Ronaldo Cagiano (na foto à direita) é mineiro de Cataguases e reside em São Paulo. Publica em diversos jornais e revistas do país e do exterior, dentre os quais Jornal do Brasil, Hoje em Dia, Jornal de Brasília, Correio Braziliense e revista Cult. Obteve o primeiro lugar no concurso Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com o livro de contos Dezembro indigesto. Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, Brasília, 2001), Poetas Mineiros em Brasília (Varanda Edições, Brasília, 2001) e Todas as Gerações - O Conto Brasioliense Contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006). É autor de
- Palavra Engajada (poesia, Ed. Scortecci, SP, 1989)
- Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia, Ed. Scortecci, SP, 1990)
- Exílio (poesia, Ed. Scortecci, SP, 1990)
- Palavracesa (poesia, Ed. Cataguases, Brasília, 1994)
- O Prazer da Leitura, em parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, Ed. Thesausus, Brasília1997)
- Prismas – Literatura e Outros Temas (crítica literária, Ed. Thesaurus, Brasília, 1997)
- Canção dentro da noite (poesia, Ed. Thesaurus, Brasília, 1999)
- Espelho, espelho meu (infanto-juvenil, em parceria com Joilson Portocalvo, Ed. Thesaurus, Brasília, 2000).
- Dezembro indigesto (contos, Brasília, 2001)
- Concerto para arranha-céus (contos, LGE, Brasília, 2004)
- Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio, 2006)
O editor de Entretextos, Dílson Lages conversou com Cagiano sobre o mais recente livro publicado por ele, o Dicionário de pequenas solidões.
O conto “Encontros” põe em diálogo filosofia, história e teoria literária. Esse diálogo, que busca individualizar Cataguases, ao tempo em que projeta questionamentos sobre a função da literatura, veio por intuição ou foi rigorosamente planejado?
R – Esse conto tinha nascido apenas como uma homenagem a dois grandes escritores, que me são muito caros: Kafka e Rosário Fusco. No entanto, ultrapassou a reverência para transformar-se, ainda que involuntariamente, nesse diálogo. Quando percebi, a história mergulhava numa seqüência de impressões, que ricocheteavam a partir do autor, tomadas pelas rédeas do narrador. No fundo, a literatura é a extensão de uma ponte dialética: a gente ser vê discutindo o mundo, as pessoas e o lugar da própria arte nesse deserto de coisificação e etiqueta. Confesso que não planejei nada. Eu queria realizar um texto frugal, que fizesse o trânsito – ainda que onírico ou supra real – entre dois mundos, dois tempos, duas literaturas, duas cidad es, duas geografias e dois autores (que não foram contemporâneos, mas ao meu ver guardavam semelhantes olhares sobre o universo, principalmente o da criação). E na perspectiva de um texto curto, minha visão acabou se extrapolando e entre Praga e Cataguases, muitos questionamentos se interpenetraram.
Como ocorre o processo de criação de Ronaldo Cagiano?
R – Ele tanto acontece inadvertidamente ou pode ser fruto de mínimo planejamento. Às vezes, construo (ou costuro) a história previamente em minha cabeça, e depois vou desfiando o fio da meada. Em outras ocasiões ou situações, a história salta à minha frente feito um saci fugindo de uma mata escura. Eu posso, nesse caso, (re)colher do quotidiano (de um gesto alheio, de uma fala solta, de um acontecimento banal, de uma circunstância) matéria para um conto ou um poema. Como é o caso de um conto do livro Dezembro indigesto, intitulado “A ilha invisível”. Esse texto nasceu da minha observação em um trajeto de ônibus de entre minha casa e o trabalho num coletivo em Brasília. Muitas veze s há insights, que surgem numa caminhada, numa conversa, ou de uma notícia lida ou ouvida. Nesse caso, vou compondo a história a partir de meu senso de observação, incorporando elementos da realidade captada ou ressuscitando fatos ou lembranças de outros tempos. No fim, a história se constroi de forma heterogênea, na simbiose entre realidade e ficção, entre invenção e memória. Ainda quanto ao processo criativo, devo confessar que não tenho uma disciplina rígida, que não me imponho nenhum método, nenhuma camisa de força (escrever todo dia ou ter horário e ambiente próprios), pois o trabalho literário pode nascer na hora do trabalho, numa jornada pela cidade, durante um sonho ou durante a leitura de algum livro.
Ao imaginar uma visita do escritor Kafka a Cataguases, o narrador não apenas descreve a cidade, mas principalmente as sensações que os detalhes mais característicos causam a um visitante. Qual leitura faz Ronaldo Cagiano sobre as sensações que cria o narrador a respeito de Cataguases?
R – Sempre tentei vislumbrar na literatura um espelho do meio e das vivências, principalmente as raízes (sanguíneas, geográficas, históricas). E isso sempre comporta uma inclinação autobiográfica. Não nos isentamos desse apelo. Quando escrevo um conto ou um poema, há lembranças recorrentes (de lugares, de acontecimentos históricos, de cheiros, de reações, de costumes, de modos de vida). E quando vêm à tona, cavalgando na memória recente ou antiga, carregam necessariamente sensações, aflorando de maneira surpreendente. Por isso, às vezes costumo impregnar de detalhes as narrativas, como na tentativa de aproximar o leitor de um universo mais verossimilhante possível. Então, esses detalhes se juntam ao texto em minuciosas descr ições, resgatadas, na maioria das vezes, de experiências físicas e sensoriais marcantes em minha vida. São certas sensações organolépticas que os cenários provocam em mim e se comunicam plenamente nas histórias e isso - creio – faz com que o leitor se sinta próximo de uma realidade por ele não vivida (mas capaz de sentir).
“Encontros” finda com reflexão sobre a própria função dos personagens e sobre a função da literatura (“ânsia estética de mudar o mundo”, “libelo contra o mundo que nos coube”). O que é a literatura, e mais particularmente o conto, para Cagiano?
R – Tomo emprestado de Fernando Pessoa - embora seja lugar comum fazê-lo - para explicar, o que é a literatura, particularmente para mim: “A literatura, como toda arte, é a confissão de que a vida não basta”. Entendo que o ato criativo (seja na musica, no teatro, nas artes plásticas, na dança, na fotografia), principalmente na literatura, além de uma atitude estética, é acima de tudo um compromisso solitário, mas profundamente ético. Sendo a única instância em que realmente podemos ser totalmente livres – porque o pensamento e a expressão jamais puderam ser amordaçados por nenhuma ditadura – a palavra escrita é o território de nosso libelo íntimo, é o ambiente em que as catarses se realizam. Dessa forma, não podemos deixar de lado nossa capacidade de indignação, por mei o da reflexão e do questionamento. Veja, por exemplo, “Guernica”, mural de Picasso. Assim como nos livros de Dostoievski ou de Graciliano Ramos, esse quadro é uma denúncia permanente, contra tudo que é desumano e injusto no mundo, contra toda opressão e submissão do ser à degradação, seja humana ou política. E tanto mais como esforço para combater a realidade, a literatura, é lugar também para se discutir o lugar e o valor da arte nesse mundo caracterizado pelo absolutismo do mercado e fetichizado pela globalização. Não acredito que a literatura mude o mundo, mas é capaz de mudar o leitor, o homem e a partir disso uma cadeia de transformação pode se estabelecer. A literatura para mim é esse exercício permanente de insatisfação. È quando podemos ir ao fundo, doa o que doer e a quem doer. E o conto, particularmente, me oferece, em estado homeopático, pequenas oportunidades de condensar nossas atitudes. Há duas lições que me remetem a esse sentim ento: “Meu amigo, façamos sempre contos. O tempo passa e o conto da vida se completa sem disso darmos conta”, disse Diderot, seguido por Borges, para quem “El cuento, por su índole sucesiva, corresponde intimamente a nuestro ser que se desenvuelve en el tiempo”.
Há em seus contos, com estratégia narrativa, uma recorrente marca estilística que é situar a cidade física, geográfica, social e psicologicamente. O que o escritor prioriza ao tomar essa postura?
R – Creio que é resultante da memória afetiva, da busca de um resgate psicológico. E nisso o reconhecimento da cidade, a compreensão do universo interior de sua gente a partir da experiência histórica e sociológica de seu povo, ou minha mesmo. A ficção nos permite explorar esses territórios. Regresso sempre a essa pátria espiritual para (re)compor meus cenários e meus personagens e também para fazer não apenas o registro de certos fatos, mas sobretudo para lançar um olhar crítico sobre um tempo e exorcizar meus fantasmas.
O confronto entre situações sociais diametralmente opostas reproduz a angústia que cada situação, tanto a dos favorecidos quanto a dos desfavorecidos, pode encerrar. Tal traço em sua prosa está em sintonia com os dos autores que mais lê?
R – A vida está repleta de bons e maus exemplos, principalmente quando entra em cena o jogo político, os interesses econômicos e partidários. E o interior traz essa carga dramática, cujo reflexo é diretamente sentido no dia-a-dia das pessoas, no conflito entre necessidades e ideais. Em Cataguases, particularmente, uma cidade operária, que foi dominada durante décadas por forças políticas antagônicas, mas economicamente convergentes, a luta de classes estava muito presente. As indústrias locais – a cidade sempre concentrou um grande pólo têxtil – pertencem a uma única família há décadas, a qual monopoliza a força de trabalho e durante muito tempo também controlou politicamente o município. Então, gerou-se na cidade uma maio ria silenciosa, submissa (porque necessitava do emprego nas tecelagens), gente que por medo de perder sua “colocação” na fábrica do seu fulano, não questionava salários nem a condição social ou política. Então, é fácil perceber que houve – e ainda há, em certa medida, ainda que haja uma dispersão dos atores econômicos e políticos nos últimos anos – uma massa tanto de patrões quanto de empregados que construiu uma relação social cevada na dependência e isto gerou um angustiante sistema de vasos comunicantes, culminando numa alienação e numa passividade permanentes. Isso extrapolou em todas as vidas e permeou sentimentos a ações. E se em um conto ou em um poema faço esse registro, o esboço dessa atmosfera se evidencia, como expressão conflito/confronto silencioso, mas solapador.
O assassinato que leva à condição solitária da morte; o desejo de não ser anônimo na grande cidade; o adolescente ansioso por libertar-se da casa paterna; a angústia de um diagnóstico médico tão atormentador quanto uma doença incurável e outros temas revelam o escritor focado na condição humana, um escritor de olho nos que sofrem. Por que a escolha por essa cosmovisão?
R – Há vários aspectos que tento ressaltar nos meus contos e que transmitem essa sensação de deslocamento, insularidade, deslugar no mundo contemporâneo, seja ele municipal ou nacional. Todas as demandas intimas que um ser humano tem - entre as quais desejo de ascensão social e intelectual; de individualidade e privacidade, por exemplo – é que o desestabiliza a própria condição humana. Dela derivam todos os males, porque o homem vive a permanente tentativa de (auto)superação e numa sociedade competitiva e veloz, principalmente a do mundo globalizado e excludente, em que cada um para mostrar o melhor de seu produto acaba por revelar o pior de si, a tendência a um certo estágio de nunca satisfazer-se com nada, culmina na deflagração de dramas ou dilemas de toda ordem. Isso acontece em Cataguases e em Moscou: em Teresina ou na Lituânia. De tal modo que nada do que estamos falando é desconhecido, são situações encontradiças em qualquer lugar e que são coadjuvantes de nossa tormenta interior. A literatura não se cansa de expressar essa cosmovisão. E não poderia ser diferente, porque ela tem que ser a projeção dessa nossa multifacética condição e ao mesmo tempo um espaço para romper amarras e desatar algemas.
Seu estilo é assinalado por muitas marcas de linguagem que tornam o texto sutil, leve, inesperado. Que marcas de estilo o senhor mais valoriza e por que o faz?
R – Acredito na força metafórica, na carga poética, numa fluência que expresse o sentimento do mundo. Para mim, o exemplo de prosa bem acabada está em Tchecov e Graciliano Ramos. Em seus textos nada falta ou sobra. Literatura para mim é saber contar uma história, seja ela banal, doméstica, corriqueira ou extraordinária. E a linguagem é tudo. Ela deve comunicar o mundo ou a visão do autor sobre ele, sem necessidade de contorcionismos formais, sem recursos babélicos, sem espasmos de qualquer natureza. Prefiro o texto leve, cristalino, diáfano, tanto na poesia quanto na prosa e destaco em Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Tchecov. Lygia Fagundes Telles e Graciliano, grandes exemplos de autores que conquistaram essa supremacia de usar a palavra não para enfeite, mas para dizer. E nos autores atuais destaco João Anzanello Carrascoza, Miguel Sanches Netto, Altair Martins, Ronaldo Correia de Brito e João Batista Melo como ficcionistas que exercitam essa condição, sem lançar mão de qualquer estrepolia narrativa, fazem uma literatura limpa, densa e poética, que vai ficar.
Como procede para criar as marcar de autoria que melhor o identificam?
R – Procuro extrair das histórias uma condição narrativa que não dificulte a compreensão do leitor. Ainda que seja densa ou complexa a situação (ou tema), contemplo uma perspectiva em que a sutileza e a poesia estejam presentes. Baudelaire disse: “seja poeta mesmo em prosa”. Tento apreender essa lição e evitar as gorduras, os excessos, a camuflagem dos subterfúgios formais, de modo que um conto ou um poema tenham profundidade sem hermetismo e que traduzam uma certa marca – não rótulo – de quem a escreve.
Em tempo de internet, em que novos suportes ultrapassam as barreiras do papel e das distâncias ainda é possível acreditar que no Brasil somente se lê os escritores consagrados pelo cânone?
R – Com o advento da internet e uma profusão de meios eletrônicos, a possibilidade de acesso a uma literatura mais diversificada é uma realidade inquestionável. Quando ainda não contávamos com os suportes virtuais – sites, blogs, orkut, twiter etc – o cânone prevalecia, até porque na escola éramos condicionados a ler as obras e autores que integravam o projeto didático e pedagógico. Hoje, as alternativas são infinitas e há outro fenômeno: a facilidade editorial. Há muitas editoras, de pequeno e médio porte, que têm revelado bons autores, muitos deles fora do eixo hegemônico e monopolista do Rio-São Paulo. Isso tem contribuído para se criar uma espécie de cânone alternativo, paralelo ou independente, ou seja autores que sa ram dessas mídias ou dessas pequenas editoras e acabaram se firmando no mercado e hoje são cultuados por novas gerações, criando um novo nicho de expressão literária. Então, acredito que sem prejuízo do cânone tradicional, que continua sendo lido e estudado, seja por leitores comuns ou por indicação das escolas, há um outro universo literário em ascensão/expansão, oferecido pelo mercado editorial com sua proliferação de editoras, e também pela literatura virtual. A verdade é que há uma verdadeira arca de nóe,há boa e má literatura sendo empurrada goela abaixo, há muito lixo caindo na rede, no entanto, a peneira do tempo e da crítica é que determinarão o que tem valor, o que vai resistir. A internet é uma aliada nesse processo, mas é preciso estar atento para o que tem qualidade estética, separar-se o joio do trigo, o que é incenso e o que é texto, distinguir o que é vidas literária do que é literatura. O importante é que o hábito de le itura seja estimulado, esses mecanismos estão contribuindo para isso e a cada mais oferta é que se consolida o espírito crítico e a seletividade do leitor.