FLAGRADOS
Por Margarete Hülsendeger Em: 03/07/2013, às 15H03
Viver é desenhar sem borracha.
Millôr Fernandes
Demorei um tempo para decidir se devia escrever sobre esse assunto. Tinha medo de parecer ultrapassada. Afinal, todos os dias surgem novidades que, de uma forma ou outra, não só me surpreendem, mas me deixam bastante assustada. Por outro lado, é difícil ignorar o que está acontecendo à minha volta. Assim, resolvi que o melhor era enfrentar o tema de uma vez.
Há muitos anos (tipo 40!), eu acreditei estar perdidamente apaixonada por um colega de aula. Esse menino era um sonho: loiro, de olhos azuis, educado e gentil. Em minha defesa posso dizer que havia outras meninas também apaixonadas por ele. Contudo, do alto dos meus dez anos, não tinha dúvidas que o nosso destino era ficar juntos e vivermos felizes para sempre.
Pois bem, uma tarde, no meio de uma aula, decidi ser audaciosa. Em uma folha de caderno derramei todo o meu amor – com direito, inclusive, a corações cor-de-rosa – por esse menino. Depois, sem pensar muito, dobrei o papel e pedi a uma colega que o passasse adiante. O problema é que a mesa do menino ficava longe da minha – umas três fileiras, se bem me lembro – e essa colega tinha de passar para outra para que a mensagem chegasse às suas mãos. O destino, no entanto, não foi misericordioso com o meu “caso de amor”. No meio do caminho, a professora interceptou o papel.
Meu rosto assumiu várias cores: branco de susto, vermelho de vergonha e verde por conta da vontade, quase incontrolável, de vomitar. Naquela época os professores não eram tão cuidadosos com os sentimentos dos alunos. Ao contrário. A professora – Sílvia era seu nome – abriu o papel, leu o bilhete em voz alta e clara e me passou uma descompostura na frente de todos os meus colegas. Um verdadeiro pesadelo que eu, apesar do tempo, não consegui esquecer.
Agora você deve estar se perguntando: “Tudo bem, e daí?”.
Daí que se essa história tivesse acontecido nos dias de hoje, minha vergonha poderia ter sido bem menor. Como? Simples, fazendo uso de uma coisa chamada spotted – do inglês “na mira” ou “flagrado”.
Se você, como eu, não sabe o significado disso, vou dar uma rápida explicação baseada em uma matéria de jornal que achou interessante abordar o tema. Spotted são páginas no Facebook que funcionam como correios amorosos tentando concretizar relacionamentos platônicos. O menino ou a menina que não conseguem fazer uma aproximação direta recebem ajuda de um amigo (ou moderador) que se predispõem a dar uma de cupido. O interessante – ou seria melhor dizer, insólito – é que tudo é feito no anonimato. O cupido pode se transformar em vários cúpidos que vão enchendo a página com mensagens de encorajamento e dicas que têm como objetivo reunir os corações apaixonados. Tudo sem citar nomes!
Voltando ao meu caso particular. Se há 40 anos existissem spotteds minha mensagem chegaria ao destinatário sem a professora sequer suspeitar. Além disso, ela receberia, ao longo do caminho, incrementos, ou seja, outras mensagens que reforçariam o que eu no início queria dizer. A grande pergunta, no entanto, é: se tudo ocorre no anonimato como o casal, virtualmente apaixonado, consegue concretizar a sua relação começando assim um namoro normal?
Pois é, eu também no início não consegui entender. Precisei reler a matéria para alcançar um nível mínimo de compreensão. O anonimato é fato, mas existem as dicas, tipo migalhas de pão que são jogadas pelos que participam do spotted para permitir que os apaixonados se encontrem. Conta-se, por exemplo, onde o encontro aconteceu (bar tal, na rua tal, numa hora determinada), depois se dá sinais de quem seriam as pessoas (camiseta que estava usando, capa do celular, cor do cabelo...) até que, enfim, os dois apaixonados se reconhecem e começam a trocar mensagens entre si. Não há garantias de que depois de todo esse processo o menino e a menina comecem a namorar, mas, segundo a matéria, alguns relacionamentos já tiveram, por conta do spotted, um início mais ou menos promissor.
Se você continua confuso, não se preocupe, eu também me sinto assim. Por isso, no início deste texto, declarei-me ultrapassada. Essas novas experiências proporcionadas pelo mundo virtual são realmente surpreendentes e difíceis de serem aceitas por quem, durante muito tempo, acreditou que lápis e papel fossem mais do que suficientes. É claro que esses novos processos têm as suas vantagens, o anonimato é uma delas. Afinal, se o outro lado não sabe com quem está se comunicando a possibilidade de se magoar é bem menor. Contudo, me pergunto: o que essa gurizada está perdendo por viver virtualmente? Aliás, no mundo virtual vivemos ou apenas fingimos que vivemos?
Perguntas difíceis. Com um amplo espectro de respostas possíveis. No entanto, darei a minha opinião, pedindo desculpas antecipadas se ela parece meio fora de moda. Para mim, nada substitui a interação pessoal direta. Nada. Facebook é legal, eu admito, mas é só isso, legal. Quando se quer algo mais é preciso o olho no olho, uma conexão que nenhuma internet é capaz de dar, pois só ela poderá dizer se aquela experiência é real e, o mais importante, se vale a pena seguir adiante.
Meu namorico com aquele menino não deu em nada. A exposição da professora nos deixou muito envergonhados, mas quer saber? Não me arrependo. Pelo menos eu soube em primeira mão que ele não era o meu “príncipe encantado” e, o mais importante, minhas palavras não foram jogadas em uma “nuvem” aleatória. Tudo ficou resolvido naquela tarde e eu aceitei o resultado de cabeça erguida, apesar de ter o coração partido. Desculpe o clichê, mas viver é assim mesmo, dar o rosto a tapa, esperando que isso nos sirva de lição porque, parafraseando Millôr Fernandes, viver é desenhar sem ter a oportunidade de usar a tecla delete.