ENTRE O "DIÁRIO PERDIDO" E A RECUPERAÇÃO PELA MEMÓRIA

Cunha e Silva Filho

      As memórias são construídas  entre o perdido e relembrado. Ao escrever suas memórias o autor muitas vezes lamenta consigo mesmo porque não havia feito a cronologia dos principais lances de sua própria história.

      Ah, se tivesse escrito aqueles lances que tanta significação teriam  no futuro! As memórias, assim, perdem momentos iluminados do ser diante da passagem da vida. Incidentes que não deveriam ser apagados,  mas escritos na velha forma de diários, de um diário que anotasse, ao longo da vida, nomes, paisagens, diálogos, pensamentos, confissões, divagações sobre as artes, o ser humano, a existência, aqueles bons ou maus instantes do pretérito.

     Só na ficção poder-se-ia recapturar todo esse novelo de fatos através da manipulação livre através dos recursos narrativos das anacronias  ou meramente pela cronologia tradicional. As memórias sobrevivem de perdas e de esquecimentos voluntários ou inconscientes.

    Aquele encontro com a primeira namorada, com um grande amigo, com um professor que nos encantou, com as inúmeras conversas com nossos pais. Quantas coisas perdidas para sempre que não podem mais ser socorridas pela capacidade limitada da retentiva! Que pena!

     Perderam-se, desta forma, talvez os melhores pedaços de nossas vidas na infância, na adolescência, na vida adulta. O que ficou foi a súmula incompleta de retalhos do passado. Por essa razão, as memórias são apenas uma parte que nos vem à tona de forma involuntária ou porque forçamos a barra para que fatos acontecidos, diálogos, incidentes e acidentes possam vir ao presente.

      As memórias não são apenas relatos lembrados, mas reconstruções do passado pela linguagem que, muitas vezes, as ficcionaliza a fim de preencher os gaps, as ausências, as impossibilidades amnésicas.

      A essas impossibilidades de recuperação do tempo perdido chamaria de "diário perdido". Todo ser humano tem em potencial esse "diário perdido". Seria possível escrever-se um tipo de cronologia

      Ora, todas essas novidades virtuais serão úteis aos memorialistas do futuro, que lidarão com novos instrumentos de recuperação de fatos de sua história pessoal ou coletiva. Quem sabe, as memórias do futuro serão apenas em parte faladas, em parte vistas.

      No entanto,  o que me traz a este artigo são as memórias à moda antiga, aquelas cultivadas por escritores, me limitando apenas, entre outros,  aos nossos, Joaquim Nabuco, Humberto de Campos, Gilberto Amado, Graciliano Ramos, Álvaro Moreira, Érico Veríssimo  e um dos maiores memorialistas, Pedro Nava.

   No Piauí, já contamos com um bom número de livros de memórias ou que se assemelham a estas, ou mesmo se incluiriam em memórias ficcionais. Já formaria assim um corpus de matéria memorialística para pesquisadores. Quem se aventura?

   Só para citar os autores que me chegaram ao conhecimento: Eleazar Moura, Amarante antigo – alguns homens e fatos; Nasi Castro, Amarante – um pouco da história e da vida da cidade, Amarante – folclore e memória; Cunha e Silva, Copa e cozinha; Homero Castelo Branco, Ecos de Amarante; Celso Barros Coelho, Tempo de memória, Política - tempo e memória; Olemar de Souza Castro, Minhas duas pátrias, Sob o sol poente; Assis Fortes Memórias de mim, histórias dos outros; Francisco Miguel de Moura, O menino quase perdido; William Palha Dias,  Memorial de um obstinado; José Ribamar Garcia,  E depois, o trem; Jesualdo  Cavalcanti Barros, Tempo de contar; Elmar Carvalho, Confissões de um juiz; Geraldo Almeida Borges, Província submersa – crônicas teresinenses (século XX).

      Na impossibilidade deste tão ansiado "diário perdido," os autores, todavia, não abdicam de seu direito de recordar o que de outra forma seria para sempre sepultado como matéria rememorativa, perdendo-se, com isso, grandes relatos de escritores e sua época. Sem obras dessa natureza, empobreceria também, no seu conjunto, a história literária brasileira.