Hello, Calligaris!

HELLO, CALLIGARIS!

E eis que somos tomados pela notícia da morte, ocorrida no dia 30.03.21 e em decorrência de câncer, de Contardo Calligaris, o psicanalista italiano que veio ao Brasil proferir palestras nos anos oitenta e acabou ficando de vez. Fez mais que isso: não só adotou o Brasil como sua pátria, como também o levou ao Divã, segundo noticia a edição da Folha de São Paulo de 31.03.2,  jornal no qual, desde abril de 1999, manteve, por mais de vinte anos, uma coluna no caderno Ilustrada e para a qual escrevia, sempre às quintas-feiras, sobre os mais variados temas, que iam do aborto à violência, mas sempre interligados com a política, a cultura e a sociedade.

Em reportagem e análise assinadas por Sylvia Colombo e Francesca Angiolillo, respectivamente, na edição mencionada, tomamos conhecimento de que “ao longo da vida e nas duas últimas décadas no Brasil, foi um fino observador da cultura, do comportamento e dos rumos do país de adoção”. Com formação em Psicanálise, foi na França, como anota a reportagem, que ele aprofundou os conhecimentos da psicanálise estudando nada mais nada menos do que com Jacques Lacan e Michel Foucault, tendo, ainda, Roland Barthes como orientador de sua tese em semiologia.

Autor de mais de uma dezenas de livros, o que inclui dois romances, de acordo com Francesca Angiolillo,  analista da Folha, “sua obra mais ambiciosa talvez seja ‘Hello, Brasil’, ensaio em que põe o país no divã, numa complexa tentativa de o interpretar à luz de conceitos psicanalíticos,mas voltados para um público não especializado”. É deste livro que quero falar.

De fato, em 1991, Contardo Calligaris publicou, pela Editora Escuta, de São Paulo, o livro intitulado "Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil, no qual, dentre outros análises de fundo psicanalista e com a intenção de entender o Brasil, ele conta que o país e os brasileiros sempre se ressentiram da ausência de um significante nacional. Segundo ele, os sintomas dessa carência retroagem à data do descobrimento do país e podem ser identificados a partir da denominação que lhe foi dada. Diz ele no livro: “Impressiona-me mais ainda o próprio significante “Brasil”. Que extraordinária herança do colonizador para o colono este significante nacional, que eu saiba o único que não designa nem uma longínqua origem étnica, nem um lugar, mas um produto de exploração, o primeiro e completamente esgotado” (CALLIGARIS, São Paulo: Escuta, 1991, p. 23). Para ele, foi no antropofagismo que se encontrou a solução para trabalhar as dificuldades aparentes do significante nacional. Utilizei-o como uma das minhas referências na dissertação de mestrado, que resultou publicado em livro com o título "Do cumprimento do dever de fundamentar as decisões judiciais: morte dos embargos de declaração, o Macunaíma da dogmática jurídica". Fazendo aproximações em direito e literatura, eu sustento que o abastardamento do recurso processual denominado “embargos de declaração” tornaram-no algo parecido com o "herói sem nenhum caráter", da famosa rapsódia de Mário de Andrade. E foi assim que, a partir dos aportes teóricos de Contardo Calligaris (“Hello, Brasil!”), Peter Kellemen (outro brasilianista, autor de "Brasil para principiantes: venturas e desventuras de um brasileiro naturalizado"), Dante Moreira Leite ("O caráter nacional brasileiro"), Roberto da Matta ("Carnavais, malandros e heróis" e "O que faz o brasil, Brasil?"), Lívia Barbosa ("O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual do que os outros") e Sérgio Bath (Brasil brasileiro: reflexões sobre o caráter nacional"), dentre outros, fiz um estudo antropológico da ideia do mito das três raças tristes, da cordialidade, da malandragem (também jurídica), do jeitinho brasileiro e seus reflexos na cultura jurídica e na formação do caráter nacional brasileiro.

Em “Hello, Brasil!”, na primeira edição de 1991, e reedito em 2017, Calligaris lembra que a frase que o acolheu na sua chegada ao Brasil foi a seguinte: “Este país não presta”. Em outro trecho do livro, retomando o tema da carência de significantes, ele destaca que “os amigos europeus que conhecem de perto ou de longe o Brasil, sobretudo os amigos analistas, se encantam com a constatação de que no Brasil “falta pai”, o que, para os franceses, serviria para confirmar a famosa afirmação, atribuída presumidamente a Charles De Gualle, segundo a qual “ce pays n”est pás sérieux” (este não é um país sério)

Para Calligaris, o Brasil, como é típico de qualquer país colonial (ou que ainda, não se emancipou, eu diria) é um prato cheio para a psicanálise, por isso se diz que ele colocou nosso país no divã.

Mas, de toda sorte, ao final do livro, ao comentar uma carta que recebe de uma brasileira, se enche de esperança de que um dia “‘brasileiro’ poderia ver a ser também uma razão de ser, ou pela qual talvez a razão de estar fundadora se transforme um dia numa razão de ser” (Calligaris, 1991, p. 172).

Ao final, refletindo sobre o que o faz pensar que era possível ser (no sentido ontológico) brasileiro, conclui da seguinte forma: “A alguém que me pergunta um dia: ‘Então, presta ou não presta?, ocorreu-me responder com uma observação que devia a Octavio Souza. ‘Este país não presta’ talvez se ouça no equívoco, como quando, tentando seduzir uma mulher que se mostra surda às nossas propostas, podemos carinhosamente protestar: ‘Mas você não presta’”.

Nada mais atual, não? Sobretudo quando nossos interesses (pessoais)  são contrariados, quando confundimos o público com o privado, próprio de quem diz assim: “Sou um cidadão de bem, formado, e pago meus impostos em dia”. Só que, em boa parte das vezes, não dura seis segundos, o tempo suficiente para uma busca no site da Receita Federal.

Hello, Brasil! Mostra tua cara! Salve salve, Calligaris!

The, 02.04.21.

J. L. Rocha do Nascimento