ELMAR CARVALHO

 

No sábado, em companhia da Fátima, atendendo convite do professor, museólogo e ator Paulo de Tarso Libório, que foi entregue na APL pelo ilustre magistrado e historiador Lirton Nogueira, fui a José de Freitas para participar da Festa da Restauração da Casa Grande da Fazenda Ininga. Já a conhecia, de vezes anteriores, desde que ela foi adquirida pelo Paulo, seu atual proprietário. Nessas duas ocasiões, ele me mostrou os dormitórios e as demais dependências da casa, e me contou algumas coisas sobre sua rica história. Sua construção remonta ao ano de 1823.

 

A vetusta casa, no imaginário do povo simples, como toda morada secular, é povoada por fantasmas de antigos moradores. Pertenceu a importante estirpe livramentense, os Sampaio Castelo Branco. Muitos membros dessa velha família ficaram na História do Piauí. O padre Joaquim Sampaio e o engenheiro Antônio José Sampaio nasceram nela. O primeiro foi um grande orador sacro e jornalista; confessor da princesa Isabel. Eleito deputado geral, com o advento da República não pôde assumir o cargo. O segundo foi o fundador da Fábrica de Laticínio de Campos, hoje Campinas do Piauí. O transporte das peças da fábrica foi uma verdadeira odisseia, que custou muito trabalho, esforço e dinheiro, em que muitas reses morreram exaustas nessa luta, que se revelou inglória.

 

A fábrica, bem situada, em termos de terra, gado e pastagem para criação extensiva, não o era em termos de logística de transporte e distribuição. Em pleno agreste, numa época em que não havia estrada e nem carro, ficava muito distante do Parnaíba e dos centros consumidores. O sonho do engenheiro Sampaio malogrou, em meio a dívidas e insatisfação dos colonos trabalhadores, a maioria de origem italiana. Hoje, existe um outro sonho; restaurá-la, e transformá-la em museu e espaço cultural. Alguns utensílios da velha fábrica estão expostos na Ininga, em recinto que homenageia o engenheiro e empresário. O Paulo Libório anuncia escrever um ensaio sobre a Ininga, e pelo que lhe conheço da personalidade até os fantasmas terão vez e voz.

 

Nas minhas visitas anteriores, permitiu-me tirar fotografias, que serviram para que eu ilustrasse o meu poema Livramento: Pedra e Abstração (roteiro sentimental de José de Freitas). Mandei confeccionar um banner e fui deixá-lo no casarão onde ele morava em Teresina, que na verdade era um museu de arte sacra, exposto em cenário arquitetônico apropriado. Portanto, mais do que um museólogo, o Paulo de Tarso, sobrinho de Dom Paulo Hipólito de Sousa Libório, que por muitos anos foi bispo da episcopal Parnaíba, é um criador de museu. Ele colocou o banner em bela moldura, e o afixou numa das salas do solar, para honra e gáudio meu.

 

Quando cheguei, já ocorrera o Ofício de Nossa Senhora. O terço já fora recitado e a procissão de Nossa Senhora da Piedade, protetora da Fazenda Ininga, já circulara no entorno da casa grande, situada no alto de suave colina, de onde se tem uma bela visão das árvores nativas, que dão um aspecto bucólico ao lugar. Essas duas primeiras partes da Festa tiveram a participação do Grupo de Canto Litúrgico Homens do Terço da paróquia livramentense.

 

As pessoas já estavam sentadas no grande alpendre da vetusta casa, esperando o início da missa, no momento de minha chegada. Procurei um lugar vago, e este não me poderia ser mais propício, pois fiquei perto dos amigos Lirton e Marcelino Leal Barroso de Carvalho, meu mestre no curso de Direito; ele restaurou, na sua Amarante, a Festa do Divino, e a exemplo do anfitrião também criou um museu, no caso, o do Divino Espírito Santo. Antes do início da missa, mantivemos breve conversa, sobre assuntos diversos e aleatórios.

 

Enquanto a celebração religiosa não tinha início, pude ouvir, por breve momento, o canto metálico de cigarras, que também aconteceu durante o culto, quase em surdina, como se esses insetos não quisessem perturbá-lo, mas também desejassem dele participar, rendendo sua prece musical ao Criador. Devo confessar que também ouvi a melodia aflautada de um sabiá, que parecia vir de um frondoso oitizeiro, talvez secular, que se erguia perto da varanda, à sombra do qual várias pessoas preferiram ficar. Como uma bênção do céu, debulhada em gotas, houve até um rápido chuvisco, que contribuiu para refrescar o tempo.

 

A canícula, que nos trazia o cheiro do incenso, espargido pelos turíbulos, movimentados como pêndulos perto do altar, vinha amena e refrescante. Enfim, a natureza, as nuvens, os pássaros e as cigarras pareciam desejar contribuir para o brilhantismo da Festa da Restauração. Até o pequeno sino do alpendre, uma espécie de aldraba da casa, deu a sua contribuição, quando fez dueto com as campainhas, de timbre mais argentino, com as suas badaladas mais graves e mais encorpadas, na hora da consagração das hóstias.

 

A música, mais do que sacra, foi divina. O Madrigal Vox Populi nos encantou com belos cantos em latim, entre os quais destaco Kyrie Eleison, Gloria in Excelsis Deo, Credo in Unum Deo. Os seus componentes estavam devidamente paramentados, o que dava um aspecto mais solene e mais antigo ao grupo, com o uso de vestes talares e capuz. A participação do Coral Homens do Terço parecia vir de dentro da casa, o que dava ao responso um ar quase sobrenatural, como se o canto viesse de mais longe ou talvez das entranhas da terra. Não sendo eu entendido em música sacra não posso afirmar categoricamente, mas tive a impressão de que dois ou mais números eram cantochões gregorianos, magníficos, embora quase monocórdios, como são esses cantos.

 

Em suma, em tudo parecia haver o perfeccionismo e detalhismo do professor Paulo de Tarso Libório, desde a beleza do convite e do folheto da missa, até a escolha e disposição das peças, que compõem o museu, inclusive a ambientação dos dormitórios, das salas e das acomodações dos trabalhadores (senzala). Tudo ele reconstituiu meticulosamente. As madeiras que já não existiam foram substituídas por outras igualmente antigas, encontradas em taperas ou velhas casas demolidas. Ele ainda, com o auxílio do Lirton, conseguiu uns ladrilhos artesanais, que ainda eram fabricados em Campo Maior.

 

Chegou mesmo ao requinte de adquirir algumas reses da raça pé duro, para que a Fazenda da Ininga ficasse ainda mais caracterizada como tal. Retornou, o máximo possível, a casa ao seu projeto original, tendo para isso arranjado trabalhadores, que talharam pedras jacaré com machado. Mandou retirar um forro, que conspurcava a antiguidade do solar. Ouvi falar que ele mandou destelhá-lo, para que as telhas fossem lavadas uma por uma, e depois repostas, de modo a não haver goteiras. O perfeccionismo do meticuloso anfitrião se refletiu até no almoço, que foi supimpa, farto e saboroso.

 

A última e definitiva prova desse gosto apurado e detalhista foi o brinde da festa, distribuído na porteira de saída da velha Ininga: uma pequenina e artesanal panela de barro, com um arco de arame, para servir de pegador. Detalhe: o arame era antigo, e nele se viam os vestígios da passagem do tempo, como um símbolo da antiguidade da casa grande da Fazenda Ininga, de muita glória, fama e história.