HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XVIII

O lendário Zé Lolô

Elmar Carvalho

Logo no início d’ O Liberal tive a ideia de escrever pequenos textos em prosa sobre algumas figuras lendárias, populares e folclóricas de Évora, para publicar nesse periódico mimeografado e no jornal mural do liceu. No futuro, quando eu tivesse condição financeira, iria reuni-los em livro, acrescidos ou não de outros perfis que viesse a escrever. Nesse tempo não se falava em indenização por danos morais, ao menos em nossa cidade. De modo que por isso e também por causa de certo destemor próprio da idade, não me preocupei com essas evocações. É claro que tive algum cuidado, em certos episódios, como mudar o nome do protagonista e omitir ou mitigar algumas nuanças das histórias, para evitar briga com familiares do personagem.

Quando eu tinha em torno de seis anos, fui com meu pai participar de uma missa dominical, cedo da manhã, na matriz de São Gonçalo, após a qual iríamos assistir a um faroeste estrelado por Giuliano Gemma, no Cine Galileia. Quando ultrapassamos a feira ou mercado de venda de peixes e aves, como capote, pato e galinha caipira (nessa época não havia as de granja), meu pai se virou para mim, e disse em voz baixa:

– Marcos, preste atenção naquele homem que vem ali...

Meu pai não precisava me chamar a atenção para aquele homem, se é que ele era realmente um homem, tal a magnitude de sua feiúra. Há quem diga que é pecado comparar-se um homem a um macaco, embora o cientista Charles Darwin de certa forma o tenha feito. Mas o fato é que a criatura parecia um misto de chimpanzé, gorila e homem. Seus cabelos e barba eram desalinhados, opacos e duros como crinas de cavalo. O caminhar era desengonçado e bamboleante como o de um símio.

De estatura abaixo da mediana; no entanto era forte, entroncado e de membros grossos e curtos. Tórax musculoso e repartido. Os bíceps eram avantajados, como se fossem os de um pequeno Maciste, que eu conhecia através da tela panorâmica do velho Cine Galileia. Trajava uma esgarçada camisa de mangas curtas, aberta ao peito, o que deixava à mostra os braços e o peito de densos pelos hirsutos. Conduzia um cofo de palha de carnaúba ao ombro e segurava uma fieira de pequenos peixes espetados num cipó, a que davam o nome de cambo.

Meu pai me esclareceu que ele era um pescador, mas que também vendia lenha e água, retirada de alguma das várias cacimbas do lago Galileia, para algumas famílias do centro da cidade. Na época o sistema de abastecimento d’água ainda estava sendo implantado, e aos poucos ia se expandindo, do centro para a periferia. Já então estava inativo o antigo cata-vento do principal chafariz.

– O nome dele é José Malaquias, mas é conhecido como Zé Lolô, pois as pessoas ignorantes acreditam que ele vira lobisomem – acrescentou meu pai. Como eu lhe indagasse sobre o que era um lobisomem, meu pai esclareceu:

– É um bicho muito malvado, perigoso, valente, feio, cabeludo e fedorento, mistura de lobo e homem.  

Nada mais ele disse e nada mais lhe perguntei. Não mais revi Zé Lolô, que parecia, no dizer do povo, o cão em figura de gente. Soube que veio a falecer um pouco depois, afogado, ao tentar desenganchar uma tarrafa, prisioneiro de sua própria armadilha, de modo que não mais voltei a ouvi falar nesse esquisito personagem. O medo que senti quando o vi pela primeira e única vez, e que me provocou alguns pesadelos, foi aos poucos arrefecendo, e terminei por esquecê-lo quase completamente.

Contudo, quando fui escrever a série de artigos a que me referi acima, lembrei-me dele para ser a matéria inicial. Conversei sobre Lolô com alguns colegas do liceu, tendo um deles me dito que seu vizinho lhe contara, certa vez, uma estarrecedora história desse misterioso homem. No dia combinado, o meu colega me levou até a casa de seu vizinho, cujo nome era Francisco Cardoso. Cardoso então me narrou uma tenebrosa narrativa, que resumirei a seguir.

Vivia da venda de peixes, lenha e água potável, conduzida numa espécie de pipa rolante, chamada “roladeira”, protegida por dois aros de borracha, que ele puxava com o uso de um cambão. Morava numa casinha muito pobre, de taipa e palha, quase uma tapera, em local próximo ao centro da cidade, alagadiço na época das chuvas, conhecido como baixa. As portas e as janelas eram tapadas por esteiras de palha. O casebre tinha somente dois dormitórios, separados apenas por um tapume de palmas de babaçu. Num deles ficava o casal, no outro, oito filhos, sendo três meninos e cinco meninas, das quais três púberes.

O senhor Cardoso, um tanto constrangido e penalizado, aduziu que corria o boato de que o próprio Lolô se encarregava de deflorar as filhas, pois, segundo ele mesmo justificava, “não ia plantar melancia para os outros comerem”. Diziam que quando os seios das meninas começavam a despontar e ele notava que as axilas começavam a ter penugem, mandava a garota subir num galho de árvore, para examinar se “a ‘fruita’ já estava ficando inchada”, e, portanto, de vez.

Elas o acompanhavam nas pescarias, noturnas ou diurnas, para levarem algum utensílio e para tratarem os peixes, tirando-lhes as escamas e as vísceras. Enquanto ele pescava com uma tarrafa, lançando-a em diferentes locais, elas, debaixo de uma árvore ribeirinha ou resguardadas por uma moita, usavam os anzóis.

Muitas vezes a tarrafa enganchava numa pedra ou em alguma raiz; Zé Lolô, homem de muita coragem e longo fôlego, então mergulhava, para desembaraçá-la. Em duas ou três ocasiões, ao fazer esses mergulhos, foi atacado por jacaré. Atracou-se com o bicho, trazendo-o para fora do rio, até dominá-lo e esfaqueá-lo. Chegou a ser comparado a Tarzan, pois numa das películas da época esse herói cinematográfico cometia essa façanha, que hoje seria considerada de pequena monta, sem nada de espetacular. Ganhou notoriedade com essa proeza, embora alguns dissessem que isso não passava de “história de pescador”.

Um caçador, conhecido de Francisco Cardoso, lhe narrou que certa feita foi fazer uma caçada, numa noite de quinta para sexta-feira. O céu estava um tanto nublado, e nem sempre a lua cheia se mostrava em toda sua glória. Mas, no momento em que os cachorros latiram desesperados, a acuar um bicho, ela saiu de uma grande nuvem escura, e brilhou com toda intensidade. O caçador viu que eles rodeavam um grande animal, de espécie que ele jamais vira.

O bicho era peludo e tinha o tamanho de um urso, embora não fosse gordo e demonstrasse ter muito mais velocidade e agilidade. Em determinado momento, o homem viu as suas orelhas grandes e pontudas, e os seus olhos brilhantes e vermelhos como dois tições em brasa viva. Apontou-lhe a arma e atirou. A assombração, que só podia ser um lobisomem, soltou um alto e pavoroso esturro de ódio e dor. Deu um enorme pulo por cima dos cães, e seguiu mata adentro como um raio. As pegadas eram enormes e não se pareciam com a de nenhum outro bicho da região.

O caçador jurava com a mão sobre a bíblia que a sua história era verdadeira, e que a marmota era um lobisomem. E que o lobisomem era Zé Lolô, pois dias depois ele ainda apresentava um ferimento no ombro. Todavia, Francisco Cardoso, para não passar como tolo ou bisonho, arrematou sua narrativa dizendo que tudo talvez não passasse de “história de caçador.”