ELMAR CARVALHO

 

Mais de quinze atrás, um corretor da Urbapi me ofereceu um jazigo no cemitério da Ressurreição. Querendo arredar de mim o medo de morrer, comprei logo um jazigo com três gavetas. Felizmente, de lá para cá, nem eu e nenhum parente próximo morremos, exceto, recentemente, minha mãe. Contudo, ela havia manifestado o desejo de ser sepultada em Campo Maior, no cemitério do bairro Cidade Nova, em local que demarcou, ao lado do túmulo de seu irmão Antônio Horácio de Melo. Portanto, o meu jazigo continua virgem, e assim espero que permaneça por vários anos.

 

Quando menino, eu tinha enorme medo de perder meus pais. Acho que esse é um receio de todo jovem. Todavia, em minha idade atual, sentindo que o estado de saúde de minha mãe se tornara extremamente grave, tentei aceitar com resignação o termo de seus dias. Consolei-me com o fato de ter tido uma excelente mãe, durante 57 anos, o que é um raro privilégio, e também com a convicção de que ela continuará viva, numa das moradas de Deus, certamente melhor do que qualquer uma do nosso planeta.

 

Nas minhas primeiras viagens aéreas, tinha muito medo de que o avião viesse a cair, conquanto soubesse que esse era considerado o mais seguro meio de transporte. Depois, entendendo que de nada adiantava esse sentimento, resolvi deixá-lo do lado de fora da aeronave, para não ficar sofrendo à toa.

 

Na época em que adquiri o jazigo, passei a esforçar-me para entender a morte como um acontecimento natural; a compreendê-la como parte integrante da vida, e como pórtico de entrada para o seu prolongamento, talvez numa outra dimensão ou noutro plano, conforme prefira o leitor. Não sei se alcançarei esse meu difícil desiderato, mas continuarei tentando até o fim, ou seja, até a morte, para ser mais explícito. Claro, não me refiro a morte violenta, que esta é sempre impactante e quase inaceitável.

 

Ouço falar que algumas pessoas rezam para ter uma boa morte. Tenho ouvido dizer que algumas pessoas anunciaram o dia em que morreriam. E acertaram com (invejável?) precisão. Não sei qual seja a vantagem em sermos profeta de nossa própria morte. Eu preferia adivinhar o número de um bilhete lotérico. Todos nascemos do mesmo modo: parto natural ou cesariano. Entretanto, como dizia minha mãe, ante os prepotentes e arrogantes, ninguém sabe como irá morrer.

 

Existem os que buscam a morte, como os suicidas, e os que parecem desejá-la, como os que se colocam em situação de perigo, seja pelo temperamento precipitado e irascível, seja por se arriscarem em aventuras ou esportes ditos radicais. Alguns consideram os suicidas como sendo corajosos, outros os rotulam de covardes. De minha parte, creio que sejam pessoas acometidas por desesperança e depressão, geralmente por causa de dívidas, paixão incorrespondida ou doença incurável, que lhes tira momentaneamente o discernimento. Mas prefiro, seguindo o conselho de Cristo, não fazer julgamento, e acreditar sempre na bondade imensurável de Deus, e que, afinal, todos seremos resgatados.

 

Cada homem tem um fim único, individual. Em algum aspecto a morte de uma pessoa se distingue da de outra, seja pelo sofrimento, pelo modo de enfrentá-la ou pela doença e sua evolução. Muitos têm o hábito de frequentar velório, seja por solidariedade, seja na busca de recompensa, no objetivo de que o seu próprio funeral venha a ser bem concorrido. Um dos títulos da Mãe de Jesus é Nossa Senhora da Boa Morte. Logo, existem devotos de Maria, sob essa invocação.

 

No seu livro de memórias A nuvem, o jornalista Sebastião Nery conta que, ao morrer dona Beatriz, sua bisavó, mulher muito alta, o caixão, encomendado em outra cidade, não lhe comportou o corpo. Não havendo tempo para que um outro caixão fosse providenciado, o coronel José Augusto Vaz Sampaio, tio-avô do memorialista, homem determinado, disse que a decisão tinha que ser sua. Mandou que as irmãs saíssem do quarto onde o cadáver estava sendo velado. Como se fora um novo Procusto, empunhando uma machadinha, não hesitou em lhe cortar as pernas, de modo que todo o corpo coube na urna, embora esquartejado. Resolveu assim, a golpe de arma branca, como Alexandre frente ao nó Górdio, um problema que parecia insolúvel.

 

Conversando com um amigo, enquanto caminhávamos no calçadão da Raul Lopes, contou-me ele que seu pai, homem precavido, ao atingir 70 anos de idade, tratou de comprar sua urna funerária. Sendo ele um homem de pequeno porte, o caixão era igualmente pequeno, e ele o guardava no guarda-roupa, para não incomodar familiares, que acaso receassem contemplar tal objeto fúnebre.

 

Tinha ainda esse homem o cuidado de escovar e limpar sua urna anualmente, para escoimá-la de inevitável poeira e livrá-la de eventual cupim, inexorável em sua missão de devorar e destruir madeira, seja ela usada em admirável obra de arte ou em prosaico caixão de defunto. Perguntei ao meu amigo, se o seu pai, qual hodierno conde Drácula, não teria dormido nesse caixão, onde ficaria livre de incômodo raio de luz, que pudesse lhe perturbar o sono. Ele sorriu, e negou tal prática mórbida e de tradição vampiresca.

 

Acrescentou que o seu velho viveu ainda por mais de duas décadas, após a compra do paletó de madeira. Creio que a morte, diante desse homem de pequena estatura, mas de alta coragem, afastou-se por esse tempo todo, e esperou que ele ficasse bem idoso, e com isso mais frágil. Ante esse fato, estou até pensando em praticar o mesmo estratagema, para que a “indesejada das gentes” me deixe em paz por mais algum punhado de tempo.