Elmar Carvalho

 

No dia 12 de março, no salão Vip do Iate Clube de Teresina, Francisco Cardoso comemorou suas oito décadas de existência, e aproveitou para lançar o seu mais novo livro – Solar dos Furtados. Havia me pedido para eu falar nessa solenidade. Como não me tenha sido possível compulsá-lo antes, resolvi dizer algumas palavras sobre seus livros anteriores, que conhecia bem. Tentarei fazer um resumo do que disse.

Sobre Memórias da adolescência ressaltei que ainda lhe conheci o embrião, manuscrito em grafite. Certo dia do ano de 1993 ou 1994, Francisco Cardoso me apareceu na extinta SUNAB, que então funcionava no prédio do Ministério da Fazenda, atendendo recomendação, acredito, de seus sobrinhos José Ataíde e Carlos Cardoso, irmãos maçônicos e velhos amigos. Conversei com ele e lhe dei algumas sugestões, no que fui coadjuvado por Adrião Neto, também fiscal dessa autarquia federal.

O livro foi editado um pouco depois e continha prefácio de minha lavra. Foi ilustrado por versos e fotografias de minha autoria, para minha honra e gáudio. Foi feita uma segunda edição, praticamente fac-similada. É muito importante para a história recente ou imediata de Campo Maior, uma vez que, de forma sucinta, narra episódios interessantes e engraçados de pessoas do povo, mas que faziam parte da paisagem humana da cidade; muitas marcaram época por suas idiossincrasias e excentricidades.

O autor, dotado de memória prodigiosa e detalhista, traça o perfil biográfico e psicológico de cachaceiros, boêmios, seresteiros, instrumentistas, prostitutas, operários etc., ao tempo em que narra episódios hilários, interessantes ou mesmo pungentes, de que eles foram protagonistas. A obra também contempla narrativas lendárias, que mais cedo ou mais tarde poderiam cair no esquecimento, em face da fragilidade da história oral.

Em suas páginas desfilam figuras como Bodão, Corega, Poldra, Zé Bocoso (este tinha fama de virar lobisomem, nas noites de plenilúnio), Chagas Porca, grande sanfoneiro, que ainda tinha a habilidade de dançar com alguma cachopa do meretrício, enquanto tocava o seu instrumento musical. Alguns desses perfis foram publicados em Geração Campo Maior – anotações para uma enciclopédia, de Reginaldo Gonçalves de Lima, já falecido, obra notável que tive a honra de prefaciar, e que bem merece ser reeditada, pela sua importância historiográfica e cultural para Campo Maior.

Na parte autobiográfica, em que são contados fatos de sua meninice, adolescência e juventude, constam episódios que encerram lição de vida, e outras façanhas jocosas. O texto que mais me provocou gargalhadas está contido nesse livro, sob o título de Jumento Preto. Já o trecho intitulado Morte de um amigo, que narra o sacrifício do cachorro Rex, de forma quase covarde e ingrata, me provocou funda tristeza, porque me fez recordar nossas saudosas cadelinhas Anita e Belinha. O autor discorre ainda sobre costumes, culinária, festejos e folguedos campomaiorenses, além de alguns fatos, como crimes ou traições, que tiveram muita repercussão na época.

Muito do que foi dito sobre Memórias da adolescência é aplicável ao Memórias de Campo Maior. Acrescento que neste último foram citados os principais sobrados, casarões e logradouros, muitos já destruídos pela incúria do Poder Público e pela falta de sensibilidade de particulares. Foram mencionadas “figuras da noite”, tais como Vicentim, Maria Pau-d’Arco e Mira, donos de freges (misto de restaurante popular e botequim).

Relatou Cardoso como era feito o abastecimento d’água, em geral por meio de “roladeiras” ou de carroças com pipa, cujas águas eram retiradas de cacimbas à margem do Açude Grande ou trazidas da localidade Lindoia, muito afamada pela qualidade do precioso líquido. Falou ainda de transportes e do comércio, inclusive do extrativismo da maniçoba, tucum, cera de carnaúba e babaçu.

Cardoso narrou, como já disse, muitos casos curiosos ou humorísticos. O autor, com riqueza de pormenores e com sua maneira peculiar e engraçada de contar “causos”, é mestre em provocar o riso ou em atrair a atenção do leitor. Em minha meninice cheguei a ouvir umas buzinas fortes e melódicas, verdadeiros instrumentos musicais altissonantes. Como nessa época tudo era analógico, pensei que existisse nelas algum mecanismo de corda, semelhante aos de realejos e caixas musicais. Cardoso, todavia, nos esclarece que as buzinas eram ligadas a um teclado, que o motorista, com dote artístico, dedilhava.

Sobre o Solar dos Furtados quase não pude emitir comentários, porquanto só o vi na ocasião de seu festivo lançamento. Contudo, esclareci que me tornei amigo de vários membros dessa família, entre os quais cito Cristina do Vale e Silva, seus pais João Capucho e dona Consolação (já falecidos), seus irmãos João Francisco, Augusto César e Otaviano Furtado do Vale, este ainda vivo no panteão de minha saudade; seus primos José Ataíde, Carlos Cardoso e o arquiteto Olavo Pereira da Silva Filho.

Nessa festa natalícia e cultural revi Antônio Francisco Cardoso Costa e sua irmã Isabel (Bebel), os quais não via há mais de 40 anos, desde quando eles, com seus pais, foram morar na capital dos alencarinos verdes mares bravios. Enfim, foi uma noite de muita emoção e lembranças. Como disse o poeta, “Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade”. Haja coração!...