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Franz Kafka disse: “Deveríamos apenas ler livros que nos mordem e espicaçam. Se a obra que lemos não nos desperta com um golpe de punho sobre o crânio, qual é a vantagem de ler?".
A imagem do “golpe de punho sobre o crânio” chamou minha atenção de imediato. Pensei em todos os livros que, de alguma maneira, haviam deixado sua marca em mim. Embora nem sempre tenha apreciado as sensações provocadas, não posso negar que eles tiveram o mérito de me fazer refletir sobre assuntos que normalmente não me disponho a pensar.
Recentemente passei por uma experiência assim. Ao ler O Náufrago (Companhia das Letras, 2006), do escritor holandês Thomas Bernhard, compreendi exatamente o que Kafka quis dizer quando usou a palavra golpe. Cada página era um soco no estômago e, muitas vezes, para não ir a nocaute, fui obrigada a parar a leitura, permanecendo quieta, com o livro aberto em meu colo, me esforçando em absorver o impacto das ideias que iam sendo jogadas sobre mim.
Logo no início o primeiro golpe: “Quando passamos dos cinquenta, nós nos vemos como pessoas vis, sem caráter; a questão é quanto tempo suportamos essa situação. Muitos se matam aos cinquenta e um” (p. 32). Quando li esse trecho, confesso: minha primeira reação foi de revolta. Afinal, em poucos meses estarei completando 50 anos e como não me considero uma pessoa vil e sem caráter, senti-me ofendida e indignada. No entanto, esse sentimento não durou muito. Quando me acalmei, compreendi (ou pelo menos acredito ter compreendido) que o autor apenas colocou em palavras (duras, não posso negar) o sentimento de muitas pessoas (incluindo eu) quando o tema é a passagem do tempo.
A verdade é que, até os 50 anos, o universo parece estar sempre cheio de possibilidades e desafios. Depois dos 50 – salvo algum episódio transformador – é que a nossa visão de mundo realmente se modifica. Percebemos que as tais possibilidades se reduziram e começamos a acreditar que, a partir de então, estamos vivendo uma espécie de tempo emprestado. Há um sentimento inconfesso de que uma fronteira importante foi ultrapassada. A juventude ficou para trás e adentrou-se em um território desconhecido que alguns chamam de maturidade e outros de velhice. E a partir desse ponto fica impossível não se pensar na morte, na própria morte. E convenhamos, essa é uma daquelas ideias difíceis de ignorar. E quando esse pensamento torna-se uma obcessão, o suicídio é apenas mais uma escolha a ser feita.
Algumas páginas adiante o autor escreve: “Na teoria, nós entendemos as pessoas, mas na prática não as suportamos; na maioria das vezes nos relacionamos com elas apenas a contragosto e as tratamos sempre do nosso ponto de vista” (p. 110). Outro golpe. Quem quer ouvir (ou ler) que não suporta (e, portanto, não é suportado por) ninguém, nem mesmo o melhor amigo, o marido (ou esposa), o filho, mãe ou o pai? Isso não parece certo. Contudo, aqui também é preciso se distanciar, tentando entender o que o autor quer nos transmitir. Se conseguimos, logo percebemos que por detrás da acidez dessas palavras há uma verdade evidente.
Na maior parte do tempo, desejamos moldar os outros à nossa imagem e semelhança. Não aceitamos com facilidade quando divergem de nós e se aceitamos o fazemos a contragosto, porque no fundo queremos que os nossos pontos de vista sempre prevaleçam. No entanto, mesmo assim, não suportamos a solidão, aspiramos sempre a proximidade do outro, mesmo que seja apenas para brigar e discutir. Talvez seja como diz Thomas Bernhard, “... muitos são felizes porque estão atolados na infelicidade” (p. 87).
Ao longo das 140 páginas d’ O Náufrago seremos atingidos por outros tantos golpes. Todos eles esmurrando alguma parte importante e, especialmente, sensível da nossa mente. É impossível permanecer indiferente ao texto: odiamos ou amamos, não há meio termo. Eu posso dizer que passei pelos dois extremos. Odiei porque fui obrigada a encarar as várias partes sombrias que existem dentro de mim; mas, em seguida, reconheci as qualidades de um texto que, literalmente, morde, espicaça e nos golpeia repetidas vezes.
É claro que tudo que escrevi é a minha interpretação da obra. O autor – como tantas vezes acontece – pode não ter pensado em nada disso. De qualquer maneira, essa, com certeza, não é uma leitura de final de semana ou de férias. Não é nem mesmo uma leitura para fim de noite, a não ser que você queira ficar sem dormir. É uma leitura que exige enorme capacidade de concentração e análise. E isso significa dispor de tempo para absorver os golpes que o nosso crânio, com certeza, receberá. Se você não tem medo de enfrentar esse desafio, essa é uma leitura que eu recomendo!