Jurista Evandro Lins e Silva
Jurista Evandro Lins e Silva

Reginaldo Miranda[1]

 

O terceiro piauiense a ocupar o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal e, também, o quarto a ocupar uma cadeira efetiva na Academia Brasileira de Letras foi Evandro Cavalcanti Lins e Silva. Nascido na ilha de Santa Isabel, próxima à cidade de Parnaíba, no norte do Estado, em 18 de janeiro de 1912.  Seu pai, o pernambucano Raul Lins e Silva, era Juiz de Direito da vizinha comarca de Araioses, no Maranhão, tendo a esposa grávida, D. Maria do Carmo Cavalcanti Lins e Silva, vindo ganhar o filho em terra piauiense. Esse episódio, anos mais tarde seria lembrado por seu amigo, o também jurista Tales Castello Branco:

 

“Apesar de seu pai judicar no Maranhão, preferiu que o filho nascesse no Piauí, mais precisamente na região de Parnaíba, que era, no início do século XX, localidade próspera e produtiva do nordeste, graças ao extrativismo do babaçu e da carnaúba, matéria-prima utilizada na fabricação de discos. Para cumprir esse desejo, o dr. Raul alugou naquela localidade uma pequena casa, dias antes do parto, o qual seria realizado por um médico conhecido”[2].

 

Evandro Lins e Silva, cursou quase todo o ensino primário em escola pública na cidade de Itapecuru, no Maranhão, onde seu pai passara a exercer a magistratura, e terminando no Recife. Nessa última cidade matriculou-se no Ginásio Pernambucano, onde cursou as três primeiras séries do ginasial, mudando em seguida para o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, onde cursou a última e todas as do curso clássico, concluindo-o em 1928.

No ano seguinte matriculou-se no curso jurídico da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, a única da época, depois Faculdade Nacional de Direito, hoje integrada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde concluiu o bacharelado em 19 de novembro de 1932, com 21 anos incompletos. Foi paraninfo da turma o Prof.º Afrânio Peixoto.

No tempo de estudante trabalhou na página de polícia do jornal Diário de Notícias, de grande circulação, fazendo a cobertura de julgamentos criminais. Então, assistindo acirrados debates onde primavam a eloquência, os gestos teatrais e a defesa de grandes teses jurídicas feitas com sagacidade e competência, impressionou-se vivamente e decidiu que seu destino seria aquelas tribunas. Um dos criminalistas de que mais admirava era o velho e afamado Evaristo de Morais, cuja atuação muito o impressionara. Ele mesmo confessa em seu livro O salão dos passos perdidos, como frisa Tales Castelo Branco: "... fiquei fascinado por aquilo! Achei que encontrava ali o meu caminho".

Na imprensa ainda prosseguiria atuando nos jornais A BatalhaA Nação e O Jornal, neste último assinando uma crônica diária, na seção forense, com o pseudônimo de Lobão.

Na advocacia especializou-se em matéria penal e desenvolveu intensa atividade profissional, até o ano de 1961, atuando no Tribunal do Júri, nos juizados criminais, nos tribunais superiores e no Supremo Tribunal Federal, defendendo processos de grande repercussão, inclusive em matéria política, perante o Tribunal de Segurança Nacional e a Justiça Militar. A partir de novembro de 1937, em pleno Estado Novo, tomou atitudes contrárias ao governo, defendendo gratuitamente mais de mil presos políticos, no que ganhou nomeada como paladino das liberdades e do regime democrático.

Em 1947, ao lado de João Mangabeira, Hermes Lima, Domingos Velasco, Alceu Marinho Rego, Rubem Braga e Joel Silveira, foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Em face dessa atuação política e de exercer a advocacia em defesa dos ideais de liberdade, foi apontado pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), como comunista. Posteriormente, ao tomar conhecimento desse fato, com a liberação dos arquivos no ano 2000, reagiu:

 

“Se esse é o serviço secreto brasileiro, ele é muito pouco eficiente. E depois é falso. Não é verdade. Eu jamais pertenci ao Partido Comunista, jamais liderei grupos de assessores esquerdistas. Eu era chefe da Casa Civil do presidente João Goulart”.

 

Em 1956, foi contratado como Professor da Cadeira de História do Direito Penal e Ciência Penitenciária, no curso de doutorado da Faculdade de Direito do então Estado da Guanabara, onde lecionou até 1961.

Foi correspondente da ONU no Brasil para matéria penal e penitenciária, juntamente com os professores Lemos Brito e César Salgado, por designação do ministro da Justiça, Cyrilo Júnior.

A partir de 1961, gozando da amizade e confiança do vice-presidente e, depois, presidente João Goulart, inicia uma importante fase de sua vida profissional, exercendo cargos de destaque na administração pública, a saber: procurador-geral da República, no período de 26 de junho de 1961 a 23 de janeiro de 1963 e Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, de 24 de janeiro a 11 de junho de 1963.

Nomeado ministro das Relações Exteriores, exerceu as funções no período de 18 de junho a 14 de agosto de 1963, conduzindo-se de forma corajosa e independente na defesa do regime democrático e da autodeterminação dos povos. Nesse aspecto, enfrentou a política de dominação dos Estados Unidos da América que, a pretexto de combater o comunismo no contexto da Guerra Fria, visava submeter a América latina. Porém, encontrara no chanceler brasileiro a mais firme resistência.

Por fim, por decreto de 14 de agosto de 1963, da lavra do presidente João Goulart, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, na vaga aberta com o falecimento do ministro Ary de Azevedo Franco, tomando posse no dia 4 de setembro seguinte.

Durante essa judicatura na Suprema Corte, funcionou como relator e proferiu votos em mais de cinco mil processos — alguns deles chegando a ser publicados na Revista Trimestral de Jurisprudência do STF. E participou do julgamento de mais de uma centena de presos políticos, como dos intelectuais Caio Prado Júnior, Ênio Silveira e dos ex-governadores Mauro Borges e Miguel Arrais. Nesse período, concedeu habeas corpus que desagradaram os militares recém-instalados no Poder. Em face desta desassombrada atuação foi violentamente afastado das funções e compulsoriamente aposentado em 16 de janeiro de 1969, com base no Ato Institucional n.º 5 (AI – 5), de 13 de dezembro de 1968, juntamente com os ministros Victor Nunes Leal e Hermes Lima. Todavia, as vagas não foram preenchidas em virtude do Ato Institucional nº 6, de 1º de fevereiro de 1969, que reduziu de 16 para 11 o número de ministros, restabelecendo, assim, a composição anterior ao Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965. Inobstante a violência do ato típico de um regime ditatorial, em sessão de 5 de fevereiro daquele ano, recebeu significativa homenagem da Corte, quando falaram o presidente em exercício, ministro Luiz Gallotti, o Dr. Décio Miranda, em nome da Procuradoria-Geral da República, e o Prof. Francisco Manoel Xavier de Albuquerque, pelos advogados.

Um pouco antes de seu afastamento do Pretório Excelso, no ano de 1968, lecionou Direito Penal no Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB).

Depois de aposentado, voltou à advocacia fazendo parceria, primeiro com o civilista Nelson Motta e, a partir de 1974, com o sobrinho Técio Lins e Silva, tendo patrocinado causas rumorosas no Tribunal do Júri, nos tribunais superiores, inclusive o processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, na qualidade de advogado dos presidentes Barbosa Lima Sobrinho e Marcelo Lavenère Machado, da Associação Brasileira de Imprensa e da Ordem dos Advogados do Brasil, respectivamente.

Evandro Lins e Silva foi advogado atuante até os últimos dias de sua vida, sendo também conceituado jurista, autor de diversas obras versando sobre o direito subjetivo e adjetivo penal, ciência penitenciária e autobiografia, entre os quais pode-se citar:  A defesa tem a palavra – o caso Doca Street e algumas lembranças (1991); Arca de guardados (1995), contendo discursos, prefácios e pronunciamentos; O salão dos passos perdidos (1997), contendo depoimentos autobiográficos prestados entre 1994 e 1995 ao Centro de Pesquisa e Documentos de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, no qual relata sua trajetória de vida.

Durante sua longa e bem sucedida carreira profissional ocupou o cargo de Conselheiro Federal da OAB em vários períodos, entre os anos de 1944 e 1961, e, depois de aposentado, de 1983 a 1995. Sobre essa participação lembra o já referido jurista Tales Castelo Branco:

 

“No Conselho Federal da OAB, Evandro participava da bancada do Piauí, embora residisse há muito tempo no Rio de Janeiro. A presença dele como representante do Estado nordestino era essencialmente honorífica, apesar de ostentar os mesmos direitos e deveres dos demais conselheiros da Casa. Era comum incluir na representação do Conselho Seccional dos Estados o nome de um colega de destaque. Assim explica-se a presença de Evandro como membro da bancada piauiense, apesar de residir e advogar no Rio de Janeiro”.

 

Também, ocupou os cargos de membro permanente do conselho técnico e presidente da Sociedade Brasileira de Criminologia; do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, no governo do Presidente José Sarney e quando ministros da Justiça o deputado Fernando Lyra e o senador Paulo Brossard; da Associação Internacional de Direito Penal (Grupo Brasileiro); e, da Sociedade dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio de Janeiro (SACERJ).

Em 1994, foi presidente da comissão designada pelo ministro da justiça, Maurício Corrêa, para a elaboração do Anteprojeto de Lei de Reforma da Parte Especial do Código Penal, tendo realizado um Esboço, com base nos estudos e trabalhos produzidos pelas três subcomissões em que se dividia o grupo, para uma melhor ordenação das tarefas de que cada uma delas ficou incumbida.

Como reconhecimento à excelência de seu trabalho, recebeu as seguintes condecorações: Medalha Rui Barbosa, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o que lhe deu direito de voz em suas reuniões; Medalha Teixeira de Freitas, do Instituto dos Advogados Brasileiros; prêmio Helder Câmara, de Direitos Humanos, conferido pela seccional da Ordem dos Advogados de Pernambuco; e, o prêmio Clóvis Beviláqua, da Ordem dos Advogados do Ceará; Gran Cruz de la Orden El Sol Del Peru, em Lima, Peru, em 20 de agosto de 1963; Ordem do Mérito Jurídico Militar em 3 de abril de 1959; Medalha do Mérito Cultural da Magistratura pelos serviços prestados à Cultura Jurídica Brasileira, em 15 de dezembro de 1997; Medalha Rui Barbosa, concedida pela Fundação Casa de Rui Barbosa; Medalha do Mérito José Bonifácio, da UERJ; Medalha da Ordem do Mérito da Fraternidade Ecumênica — Direitos Humanos — da Legião da Boa Vontade; por fim, foi agraciado pela Equitem Ordinis Piani, do Vaticano, na coroação do Papa Paulo VI, em 10 de setembro de 1963, quando chefiou a delegação brasileira naquele evento, de que também estava presente o presidente da República João Goulart.

Conferencista de reconhecido valor participou de diversas conferências promovidas pela Ordem dos Advogados do Brasil, tanto no Conselho Federal quanto nos Conselhos Seccionais, antes de 1961 e depois de 1969, apresentando teses e debatendo os temas discutidos nesses conclaves. Proferiu, também, conferências no Instituto dos Advogados Brasileiros, no qual foi membro do Conselho Superior. E conferências internacionais de Direito Penal, promovidas pela Organização das Nações Unidas (Havana, 1990) e pela Associação Internacional de Direito Penal (Viena, 1989, e Rio de Janeiro, 1994).

Proferiu aulas inaugurais e conferências em várias Faculdades de Direito, em diversos Estados da Federação e figurou como Patrono de várias turmas de bacharéis em Direito, em todo o país.

Entre as tantas homenagens recebidas, foi dado o seu nome — Ministro Evandro Lins e Silva — ao Auditório do Juizado Federal de Juiz de Fora; na Universidade de Campo Grande (Rio de Janeiro), ao edifício em que funciona um Núcleo de Prática Jurídica; e, em Teresina, ao edifício sede da seccional da OAB.

Em 1986, candidatou-se ao Senado pelo Rio e obteve mais de 300 mil votos, fazendo campanha sem investimento financeiro e sem sair do escritório.

Em 1998, Evandro Lins e Silva foi eleito membro efetivo da Academia Brasileira de Letras, tomando posse em 11 de agosto desse mesmo ano, como quinto ocupante da cadeira n.º 1.

Em dezembro de 1999, em justa homenagem, foi escolhido “O Criminalista do Século”, pela Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de São Paulo (ACRIMESP).

Conforme se disse, ao longo de sua trajetória fez-se notável criminologista, tendo de acudir e defender incontáveis acusados e perseguidos políticos em dois períodos ditatoriais que viveu o país. Em muitas ocasiões, contou com a prestimosa ajuda de seu irmão e sócio Raul Lins e Silva, também notável jurista.

Evandro Lins e Silva foi casado com Maria Luisa Konder (Musa), falecida em 1984, com quem viveu quarenta e três anos de união conjugal, deixando quatro filhos: Ana Teresa, Carlos Eduardo, Patrícia e Cristiano, os dois primeiros advogados, a terceira educadora, e o último engenheiro eletrônico e de sistemas e professor de informática na PUC.

Em 12 de dezembro de 2002, recebeu, no Palácio da Alvorada, em Brasília, o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, na ocasião sendo-lhe devolvidas todas as condecorações e honrarias obtidas, ao longo da carreira, que haviam sido cassadas por ocasião do regime militar. Na mesma data foi empossado membro do Conselho da República, cargo para o qual foi eleito pela Câmara dos Deputados.

O ministro Evandro Lins e Silva faleceu aos 90 anos, na cidade do Rio de Janeiro, no dia 17 de dezembro de 2002, depois de ter sofrido uma queda e batido a cabeça ao chão, cinco dias antes, no Aeroporto Santos Dumont, daquela cidade. Foi sepultado no Cemitério São João Batista, recebendo desde então as mais consagradoras homenagens póstumas. Consagrou-se como varão ilustre, jurista de valor e advogado de escol cuja atuação constituiu-se numa trincheira de luta em defesa dos valores democráticos e dos ideais de liberdade.

 

 

 

 


[1] Advogado e escritor, membro da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. E-mail: [email protected]

[2] CASTELO BRANCO, Tales. Evandro Lins e Silva: guardião da honra brasileira.