Cunha e Silva Filho

 

Foi no Shopping da Tijuca que aconteceu o que presenciei, hoje, sábado, véspera do “Dia dos Pais.” Sabe, leitor, que, em assunto de datas e outras coisas do gênero, sou mesmo uma negação. Troco as datas, outras vezes só sei do dia especial quase na véspera, esqueço as datas de aniversários de amigo (alguns dos quais nem mesmo querem saber de passagem de ano, sobretudo se mais velhos), até com familiares mais íntimos dou vexame. 
Mas, fazer  o quê ? Lá me vem a calhar essa pergunta imitando o jeito atávico e resignado do brasileiro comum,  especialmente com os poderosos malvados da política brasileira) do brasileiro em geral. Não porque deseje se assim negligente com as datas que deveriam estar na ponta da língua, ou melhor, da memória pronta. Longe disso. 
De nada, porque sou distraído mesmo, sou gauche. sou “arger” (como diria minha mãe). Nem sei se a grafia é esta, pois não tenho visto, salvo erro meu, essa palavra registrada em verbete nos bons dicionários de língua portuguesa, indevidamente chamados “pai dos burros,” expressão que um professor e tradutor norte-americano, George Reed, residente no Rio de Janeiro, não sei se ainda está vivo, refutava, ao contrário, com veemência como sendo  o  “pai dos inteligentes.” 
Poderei ser capaz até de, no dia do meu aniversário, me esquecer da data, a não ser que o facebook me recorde a tempo. Isso para não me surpreender, ao ouvir de manhã, um dueto da esposa e do filho “Feliz Aniversário!” Aí , a minha sensibilidade de poeta (que chic!, alguém diria) não aguenta a pressão e começa mesmo a molhar as vistas. 
Deus me acuda!, esqueci de desenvolver o tema nuclear da crônica. Que “disparate de todos nós.” ! Assim diria um título de um livro de um velho e esquecido crítico, morador antigo do Méier, o "enfant terrible" de muitos membros do cobiçado fardão do Petit Trianon, nos áureos tempo de judicatura crítica ( “judicatura,” por sinal, me lembra outro crítico, este mais novo, mas também respeitado no seu tempo, anos 1940, 1950, até inícios de 1960.
Pois bem estava na porta da Livraria Saraiva, conforme mencionei no início deste texto. Eu me encontrava quase à entrada da porta da livraria. De repente, ouço a voz de uma criança de rosto miúdo e cabelos lisos caindo na testa como se fora um indiozinho da Amazônia (hoje, na TV, informaram que havia queimadas,  coisa séria para a nossa Floresta-Pulmão da Terra. A crônica de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) está fazendo falta agora em tempos de embaixadas na terra dos ianques). 
A criancinha, mais insistente ainda, quase suplicando, explicou aos avós “Aqui é uma “biblioteca.” Vamos, vô, entrar. Vamos, vó.” É uma “biblioteca.” O avô deixou escapar sem corrigi-la. Aparentavam ser de classe média. Porém, não corrigiram o neto podendo dizer que ali era uma “livraria” e não uma “biblioteca”. Nesse instante, me veio à tona um exemplo de uso da língua por um falante pequeno, de uns três ou quatro anos. 
Para ela, um lugar cheio de prateleiras entupidas de livros seria uma biblioteca, sim. Por que não? Na sua escolinha provavelmente havia uma biblioteca, com alguns livros nas prateleira ou mesmo repousando nas mesas de um sala de leitura, algumas cadeiras e, quem sabe, uns dois sofás para leitura mais descontraída. 
Esse fato me levou a pensar, naturalmente por associação de ideias, num falante brasileiro, que, por exemplo, na conversação com um nativo de língua inglesa, usasse “library” em vez de “bookstore,” ou seja, à memória do falante brasileiro o que primeiro surgiria à mente seria uma palavra parecida gráfica e fonemicamente com a sua língua-mãe. Assim sendo, soltaria logo um “library” e não lembraria de pronto “bookstore”. O “false cognate” ( um dos “pitfalls” do estudante brasileiro de inglês induziria ao erro de comunicação do ponto de vista lexical-semântico. 
Já no caso da criancinha que desejava por força entrar na “biblioteca,” ela apenas havia usado, dentro do seu “horizonte de expectativa” linguístico, um léxico aprendido no contexto social de um espaço (que poderia ter sido vivenciado e aprendido no lar, ou mais provavelmente, na escolinha dela) que seria reservado aos alunos e professores para leituras e com todos os objetos associados ao vocábulo “biblioteca”. Ora, essa realidade linguística da criança, por analogia, ficaria associada à parte mais visível dos preciosos objetos ali expostos numa livraria: os livros. 
Eu não entrei dessa vez na livraria, porém a minha esposa e o meu filho mais novo me asseguraram que a criança havia entrado na livraria. Fiquei apenas lamentando que o avô ou a avó não corrigira o erro léxico da criança no momento em que ela empregou o vocábulo “biblioteca.” 
Uma coisa leva a outra e novamente a associação de ideias me traz à baila o brevíssimo e  célebre conto, humorístico e ao mesmo tempo levemente dramático de Artur de Azevedo (1855-1908), de título “O Plebiscito” que li, pela primeira vez, no tempo do ginásio, e sobre o qual já escrevi - não tenho certeza - há tempos uma outra crônica. Foram tantos artigos ou crônicas que a gente vai esquecendo. Não disse que sou distraído, leitor? Com esta crônica clumsy talvez amanhã eu não me esqueça de que será o Dia dos Pais. Então, me resta antecipadamente cumprimentá-los: “Feliz  Dia dos Pais,” amável amigo e leitor.