Ariano Suassuna
Ariano Suassuna

[Bráulio Tavares]

O pensamento das pessoas chamadas normais é como os automóveis no trânsito, e o pensamento dos doidos é uma bicicleta.

O automóvel, teoricamente, poderia andar de ré em plena rua, poderia subir na calçada, poderia dirigir na faixa da esquerda e não da direita, e assim por diante. Poderia fisicamente, é claro. Não o faz porque existem leis, códigos, punições previstas; e existe um consenso geral de que é melhor assim, é melhor que haja proibições e restrições, desde que isso deixe as possibilidades mais claras, e facilite a vida de todo mundo.

A bicicleta, não. O ciclista é um ser estranho, meio esquizóide. Está montado num veículo mas se considera pedestre. Ciclista sobe na calçada, anda na contramão, enfia-se a toda velocidade por um grupo de pedestres, pedala do lado esquerdo, do lado direito... Todo mundo obedece regras, mas o ciclista só obedece sua própria conveniência.

O juízo dos doidos é assim também – pensa o que gosta e o que consegue, e danem-se as outras formas de pensar.

Quando digo “os doidos” não me refiro necessariamente às pessoas com problemas mentais, internas nos manicômios, etc.  Refiro-me a todas as pessoas que pensam “fora do esquadro”, pessoas cujo raciocínio segue leis próprias; e o fazem espontaneamente, e não de forma lúcida e deliberada como o fazem os poetas, escritores, etc.

Exemplo do pensamento de um doido: o primeiro dicionário de polonês foi publicado em 1746, e entre outras definições tinha esta:
 

“CAVALO – Todo mundo sabe o que é um cavalo”.


Este dicionarista é um doente mental? Provavelmente não, mas o raciocínio que o fez redigir este verbete é o típico raciocínio de um doido.

G. K. Chesterton tem algumas excelentes páginas sobre a doidice no capítulo “The Maniac” de Orthodoxy (1908). É dele a famosa frase de que “um doido é alguém que perdeu tudo exceto a razão”. Vale lembrar que Chesterton dizia isso lamentando o doido, e não para celebrá-lo. O sentido profundo de sua frase é de que um doido é alguém incapaz de pensar em diferentes categorias, de compreender um ponto de vista diferente do seu. O doido é alguém “cheio de razão”, como a gente diz na Paraíba para qualificar uma pessoa arrogante, prepotente, que se recusa a entender o ponto de vista do interlocutor.

 

Para Chesterton, a insanidade é quando uma pessoa começa a raciocinar sem partir dos princípios corretos; ela entra num vale-tudo mental, porque a sua razão é “uma razão sem raízes, uma razão que gira no vácuo”. Um pensamento insano, mesmo que articulado de modo aparentemente correto; como certas frases sintaticamente corretas mas que nada dizem, como no caso dos cambueiros que taliscam a bata de qualquer catalunga, sem perceber que o tirambó não calistura, nem as tragas fazem qualquer pinelo.

A doidice – essa doidice – seria um pensamento que perdeu a semântica mas mantém um arremedo de sintaxe.

Chesterton abomina o doido (“o maníaco”) porque, para ele, doido é quem não é cristão, quem não parte dos princípios corretos. Na análise dele não há lugar para o doido engraçado, o doido surrealista, o doido imprevisível. O tipo que ele descreve (com o brilhantismo de sempre) é o monomaníaco, o doido vazio, o doido sem graça. Por isso ele diz que “mesmo os delírios mais poéticos dos insanos só podem ser apreciados por uma pessoa sã; para o insano, sua insanidade é extremamente prosaica, porque é real”.

Acho que foi Henri Bergson, em sua teorização sobre o Riso, quem sugeriu esse ângulo para definir o Humor: é a nossa reação quando vemos alguém se comportar cegamente, de maneira mecânica, encalhada num só tipo de visão, de reação, de raciocínio. Neste ponto há uma convergência interessante com o pensamento de Chesterton, porque esse tipo de personagem é alguém que perdeu tudo, exceto a razão, perdeu qualquer capacidade de pensar, exceto aquele pensamento mecânico que o transforma num cego repetidor de clichês, de palavras-de-ordem ou de mantras que nem ele mesmo entende.

Existem doidos de toda qualidade. Dizer “o Doido” é tão inconclusivo como dizer “o Artista”, porque dentro desse termo cabe um milhão de tipos.

Guimarães Rosa exclama, através do seu narrador de “A Terceira Margem do Rio”: “Ninguém é doido. Ou então todos.” Rosa era fascinado pelos doidos, e um conto como “O Recado do Morro” (hoje incluído no livro No Urubuquaquá, no Pinhém) exibe uma galeria de doidos muito variada.

 


 


Tem o “Catraz”, cientista amador, o homem que inventou um automóvel ainda incompleto, porque só funcionava na descida, “na subida e no plaino ainda não é capaz de rodar.” O Catraz queria voar para a Lua montado numa catrevage puxada por urubus amarrados, bastando-lhe erguer na ponta de uma vara um pedaço de carniça, que faria os urubus levantarem voo para alcançá-la, e como a vara estaria igualmente se elevando, acabariam desembarcando na Lua ou além.

Tem o “Coletor”, doido que vivia rabiscando números nos muros da cidade, contabilizando suas cabeças de gado, suas terras, seus ouros...
 

A doideira dele era uma só: imaginava de ser rico, milionário de riquíssimo, e o tempo todo passava revendo a contagem de suas posses. Escrevia em papel, riscava no chão, entalhava em casca de árvore, em qualquer parte. (...) Aquele homem tinha uma felicidade enorme.


Nossos magnatas de fortunas eletrônicas, virtuais, compartilham dessa imaterial felicidade, e ai de quem sugerir recolhê-los ao Pinel. Me digam em que casca de árvore ficaram os bilhões de Eike Batista ou de Bernard Madoff. São doidos? Não, são espertalhões, mas eram menos espertos do que imaginavam. Dinheiro é um poderoso alucinógeno; ele proporciona visões deslumbrantes, mas também faz o sujeito atravessar a rua na hora errada.

No mundo de Chesterton não há lugar para o doido esperto. O doido esperto é simplesmente o esperto que se faz de burro para enganar os burros que se consideram espertos. O exemplo clássico é o Doidim que os caras da cidade chamam e mandam escolher entre uma moeda pequena de ouro e uma moeda grande de cobre – e ele sempre pede para si a moeda maior. Quando alguém vai lhe explicar que seria mais jogo pegar a outra, ele diz: “Se eu pegar a outra, eles param de me chamar”.

Esse é o doido esperto, o doido ciclista, que inventa um caminho mais útil para si mesmo, aproveitando-se do fato de que os outros só raciocinam de um jeito. Perderam todas as outras formas de pensar, e só lhes resta “a razão”. São previsíveis. Podem ser driblados.

Um clássico exemplo de doido esperto é Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, o narrador do Romance da Pedra do Reino (1971) de Ariano Suassuna, um personagem mercurial, escorregadio, que ao longo do romance se faz de doido, se faz de cego, se faz de besta, se faz de intelectual, se faz de qualquer coisa que lhe convenha a cada instante. Quaderna tem, como certos doidos, a mania de grandeza, de se acreditar o futuro Imperador do Brasil, por ser descendente dos fanáticos que degolaram dezenas de pessoas em 1838, na Pedra do Reino, para desencantar um castelo e trazer de volta Dom Sebastião. Quaderna acredita nisso? Depende. Acredita quando lhe convém. Tem mais juízo do que eu ou você.

Meu saudoso amigo Arievaldo Viana contava esta, de algum doidim cearense:
 

Hoje encontrei um doido que anda pedindo esmola aqui na Praça Pedro Américo. Sempre eu dou-lhe um trocado.

Ele botou a mão na minha cabeça e falou: "Se você tá com Deus, um bandido bota a arma na sua cabeça, aperta o gatilho e a arma não dispara."

Perguntei: "E se for uma arma boa e disparar?"

Ele foi rápido: "Era porque você estava pronto pra ir ao encontro de Deus".

 

 

(Arievaldo Viana)

 

 

 

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QUARTA-FEIRA, 12 DE JULHO DE 2023

4961) A Vida, o Universo e tudo o mais (12.7.2023)

 



Existem dois tipos de questões existenciais. As que se referem ao Ser Humano, e as que se referem ao Universo. 

O Ser Humano nos inspira o famoso grupo de perguntas: “Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? O que estou fazendo aqui?”.  São as perguntas que os filósofos fazem a si próprios, até porque se um soldado de polícia os abordar de noite na rua eles precisarão ter essas respostas na ponta da língua. 

As questões relativas ao Universo são na área conceitual de: “O que é o Universo? Quem o criou? Como o criou?  Para que o criou?  O que acontecerá com o Universo no futuro?  Existem outros Universos além deste?”.  E por aí vai. 

As religiões dão respostas variadas a estas perguntas.  As ciências também. E o mesmo acontece com a literatura. 

Com dez anos de idade eu me deparei com um conto de Clifford D. Simak intitulado “As Respostas”. Está incluído na excelente coletânea Maravilhas da Ficção Científica (Ed. Cultrix, 1958, organização de Fernando Correia da Silva, seleção de Wilma Pupo Nogueira Brito).

(Clifford D. Simak)


É a última história do livro, e vem depois de uma série de contos peso-pesados que, lidos naquela idade, me deixaram de queixo caído e com alguns nomes de autores gravados a fogo na minha memória: Alfred Bester, A. E. Van Vogt, Fredric Brown, Ray Bradbury, Isaac Asimov...

O conto de Simak fala de uma expedição espacial numa nave tripulada por quatro criaturas: o Cão, o Humano, a Aranha e o Globo. Cada um deles representa uma raça diferente, e percorrem a Galáxia fazendo pesquisas. Chegam a um planeta habitado por humanos, e o Humano decide ficar ali, ao constatar que os habitantes levam uma vida pacata, modesta, de baixa tecnologia. 

Ele é recebido pelos locais, interage com eles, aproxima-se aos poucos de uma família, um casal idoso (Jed e Mary) e sua filha Alice. Quando se tornam mais amigos, o astronauta pergunta por que levam uma vida tão simples e tranquila, sem máquinas, sem aparelhagens complicadas. E Mary lhe responde: “Encontramos a Verdade”. 

No dia seguinte, Jed o leva até um edifício empoeirado, no centro de uma aldeia deserta. Ali, há uma máquina que responde perguntas. Na verdade, a máquina responde duas perguntas, apenas. E o homem faz a primeira pergunta. 

Qual é a razão de ser do Universo?


E vem a resposta, através de uma fita impressa:
 

O Universo não tem razão de ser. O Universo apenas aconteceu.


Ele nem sequer tem tempo de formular a segunda pergunta, que é um tanto óbvia. A resposta sai antes mesmo disto; uma outra fita impressa, onde está escrito:
 

A vida não tem significado. A Vida é uma casualidade.


Por que motivo algumas coisas nos parecem plausíveis, na infância, e outras não? Bem, há milhões de livros respondendo essa questão, de modo que vou passar adiante. 

Depois das aventuras espetaculares dos outros contos do livro, o conto de Simak encerrava a antologia quase que num anti-clímax. Não havia hiper-universos, divindades alienígenas, nenhum dos prodígios cósmicos que naquela época eu lia na pulp fiction de F. Richard-Bessière, Jimmy Guieu ou Stefan Wul. 

Depois de tantas histórias em “Cinemascope Barroco”, era até reconfortante escutar uma explicação tão simples, tão repousante, tão óbvia.  

Por isso não me angustiei nem um pouco quando, já aos 20 anos, li A Náusea de Jean-Paul Sartre, o livro em que o impacto da pura existência é visto como a pior bad trip possível – a existência sem essência prévia, sem uma Divindade que lhe dê forma e função, sem um Imperativo Cósmico que, uma vez descoberto, me ensine o que vim fazer no Universo. 

Não vim fazer nada. Eu simplesmente aconteci. O que vou fazer agora, vai depender “de mim e de minha circunstância”. Posso – como o Antoine Roquentin de A Náusea – largar meus planos de fama intelectual ou de ascensão social e ir escutar uma negra cantando um blues numa vitrola de ficha, perto do cais do porto. 

Posso ir viver a vida como ela é. “A vida, apenas, sem mistificação” (Drummond). “It’s alright, Ma – it’s life, and life only” (Bob Dylan). 
 
A maioria dos críticos considera o livro de Sartre como o aterrorizante testemunho do absurdo da existência.  Eu o considero um dos livros mais otimistas, mais zen, mais serenos da literatura universal. É a história de um homem que percebe, sem máquina interplanetária alguma, que o Universo não tem razão de ser e que a Vida não tem significado. 

Quer maior liberdade do que isto? Quer maior responsabilidade do que isto? 


O conto de Clifford D. Simak foi publicado pela primeira vez na revista Future Science Fiction (março de 1953) sob o título “...And the truth shall make you free” (algumas republicações trazem o título usado na tradução brasileira, “The Answers”). É uma citação do Evangelho Segundo S. João, cap. 8, versículo 32. 

Clifford D. Simak (1904-1988) não era um existencialista da Rive Gauche, experimentador de mescalina e flertador com o comunismo. Era um homem conservador e pacato do Meio Oeste (passou a vida quase toda em Wisconsin), autor de uma obra que vê a simplicidade da vida rural, junto à natureza e aos animais, como uma espécie de ideal. Sua ficção científica tem um fundo humanista, místico, quase ecológico “avant la lettre” em sua valorização e respeito por todas as formas de vida, terrestres ou alienígenas.

A vida será o que fizermos dela. O universo será o que fizermos dele. 

Sorte a minha de estar a ler ficção científica desde tão cedo (e de ter um pai que me comprou aquele livro, imaginando que me traria algum proveito), para que aos vinte anos pudesse ler sem descrença ou assombro, mas com uma sensação de estar-voltando-para-casa, estes versos de Fernando “Alberto Caeiro” Pessoa:

XLVII

 

Num dia excessivamente nítido,

dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito

para nele não trabalhar nada,

entrevi, como uma estrada por entre as árvores,

o que talvez seja o Grande Segredo,

aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.

 

Vi que não há Natureza,

que Natureza não existe,

que há montes, vales, planícies,

que há árvores, flores, ervas,

que há rios e pedras,

mas que não há um todo a que isso pertença,

que um conjunto real e verdadeiro

é uma doença das nossas ideias.

 

A Natureza é partes sem um todo.

Isto é talvez o tal mistério de que falam.

 

Foi isto o que sem pensar nem parar,

acertei que devia ser a verdade

que todos andam a achar e que não acham,

e que só eu, porque a não fui achar, achei.

 
 

 

(Fernando Pessoa)