A casa em que Fontes Ibiapina morou, no bairro Porenquanto, subúrbio de Teresina, era bastante visitada por amigos, escritores, estudantes e um tanto outro de pessoas interessadas em seus conselhos jurídicos e em suas opiniões literárias. Era uma casa movimentada. No quintal havia uma área cimentada, circundada por um jardim rústico, mas expressivo, com plantas decorativas e moitas de arbustos de verde intenso, chapiscadas por pontos amarelos e vermelhos das flores que se abriam e se fechavam à mercê do tempo. O jardim emoldurava o ambiente das conversas noite adentro. O restante do imenso quintal era repleto de árvores frondosas, tendo ao centro um campo improvisado para o jogo de futebol da meninada, rodeado por pés de manga, pitomba, ata, jaca, goiaba, laranja, tangerina, banana, cajá, umbu... Frutas aos montes; meninos também, alardeando pelos quatro cantos da casa, baladeiras no pescoço, petecas no cós do calção, os pés sempre feridos dos espinhos do terreno e das topadas costumeiras. Oito anos era a idade média, uma idade em que Fontes Ibiapina daria tudo, títulos e cargos, para voltar a ter.
 
A infância sempre representou um algo especial na vida de Fontes Ibiapina. Admirava-a com expressividade; observava-a com atenção; captava os sinais traduzidos em palavreados e formas de comportamento, trejeitos e zangas, risos e choros das crianças. Era um estudioso da vida nordestina e dos seus tipos humanos. Queria um dia ter criado o Museu do Menino Nordestino, onde exporia bugigangas que se perderam em meio à devastadora modernidade, como o apito de chamar nambu, a xícara em formato de rosto, o prato com um desenho ao fundo, a baladeira, o avião de buriti, o carro de lata, o triângulo e as petecas – todos instrumentos sem os quais a infância não teria tanto entusiasmo. Na abertura de Terreiro de Fazenda (2003, póstumo), uma citação de Manuel Bandeira: “A usura fez tábua-rasa / Da velha chácara triste: / Não existe mais a casa... / Mas o menino ainda existe”. Hoje, o vídeo-game, a televisão e o computador entretêm a meninada – não se fazem mais quintais como antigamente.
 
Gostava de caçar passarinho com baladeira, quando era criança, o que não o tornava diferente das demais crianças interioranas. Usava uma capanga a tiracolo, cheia de pedrinhas. Nasceu dessas lembranças a inspiração para escrever Memórias de um Canário, que compõe a coletânea de contos em Brocotós (1961). Montava arapucas, rodava pião, nadava nas lagoas. Viu-se crescer. Tocava pífaro feito de taboca, dançava forró, namorava nas redondezas, arrancava de sua adolescência a inspiração para os personagens de seus contos e romances. Teve amizades inseparáveis, a quem dedicou o livro Terreiro de Fazenda. Disse ele: “A todos os meus colegas de infância, uma amizade que nunca morre”. Faziam parte desse círculo José de Moura, o Zé Beê; Otacílio Fontes Caminha, tocador de rabeca; Otoniel de Paula Sousa, o Totó, bonitão e cobiçado; Leão Sombra do Norte Fontes, tio Léo; João Fontes de Aguiar, o João de Doca, seu confidente para assuntos amorosos; e Manoel Fontes de Aguiar, o Manoel Timóteo, companheiro de farras. Estudou as primeiras letras na casa de tio Quincó, no lugar chamado Vaca Morta, arredores de Picos. Foi alfabetizado com 13 anos. Com 21 anos, veio para Teresina e matriculou-se no Colégio Diocesano. Foi quando conheceu Clarice, sua “nunca deslembrada” Clarice, com quem viveu feliz para sempre. Em cada amizade, em cada paixão, em cada ponta de terreiro havia sempre uma inspiração espreitando, pronta para fazer parte de sua vida literária.
 
Nas noites de conversas no jardim da casa do Porenquanto, recebia as visitas em cadeiras de balanço, dispostas no cimentado em meio a uma atmosfera que exalava jasmim. Algumas garças, já empoleiradas, anunciavam que a vida era um pouco mais do que pessoas circulando. As conversas muitas vezes eram perturbadas pela meninada, que o chamava insistentemente para contar histórias antes de dormir. Netos e filhos não abriam mão daquele costume, daquele momento mágico em que se transportavam para reinos encantados ou se transformavam em heróis a salvar princesas encarceradas. Não tinha jeito: Fontes Ibiapina pedia licença, deixava alguém da família fazendo sala para as visitas e tomava o rumo do quarto. O cenário era uma cama enorme, com colchão de molas. Deitava-se ao centro, enquanto os meninos o cercavam, atenciosos. As princesas eram salvas; o pavão misterioso voava livre; João e Maria enganavam a bruxa; Ali Babá guardava tesouros; o Gato de Botas corria léguas; e tantas outras histórias, que encantavam a infância e embriagavam a imaginação. Depois, voltava para as suas visitas, satisfeito, enquanto cada menino buscava o seu canto, para dormir mais satisfeito ainda.
 
Não há como negar que ele viveu para contar histórias, para registrar momentos, para enriquecer e preservar a cultura piauiense. Nascido nos arredores de Picos, no dia 14 de junho de 1921, na fazenda Lagoa Grande, desde cedo desenvolveu a capacidade de guardar tipos e ambientes, e descrevê-los com cruel dose de realismo em sua obra literária. Embora a impossibilidade desfaça o desejo de voltar a ter 8 anos, Fontes Ibiapina conseguiu satisfazê-lo nos personagens que criou, nas situações que descreveu, na convivência dos filhos e dos netos, nas travessuras de menino – fatos que nunca o abandonaram. Orgulhava-se da memória: “Modéstia à parte, a memória ainda nos ajuda a reprodução de quase tudo que cantamos quando menino” (em Terreiro de Fazenda). Uma memória prodigiosa, diga-se de passagem. Em rodas de amigos, recitava Navio Negreiro, de Castro Alves, encenando o vigor dos seus versos.
 
Em meio a um mundo de livros, cuidadosamente organizados em sua biblioteca, tirou o maior proveito possível do sossego que Clarice protegia. Escrevia e lia insistentemente no tempo que lhe sobrava, quando não estava às vias com os processos que nunca acumulara como juiz da Vara de Família. Quando faleceu, em 10 de abril de 1986, os processos sob sua responsabilidade estavam todos despachados, nada pendente, nada que o acusasse de dar morosidade à Justiça do seu Estado. Outra coisa: Fontes Ibiapina não levava trabalho para casa nem literatura para o seu local de trabalho. Sabia separar as duas profissões que abraçou com tanto esmero.
 
Em casa, recebia muitos livros, enviados por editoras ou pelos próprios escritores que já o conheciam Brasil afora. Um grande exemplo está no oferecimento a punho de Jorge Amado, em seu livro Tocaia Grande – a face obscura: “Querido amigo, mestre romancista”, inicia o baiano. “Estou saindo em viagem para a Europa e levo comigo para ler com o interesse que tenho por seus romances o exemplar de ‘Eleições de Sempre’, que teve a gentileza de me enviar”. E finaliza: “Sou seu leitor, admirador e amigo. Jorge Amado”.
 
Desde 1958, quando lançou o seu primeiro livro, Chão de Meu Deus, de contos, que a sua produção não parou mais. Estava na época com 37 anos. Escreveu livros de contos (17), romances (7), folclore (10), teatro (1) e ensaios (3), além poesias e regionalismos lingüísticos. Foram 38 livros produzidos, deixando 20 inéditos, dos quais 5 publicações póstumas, o que lhe dá uma média de quase dois livros por ano. Um de seus trabalhos de maior fôlego foi Paremiologia Nordestina, cuja primeira edição saiu em 1975, quando estava com 54 anos.
 
Dotado de uma veia literária aguçada, lançou-se ao desafio de ordenar as expressões mais usuais que enriquecem a linguagem nordestina. Não contava uma história, como sempre fez, mas inúmeras histórias, pois cada expressão em Paremiologia Nordestina representa a própria cultura popular. O ousado projeto de reorganizar as expressões constantes neste livro, inclusive com umas pitadas inéditas deixadas nos manuscritos de Fontes Ibiapina, tem o crédito da neta Laila e da filha Jamira Ibiapina Caddah. Com essa iniciativa, a sua memória continuará perpetuada no caprichoso trabalho de pesquisa, que foi a essência de sua vida profissional.
 
Fontes Ibiapina, quando morreu, tinha 65 anos. Acordou às seis horas da manhã, como sempre fazia. Preparava-se para mais um dia de trabalho no Fórum de Parnaíba. Tinha o hábito de levantar-se cedo, em sua casa de sobrado, na Rua Pedro II. Dormia sozinho, em um dos quartos do segundo andar, que possuía um pequeno terraço com vista para a rua – ideal para leituras e contemplações. Clarice já tinha feito a grande viagem, sete meses antes. Pouco depois das seis da manhã, sentiu dores fortes no peito. Em menos de quinze minutos estava morto. Infarto fulminante. Nada mais havia que fazer. Acabou-se o homem.