Estamos  mesmo  em  pleno    gozo  da democracia no país?

                                                                        Cunha e Silva Filho

                                                    (Da  Academia Brasileiraode Filologia- - ABRAFIL )

                A censura  à  obra de  Arte  literária está dando sinais de perigosa   atitude de  intolerância com   obras  ficcionais de autores  brasileiros. Foi reaberto  o debate, iniciado  em 2010,  sobre   a  censura a uma obra de Monteiro Lobato (1882-1948) de título Caçadas   de Pedrinho, editada nos idos de 1933.

               A polêmica se originou  em razão de  que a obra   faria  parte de um grupo de  livros  a serem  distribuídos  pelo  MEC às escolas  públicas. Alguém  ligado  a uma instituição de defesa  da  igualdade  de negros e de combate  contra  o  preconceito   racista  interferiu, junto  ao MEC,  para que  o livro de Lobato  fosse impugnando, já que,  na visão  dessa pessoa,   a narrativa de Lobato  continhas    referências   negativas    que a comprometiam  como   obra   racista.

O imbróglio  já  passou por dois  pareceres do Conselho Nacional de Educação e encaminhados  ao MEC. Além disso, foi  objeto de dois  processos movidos   junto  ao Supremo  Tribunal  Federal. Só  está aguardando agora uma audiência de conciliação  com  o  ministro  Luiz Fux para  terça-feira, da próxima semana. 

A grande  questão  que   abre agora,   a partir   do  resultado   dessa  reunião, é a dúvida   do  que  será     estabelecido   pela  Justiça no tocante  ao que  possa  vir a se caracterizar  como  uma   forma  de  censura  ou  proibição,  com a possibilidade  de o livro de Lobato  ser  distribuído  com  ressalvas  de teor   de natureza  censória., i.e.,  permitir a distribuição pelo  MEC   mas tendo  como  condição  prévia , segundo  diz  a reportagem  hoje,   publicada no caderno  Prosa,& Verso de O Globo. “promover a capacitação de professores a fim de sistematizar a abordagem ..” pelos  docentes da questão  do preconceito contra  negros  na educação   básica.   

Ora,  reduzir   a complexidade   interpretativa  de uma  obra  a  uma abordagem  imposta  e didaticamente  unificadora    quanto  à sua  ideologia,   a meu ver,    se constitui  em   grave retrocesso   da liberdade de pensamento e de expressão   criativa  de um   autor. Este é o busílis, correspondente à   expressão  inglesa “That’s the rub” da  questão que  cumpre ser  discutido  sem os interditos   do  poder   público.

Por conseguinte,  obscurantista  e cerceadora  da  criatividade   de um  escritor  passa  a ser  a denúncia  feita  pelo  Sr. Antônio Gomes Costa Neto, segundo  a reportagem de Mariana  Moreira,   técnico em gestão   educacional. A denúncia, formada  de   citação  de  passagens  da obra  lobatiana,  foi  encaminhada  à ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade  Racial (Sppir). Na visão desprovida   de  conhecimentos   no campo  da  narratividade e do que sejam os protocolos  que  norteiam  a  composição   de uma  obra de imaginação,  o  mencionado  técnico alega que  Monteiro Lobato    promove   o preconceito   racial a partir   do tratamento  que  o  escritor  dá a personagens como  a tia Anastácia.

Ora, o  técnico,  naturalmente  como  lhe é inerente  à função, se atém à literalidade (não confundir com “literariedade,” “desfamiliarização”, ou “ostranenie”, ou ainda “estranhamento”,  “desautomatização, ”     da leitura horizontal,  própria da comunicação entre remetente e leitor. (Ver  GRAY,  Martin. A dictionary  of literary terms.Essex, England: Longman, York Press,  3rd impression, 1994, respectivamente, p.83, 206 161), relativos  aos  conceitos formalistas russos.De resto  m  essa concepção de “estranhamento”, para ficar apenas num dos sinônimos  terminológicos  do formalismo russo,  já remonta  a autores ingleses  como os poeta  William Worsworth (1770-1870) no seu “prefácio à obra Lyrical Ballads ((1800)_ e ao poeta Percy Bisshe Shelley (1792-1822), na obra In defence of   poetry (1840). Ver GAY, Martin,  idem,  ibidem.  

Os termos  citados  acima pertencem a concepções teóricas  dos formalistas russos. A   leitura  do técnico relativa à  narrativa        de Lobato não se sustenta. Não tendo,  por conseguinte, nenhuma base  crítico-teórica.

Destarte,  provavelmente  até  por  desconhecimento,   comete  um ato  falho,  dando  ensejo a que  o  associemos  aos tempos  sombrios da ditadura  militar-civil, conforme  ele define a questão  dos  horrores daquilo  que ele a  chama   a concepção dele  de golpe militar, o qual   impediu  a  sucessão de João Goulart (1919-1976))  à  Presidência da República através do que ele denomina  golpe     contra  o agora  denominado  e decantado  Estado Democrático de Direito.

 Em tempos bem recuados, houve ou uma fase  da História  de uma   espécie de Inquisição em que  muito  livros  listados  pelo “Índex,”  tenebroso tribunal  romano  do século XVI, que, em obediência a um cânon do Concílio  de Trento, tinha  o encargo de  analisar  obras que lhe eram  encaminhadas  pelo poder eclesiástico para  aprovação (“Nihil obstat”)   ou para  a sua  proibição. A expressão  Nihil obstat já dava sinal em  publicações  dos irmãs maristas  desde a década dos anos 1920.

 O Brasil, que  já dá grandes passos  para ser um país  maduro  não  pode retroceder  em  práticas terroristas e totalitárias  dos tempos  da Revolução    cultural  chinesa e dos  Gulags    comunistas. A obra de arte literária, e aqui estou,   com todas as letras,   incluindo  Monteiro Lobato,   é um produto construído pela  linguagem, tendo  seu mundo  próprio,  que não  pode ser   confundida  com  a factualidade    da  existência.

 Sua base é a mímesis, ou seja,  uma possibilidade  de  construção,  sob “deformação” da realidade empírica, ou referencial,   de vidas  e de realidades  sociais  respeitando  procedimentos  técnicos próprios parecidos (mera coincidência) ou não  com  a chamada  realidade  empírica, mas que,  conforme  preceitua  Aristóteles,  não  copia  a  vida tal qual  é dentro de nossas   percepções, porém  “inventa”  vidas, presidida pela   imaginação ou imaginário, criados literariamente  graças à   capacidade que  um autor (artista em diversas  áreas culturais, mas  principalmente  literárias), tem  para  dar vida  a  “figuras de  papel”(Roland Barthes) através de uma linguagem desviada  da  linguagem  comunicativa,   oral ou escrita.

No momento em que   vida  se fecha  como   referencialidades e diferenças   ideológicas,  a ficção passa a existir  por si  própria, graças  à  linguagem  própria  do gênero literário. O mesmo  se pode afirmar, segundo já afirmei atrás, das artes em geral.  A censura  é do   domínio da  realidade  pálida  e   cinza. A ficção,   a poesia,  o drama, o teatro  a telenovelas  ,o cinema   são criações  do espírito artístico, da capacidade potencial  de  indivíduos dotados de talento  para explorarem   mundos  invisíveis  ou mundos  do imaginário o de  inventar  “realidades”  que emocionam (catarse) e o fazem  tanto  em maior  potência do que  na vida   pura  e simples  do cotidiano   estéril.   

Segundo um estudioso  da literatura  infantil, Ilan Brenman,  autor de A condenação de Emília: o politicamente correto na literatura  infantil (Aletria)  citado na reportagem,  o que está acontecendo  com  Lobato  poderia  abrir um precedente perigoso e preconceituoso  para que  obras  de  outros autores brasileiros, como  Aluísio  de Azevedo (1857-1913), Júlio Ribeiro (1845-1890) e Castro Alves (1847-1871), entre outros. Daqui a pouco, serão  Graciliano Ramos(1892-1953), Jorge Amado (1912-2001).

 Uma vez, quiseram censurar  a fala de um personagem( !) de uma obra  de  Darcy Ribeiro().  Tal fato, embora  de  modo  diferente,  já está  ocorrendo, conforme  relata  em  breve artigo de  Suzana Velasco, na mesma  página do caderno  Prosa. Somos  informados de  que  o escritor  Dalton Trevisan  teve um livro seu, Violetas  e pavões (Record, 2009)  retirado da relação   de obras  que fariam  parte do concurso de seleção do Colégio de Aplicação da Universidade  Federal de Viçosa (UFV).

 A alegação de  tal  retirada  se deve a  reclamações  de pais e  professores (sic!)  de escolas  e de cursinhos preparatórios  para  ingresso  naquela instituição  federal. Não sabia  que a esta altura do campeonato, a família brasileira   e educadores  estejam  dando   demonstração  de  moralismo   anacrônico  e de hipocrisia   social.   Sabemos  em  que direção  dever-se-ia  dirigir  as nossas    reivindicações  contra a  atual imoralidade   galopante,  o hedonismo  barato e banalizado mostrados  em  séries     de certos devastadores de   festivais   de filmes  violentos  mostrados  tanto em  programas  embrutecedores que antes estiolam ou deformam as  mentes de pessoas  mal  orientadas no plano familiar,  na  tevê brasileira (tipo  Big Brother  et  caterva) quanto nas chamada  novelas de nenhuma qualidade, nas quais  a ética  e os chamados  “bons  costumes”  burgueses ou da classe média sob o lema d um nacionalismo    maquiado   da “Família,  Pátria e Liberdade” que há muito  viraram formas  de  posições  muito conservadoras  sobejamente exibidas os em todos  os cantos  do país principalmente quando o elitismo econômico-político-ideológico vitorianamente   hipócrita  assume  o seu papel  de se  manter  incólume  e se eternizar e lutar,  com unhas e dentes,  contra   forças  de cunho social-democrata,

O conservadorismo,  instrumento drástico   controlador  de qualquer    tentativa  de ser  vítima  dos  grupos, na realidade,   progressistas, tudo faz para que  o círculo vicioso  das hierarquias  consolidadas não se  estratifiquem em camadas  sociais   que possam  perder as já consolidadas prerrogativas  e as regalias  faraônicas  da imutabilidade de mobilidade  na pirâmide social,  ou seja,  passagem  de uma classe  social  a um outra mais  elevada (quebra da assimetria de nível social  (ver Eduardo   Portella) que  o poder   econômico-financeiro    da mesma forma  não crie possiblidade ou brechas  de aludida  ascensão na pirâmide social.

     Onde  estão  os processos   encaminhados  aos  tribunais de  Justiça  do país  para tanta  bandalheira,  corrupção,  hedonismo  e  “malfeitos”  de nossos  políticos e homens  públicos? Qual vai ser  o desfecho  dos condenados do  Mensalão, ou seja,   quem  irá mesmo  para a   cadeia sem as brechas  e subterfúgios   de amplos  e recorrentes  recursos   legais,  por seus  crimes  contra  o Erário  Público?

     Jamais   achei   correta  uma lei  brasileira   que  decreta,   que impõe  de cima  pra baixo,  o crime do preconceito  racial e, neste  ponto discordo  de uma velha crônica  de Rachel  de Queiroz (1910-2003),  ao ficar  emocionada  no exterior  quando  alguém,  dirigindo-se a ela,   elogiava  o país que criara uma lei  contra  o  preconceito   racial. O estrangeiro se  referia à lei Afonso  Arinos.

    O combate ao preconceito  racial – que é um sentimento     abominável  -  deveria ter sido  uma conquista  natural  na cultura     brasileira,  nascido de um combate  constante  na formação   e educação  de  nosso  povo, pelo menos  num combate, sem trégua e de forma  pacífica e sem derramamento  de  sangue,  a partir  da  queda do Império  no país e numa demonstração inequívoca, servindo como uma lição   sincera, espontânea,  sem hipocrisia,    destinada  a vencê-lo, como  disse,  através  da mudança de mentalidade  de um  povo, do resgate   do  elemento  negro    pela via  de condições   de melhoria na saúde,  na escola,  nos aspectos   éticos e no respeito  às diferenças  de cor,  de nível social  e de igualdade  de oportunidades  no emprego,  na universidade  e no direito  de  alguém  poder   assumir  qualquer função   sem  os  crônicos   reflexos oriundos  do nosso passado  escravagista.

A verdadeira  lei  em defesa  dos  negros , sem laivos  coercitivos, ou interditos,   seria  a  que  parte do  interior. de uma verdadeira   mudança  de mentalidade do ser humano,  da compreensão lúcida de que  a pigmentação  diferente  nada comprova  qualquer atitude irracional  racista ou superioridade  de arianos de comportamento  neonazista,    o que, se praticada,  levar-nos-ia a novas formas  de humilhação e preconceitos  hediondos   contra  os povos  negro, quer no  país quer no exterior.

Acato, sim,  a lei contra o  preconceito,  mas,  no íntimo, sei que  ela  não passou de uma  imposição,  de algo  artificial, por vezes  mais  provocador  ou  forte estímulo  de racismo do que  de   harmonia  entre  brancos, pretos e  mestiços.   A harmonia entre  pretos e brancos, que deveria  existir,   esconde, pela  hipocrisia,  o racismo que deve ser  extirpado na consciência  e dignidade  da sociedade  brasileira. Enquanto  houver  hipocrisia,  convencionalismo   legal,  o estigma  persistirá na nossa  vida social.