Escritor Hugo Napoleão (foto: Gp1)
Escritor Hugo Napoleão (foto: Gp1)

“Discutir o percurso de uma vida pode servir como extraordinário ponto de partida para examinar o passado e melhorar a compreensão do presente”.

                                                                       Luís Cláudio Villafañe G. Santos (1)

[Carlos Evandro Martins Eulálio – especial para Entretextos]

                                                    

Um político pensa na próxima eleição, o estadista, na próxima geração”.

 

Essa frase é do escritor norte-americano James Freeman Clarke (1810-1888). Ela nos remete a algumas figuras, como Juscelino Kubitscheck de Oliveira, que se destacou no cenário político brasileiro como um dos grandes estadistas do mundo moderno. Lembrei-me dela, em meio ao atual momento difícil da vida econômica e política brasileira, quando lia o livro Eu fui advogado de JK, de autoria do escritor Hugo Napoleão do Rego Neto (2).  

Numa situação de crise política, por que não pensar no nome de alguém para contorná-la que tivesse o caráter, temperamento e magnanimidade de Juscelino Kubitscheck? Sobre esse aspecto da personalidade de JK, muitos de seus contemporâneos o confirmam, como o diplomata Aluízio Napoleão:

“[...]. Em épocas de crise, graves ou passageiras, assumia o comando, pronto para intervir, preparado para opinar, cheio de paciência para ouvir. Nessas ocasiões, o homem jovial desaparecia, a fisionomia risonha e simpática adquiria um ríctus de seriedade, de força imanente, que lhe dava um aspecto de chefe romano, o olhar firme e a fronte franzida. Suas fotografias desses momentos revelavam, mais do que quaisquer palavras que as pudessem interpretar, a sua atitude varonil. Mas o presidente não perdia a serenidade, não se exaltava.” (NAPOLEÃO, Aluízio. 1988, p.34). (3)

No editorial do Jornal Opção, de Goiânia, intitulado “Procura-se um líder da estirpe de Juscelino Kubitscheck para resolver a crise no Brasil”, o jornalista Euler de França Belém escreveu:

“Por que Juscelino Kubitschek conseguiu governar em relativa paz, num tempo turbulento? Porque era um líder. O verdadeiro líder dialoga com todas as forças políticas, inclusive com as oposicionistas, mas, ao final das conversas, ainda que incorpore algumas ideias dos demais, implementa o projeto que avalia como correto não para os aliados, e sim para o país. O líder é um guia, que, se criativo e positivo, puxa o país para a frente. Era o caso de Juscelino.” (4) 

O livro Eu fui advogado de JK, publicado pela editora ECEAT da Universidade CEAT, São Paulo, em 2019, integra a Coleção Memórias do Parlamento. Cada volume da série trata de um episódio marcante vivido por seu autor e de sua repercussão no cenário sociopolítico brasileiro. O primeiro número da coleção traz o relato biográfico do escritor Hugo Napoleão sobre sua atuação como advogado do presidente JK, perseguido pela ditadura militar em 1964.  

Aos 26 anos de idade, já no exercício da advocacia, o autor fez parte do grupo de juristas que defendeu o presidente Juscelino Kubitschek, quando este foi preso e intimado a responder a uma série de quesitos “com base no Decreto-Lei nº 359, de 17 de dezembro de 1968, e no AI-5. Seguir-se-ia o processo da Comissão Geral de Investigações (CGI).” (5). Além do Dr. Hugo Napoleão, atuaram no processo de defesa do presidente os advogados Sobral Pinto (6), Cândido de Oliveira Neto e Antônio Evaristo de Moraes Filho. (NAPOLEÃO, 2019, p. 21).

Como em toda narrativa biográfica, pelo caráter memorialista, em seu livro, Hugo Napoleão faz um recorte, ao recuperar os momentos mais dramáticos da vida pessoal e política do admirável e inesquecível presidente JK. Momentos estes que se iniciam em 13 de dezembro de 1968, na noite do primeiro dia de vigência do AI-5 (Ato Institucional nº 5), quando Juscelino participava da solenidade de formatura de uma turma de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Teatro Municipal. À saída do evento, ele foi preso por um oficial do Exército e levado ao Forte de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Lá, permaneceu 27 dias, até ser liberado para viver em regime de prisão domiciliar, no apartamento do 7º andar do Edifício Golden Gate, na avenida Atlântica, para onde se mudou com D. Sarah.

No livro Eu fui advogado de JK, o autor declara que narrará “os momentos em que teve o privilégio de conviver com o presidente Juscelino Kubitscheck, alguns de natureza pessoal e outros, de relacionamento profissional”. (NAPOLEÃO, 2019, p.13). Nesta resenha, seguiremos esse percurso cuja relevância recai sobre fatos marcantes da vida pessoal do biografado que aguçam o interesse do leitor, ao recordar os acontecimentos mais significativos da história política do Brasil nos Anos Dourados. (7)

Os trinta capítulos da obra são titulados e precedidos por datas e locais em que foram escritos. Isso facilita a leitura do livro, tornando-a atraente para o leitor, ao primeiro contato com ela. Ressalte-se no livro o aspecto metalinguístico, quando Hugo Napoleão detalha como pôs em execução o seu projeto de texto, iniciado em Helsinque, Finlândia, no dia 25 de maio de 2017, e concluído em Brasília, no dia 3 de novembro de 2018.

A intertextualidade da obra é outro dado relevante do livro Eu fui advogado de JK, permitindo ao leitor o acesso a informações colhidas em outras fontes que testemunharam os acontecimentos mais marcantes da personalidade e da história política do presidente Juscelino.    

Logo nos primeiros capítulos do livro, percebemos que a obra se diferencia de muitas que já se publicaram sobre o presidente Juscelino Kubistchek, quanto ao fato de ter o autor participado dos eventos que relata não apenas como narrador-personagem, visto que, ao mencionar os fatos em primeira pessoa, deles participa não como mero espectador, mas como alguém que também privava da confiança, da amizade e do carinho da família de JK, conforme atesta a filha do presidente, Maria Estela Kubitscheck Lopes, em alguns trechos do prefácio da obra:  

“A ligação entre a família de Hugo e a minha começou em 1935, quando meu pai, Juscelino Kubitschek, foi eleito Deputado Federal. [...] Hugo Napoleão, avô de Hugo e de quem herdou o nome, foi parlamentar na mesma legislatura que papai na Câmara Federal, no Palácio Tiradentes. Um, representando Minas Gerais; o outro, o Estado do Piauí. Os dois iniciaram ali uma amizade sólida e permanente, fortalecida pelas virtudes e afinidades que lhes eram comuns: lealdade, ética, dedicação ao trabalho, respeito aos colegas e, sobretudo bases familiares sólidas.”

“[...] Um dos momentos mais difíceis na vida de meu pai foi quando, depois de cassado, e ao voltar do exílio, viu-se novamente perseguido pelo governo da ditadura, ao ser submetido a uma rotina e frequência cansativa de depoimentos que beiravam o desrespeito e a ilegalidade. Ao ser convocado para depor pela primeira vez, chamou para fazer sua defesa o grande advogado e amigo Vitor Nunes Leal, que veio acompanhado de Hugo Napoleão, o mais novo membro de seu escritório e que se tornou o procurador de JK. Com brilhantismo e muita coragem, Hugo tornou-se o advogado e o precioso amigo de nossa família” (NAPOLEÃO, 2019).

Muitos diálogos entre o autor e JK confirmam essa proximidade, como aqueles relatados nos capítulos 19 (O Leprosário) e 20 (Um afeto Paternal):

No capítulo 19, sobre a candidatura do autor a deputado federal, Juscelino emite a seguinte opinião:   

“Hugo, veja bem: como você sabe, fui tudo nesta república: Deputado Federal, Prefeito de Belo Horizonte, Governador do Estado de Minas Gerais, Presidente da República e Senador. Depois, cassaram meu mandato e suspenderam meus direitos políticos por dez anos. Sofri muito. Comi o pão que o diabo amassou. Nesta circunstância, parece até que se está num leprosário, ninguém quer chegar perto. Há muitos que lhe evitam. Mas se a mim perguntassem: - Juscelino, mesmo sabendo que você iria passar por tudo isso que passou, teria vontade de recomeçar? E eu responderia: Sim! E prosseguiu:  - então, Hugo. Vá para o seu Piauí. Comece sua vida pública. Candidate-se a Deputado Federal e você será vencedor. Eu lhe vaticino uma brilhante vida pública!” (NAPOLEÃO, 2018, p.56-57). Ainda no mesmo capítulo, o autor cita uma passagem relatada por JK que mostra o quanto certas situações são decepcionantes na vida de um político: “Certa vez, logo depois de haver perdido uma eleição, me ocorreu situação que me deu a ideia do que é ser evitado. Um “amigo” vinha em minha direção e mudou de calçada...” (NAPOLEÃO, 2019, p. 58)

No capítulo seguinte, diante da impossibilidade de comparecer ao lançamento do livro “Fatos da História do Piauí” (8), na Galeria de Arte Ipanema, no Rio de Janeiro, em 23 de maio de 1974, Juscelino assim se justifica:

Meu caro Hugo,

Infelizmente tenho de ir a Brasília, a chamado. Daria tudo para ficar aqui a fim de participar do lançamento do seu livro. Acompanho-lhe os passos com um afeto paternal e os seus triunfos me enchem de orgulho. Previ, predisse e profetizei a sua marcha vitoriosa. Meus parabéns pelo 1º passo. Abraços JK.   23-5-74.

(NAPOLEÃO, 2019, p.61)            

Como vemos, o livro não se limita à narrativa de fatos que dizem respeito apenas à participação do autor na construção da peça jurídica de defesa do presidente JK. Enquanto obra memorialista, relata também fatos curiosos e desconhecidos do leitor, como o episódio do Capítulo 4 (O Enfermeiro do Golden Gate): 

 “[...]. Nos primeiros dias de sua prisão domiciliar, o regime colocou um general à porta do edifício. Só estavam autorizados a entrar o seu médico, os empregados, a família, inclusive o seu querido sobrinho Carlos Murilo Felício dos Santos (ex-deputado federal). E ponto final! O que fazer? A solução encontrada foi a de acompanhar o casal como enfermeiro, com a filha Marta Maria no meu colo. O carro entrou no prédio pela rampa em declive de acesso à garagem e tomamos o elevador dos fundos.”

[...]

“Certa noite, em lá estando para “aplicar uma injeção”, avisaram da portaria que iria subir ao apartamento um agente do DOPS para averiguar a suspeita de um estranho que lá entrara. Levaram-me para um quarto de empregada e mandaram que eu ficasse dentro de um armário de alvenaria, atrás dos vestidos!  Assim fiz. Concluída a revista, o agente foi embora e, evidentemente aliviado, pude sair. Acabei dormindo lá.” (NAPOLEÃO, 2019, p.21/22)

No capítulo 17 (O vendaval), o autor registra as principais notícias sobre a cassação do presidente JK, (9) que naquela época tiveram bastante repercussão nos jornais nacionais e estrangeiros, além de comentar as diferentes manifestações de políticos e de outras personalidades a respeito desse acontecimento. Eis como o autor testemunha a reação do presidente ao receber a notícia de sua cassação: 

“JK recebeu a notícia de sua cassação no apartamento em que residia na Avenida Vieira Souto, em Ipanema. Lá fora uma verdadeira multidão se aglomerava. Houve choro compulsivo. Às dez da noite ele compareceu à sacada da varanda abraçado à D. Sarah, ocasião em que os populares deram vivas à democracia e cantaram o Hino Nacional e o Peixe Vivo. (10) Com a voz embargada, disse: “Sei que os meus inimigos me temem porque temem a manifestação do povo e, bem assim, com esse ato brutal, me afastam do caminho das urnas, única manifestação válida num regime verdadeiramente democrático” (NAPOLEÃO,2019, p. 51).  

Ao final do livro, além do índice onomástico, o autor exibe farto material que contém fotos em que aparece com JK, com amigos e familiares do presidente, bilhetes de JK, sobre assuntos de natureza pessoal e profissional, e ilustrações que mostram peças da campanha eleitoral de Lott e Jango, situando o leitor na época em que se transcorreu a última eleição democrática antes do golpe de 1964.

A última página é ilustrada com o quadro dedicado ao autor, em que se vê a foto do presidente, com os seguintes dizeres logo abaixo: “Ao querido amigo e excepcional colaborador Dr. Hugo Napoleão, o abraço afetuoso de Juscelino Kubistchek – Rio, 24/5/71.

Lendo Eu fui advogado de JK, o leitor e todos que se interessam pelo gênero biografia, terão a oportunidade de conhecer na intimidade o construtor de Brasília, que entrou para a nossa história como o presidente que promoveu o mais expressivo crescimento do país com o lema “Cinquenta anos de progresso em cinco anos de governo”.  

 

     

 

NOTAS

 

1. Luís Cláudio Villafañe G. Santos, In Euclides da Cunha: uma biografia. São Paulo: Editora Todavia, 2021.

 

2. Hugo Napoleão do Rego Neto é filho do embaixador de carreira Aluízio Napoleão do Rego. Foi deputado federal, senador e governador do Piauí.  Também ministro da Educação, da Cultura e das Comunicações nos governos dos presidentes José Sarney e Itamar Franco. É membro da Academia Piauiense de Letras, ocupante da cadeira 9, cujo patrono é o poeta Alcides Freitas. Foi eleito em 2021 para ocupar a cadeira nº 20 da Academia Brasiliense de Letras, que pertenceu ao ex-vice-presidente Marco Maciel.  

 

3.NAPOLEÃO, Aluízio. Juscelino Kubitschek: audácia, energia, confiança. Rio de Janeiro: Bloch Ed. 1988.

 

4. Euler de França Belém, em editorial do Jornal Opção, edição de 27/05/2016, nº 2134, acessado em 27.10.2021.

 

5. Na prática, a Comissão Geral de Investigações (CGI) foi usada para intimidar e retaliar opositores da ditadura, com acusações de corrupção. É o que informam os principais órgãos de imprensa da época.

 

6.Heráclito Fontoura Sobral Pinto. Intrépido defensor dos direitos humanos, durante a ditadura do Estado Novo e da ditadura militar que foi instaurada após o golpe de 1964.

 

7. Os Anos Dourados compreendem a década de 1950. Época das transições. Durante esse período aconteceu a corrida espacial entre EUA e a URSS, que resultou na chegada do homem à lua na década seguinte e a vigência do mandato presidencial de JK (1956 a 1961). 

 

8. Fatos da História do Piauí, livro de autoria de Hugo Napoleão do Rego Neto, prefaciado por Deolindo Couto, publicado no Rio de JANEIRO pela APEC Editora S.A., 1974.

 

9. JK foi cassado no dia 8 de junho de 1964. Suspensos seus direitos políticos por dez anos, ele decidiu exilar-se na Europa no dia 14 daquele mês. Ao embarcar, afirmou à imprensa: “Deixo o Brasil porque esta é a melhor forma de exprimir meu protesto contra a violência.” (https://jk.cpdoc.fgv.br/biografia, acessado em 12-12-21)

 

10. Peixe Vivo: Canção do folclore mineiro, preferida de JK. Por onde ele passava era saudado com essa música. Hoje quase um hino de sua cidade natal Diamantina (MG).

 

REFERÊNCIAS

 

LOPES, Maria Estela Kubitscheck Lopes. In prefácio à obra NAPOLEÃO, Hugo (2019).

 

NAPOLEÃO, Aluízio. Juscelino Kubitscheck: audácia, energia, confiança. Rio de Janeiro: Bloch Ed., 1988, p. 34.

 

NAPOLEÃO, Hugo. Eu fui advogado de JK, São Paulo: CEAT, 2019.

 

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