boatos diziam que até a saúde do opulento comerciante, que não era boa, e a sua expectativa de vida, que parecia curta, foram levadas em conta. Consta que o rico comerciante, antes do casamento, de forma dissimulada, passou alguns bens e dinheiro para o futuro sogro, que atravessava percalços financeiros.

Os seus parentes, irmãos e sobrinhos, posto que ele não tinha filhos, foram radicalmente contra o casamento, mas Constantino impôs sua vontade férrea e se casou civilmente com a bela adolescente. Foi magnífica a cerimônia religiosa, realizada na matriz de São Gonçalo. Ângela estava deslumbrante em seu vestido de noiva, cravejado de pedras preciosas, com a sua linda grinalda, de ricos bordados e rendas, tudo feito pela mais afamada modista da capital. Foram residir no suntuoso palacete, onde ele morara com sua falecida mulher, no centro histórico de Évora.     

Não se passou um mês, quando estourou a notícia de que Constantino morrera. Os parentes levaram ao delegado a suspeita de que ele poderia ter sido envenenado, afinal era um homem muito rico e alguém seria beneficiado com a sua herança, ainda mais que a morte fora súbita, sem que ele estivesse acometido de alguma doença.

A autoridade policial, por descarrego de consciência e para se eximir de futuras responsabilidades, mesmo não se tratando de morte acidental ou violenta, fez sumária investigação e diligências, inclusive exigindo laudo médico, assinado por uma junta. Não se constatou o menor indício de homicídio ou de envenenamento. Apenas foi encontrado, na prateleira superior de um armário, um frasco de um litro, contendo uma beberagem, que se apurou ser de ervas, talvez para fim medicinal.

Começaram a surgir os mais desencontrados boatos na cidade. Alguns diziam tratar-se de uma “garrafada”, verdadeira panaceia, produzida pelo Gonçalo Rezador. Gonçalo, ao fazer as suas orações, umedecia o rosto, as mãos e o peito do doente com um molho de vassourinha, que ele molhava numa bacia de suposta água benta. Também fornecia suas famosas “garrafadas”. O doente lhe dava o quanto podia e queria. Às vezes o pagamento era feito por meio de produtos, como cereais, capões, ovelha, etc.

Outros, mais realistas ou mais maledicentes, chegaram a afirmar que a beberagem era um produto afrodisíaco, feito de exóticos ingredientes, que, pelo uso excessivo durante a lua de mel, terminara por envenenar Constantino. Por cúmulo de maldade, alguns levantaram a hipótese de que Ângela, industriada por sua família, poderia ter adicionado algum tipo de veneno, que não deixava vestígio, à “garrafada”. O suposto afrodisíaco teria sido preparado por um mandingueiro, residente depois do Bairro Floresta. Mas nada disso foi comprovado.

Seja como for, o certo é que os irmãos de Constantino entraram com um processo, invocando a legislação e a jurisprudência vigentes na época, para anular o casamento, sob as alegações de que o comerciante já estava senil e não possuía juízo perfeito na época das bodas, pois já estaria caduco, e que o casamento não se consumara, posto que Ângela continuaria virgem.

Acrescentaram ainda que as núpcias teriam sido apenas um ardil, uma fraude, para que a adolescente  e sua família se apropriassem da riqueza do “de cujus”. Os mais detalhistas, fora dos autos, chegaram a dizer, em linguagem chula e desabrida, que a precária (se é que ainda existia alguma) ereção do comerciante seria insuficiente para romper o hímen de uma cabrocha nova e acochada como a viúva.

Devidamente citada para se defender, Ângela contratou os serviços do mais brilhante advogado da cidade, Antenor Vasconcelos, formado na famosa faculdade de Direito do Recife, solteiro, e considerado pelas moças casadoiras de Évora como um bom partido e como um belo tipo de homem.

Em seu bem localizado e bem mobiliado escritório, o causídico conversou longamente com a sua constituinte sobre os fatos alegados pelos autores, inclusive sobre a vida conjugal e íntima dela com seu falecido esposo. Dizem que o doutor Antenor Vasconcelos saiu encantado com a juventude e com a inefável beleza de Ângela, então na flor de suas quinze primaveras, mas já revelando um caráter forte, decidido, ornado por bela inteligência e sabedoria de vida. De fato ela demonstrava ter muito discernimento e maturidade para a sua idade. Seu sinuoso corpo ainda desabrochava para mais incisiva beleza, a plena beleza do auge da mocidade.

Na contestação, o advogado disse que tudo que a inicial afirmava não passava de mentiras e aleivosias; que a peça estava eivada de maledicências, sem nenhuma prova e sem nenhuma possibilidade de comprovação; que o laudo cadavérico e a sindicância realizada pela autoridade policial não comprovara absolutamente nada. Era, portanto, inepta e estapafúrdia a petição inicial, pelo que pedia o seu imediato arquivamento.

Não se sabe ao certo se movido por maliciosa curiosidade ou se por que achasse a diligência relevante para o deslinde da causa, o digno representante do Ministério Público requereu perícia médica para comprovar se Ângela fora ou não deflorada pelo marido, cuja impotência para o coito fora arguida na inicial. Essa providência foi prontamente deferida pelo magistrado. Antenor teve nova e secreta conversa reservada com Ângela. Dizem, aliás, que bastante longa, e a porta fechada. Não mais voltaram a se encontrar sem que houvesse testemunhas.

Imediatamente, ele ingressou com um requerimento, no qual pedia ao juiz para reconsiderar seu decisum; não foi atendido. Manejou, em tempo hábil, recurso para o Tribunal de Justiça. Cinco meses depois a corte o indeferiu. No mês seguinte Ângela foi submetida à perícia, na forma da lei, inclusive com a participação de assistentes indicados por ambas as partes.

Foi constatado que ela não era mais virgem. Todavia, os peritos não souberam responder a dois quesitos, que eram considerados fundamentais pela parte autora e pelo promotor de Justiça. Não souberam precisar a data do defloramento e nem quem o teria praticado. Portanto, em decisão fundamentada, a Justiça presumiu que ele teria ocorrido logo após as núpcias e que o seu autor só poderia ter sido o falecido marido da periciada.

Meses depois Antenor e Ângela se casaram, em cerimônia discreta, sem festa, e com poucos convidados. Para sempre os eborenses ficaram com a dúvida sobre quem teria efetivamente desvirginado a matronal dona Ângela.

A maioria, contudo, acreditava que o seu defloramento teria sido a única chicana perpetrada pelo notável, competente e conspícuo Dr. Antenor Vasconcelos, que depois veio a ser um dos melhores prefeitos de Évora.”