O mês de dezembro transcorre com duas comemorações de grande importância no calendário ocidental: o Natal e o Ano Novo. Na primeira, celebra-se o nascimento de Jesus Cristo, fundamento do cristianismo; na segunda, festeja-se a abertura de um novo ano deste segundo milênio. Ambas as datas mexem muito com os nossos sentimentos, nossas emoções, nossos desejos, nosso empenho de confraternização, de novos projetos, como se fora mesmo uma nova vida, com uma expectativa de que seja melhor do que a do ano que se finda.
No mundo globalizado, mudanças se fizeram com as comunicações relacionadas ao cumprimentos de Natal e Ano Novo: em vez dos consagrados e tradicionais cartões de Natal sempre combinados com os votos de um Feliz Natal e Feliz Ano Novo, os quais estão praticamente fora de circulação, vindo a diminuir a venda de cartões e os gastos com o envio pelos Correios, entraram em cena as redes sociais, quer pelo computador, quer pelo celular ou outro aparelho do universo virtual. Acredito que vieram para ficar.
Aqui me lembro de, nessas datas, procurar os endereços das pessoas queridas nas agendas ou em outros lugares já um tanto esquecidos a fim de, nos novos cartões, passar um bom tempo, ainda que cansando a munheca, escrevendo à mão mensagens criadas no instante da escrita, pequenas, médias e longas em tom afetuoso e até mesmo lírico, dependendo do grau de maior ou menor amizade. Entretanto, posso afirmar que os velhos cartões de Natal e Ano Novo ainda me deixam um travo de saudade. O lucro dos Correios sofreram prejuízos com a quebra do hábito dos cartões. As mochilas dos carteiros perdera também peso.
O leitor, até aqui, deve estar se perguntando ou me perguntando se tudo o que escrevi acima tem a ver com o título desta crônica. Tem e o fio do novelo se concentra em volta dos festejos natalinos e do novo ano, 2018. Explico-lhe a seguir.
Já há algum tempo venho repisando que a realidade social brasileira persiste em ser múltipla e resistente a mudanças para melhor. As modernidades (Eduardo Portella) continuam fortes e firmes. Nenhum sinal de melhoria da estrutura do Estado brasileiro. Ao contrário, na essência, permanece como sempre esteve e ainda pior nos últimos anos para quem toma consciência do que acontece no país em setores vitais a uma Nação que não se corrige, porém mantém-se sólida na resistência férrea de dividir o bolo de suas riquezas com o povo, rigidamente clivado em classes que vão dos milionários – uma minoria a quem cabe as benesses e o paraíso brasílicos -, aos miseráveis e analfabetos que chafurdam no lodaçal dos barracos sujos e fétidos das favelas dos morros e dos casebres insalubres tanto nas grandes cidades quanto no interior do país.
Ou seja, os pobres continuam pobres e os ricos se tornam ainda mais ricos segundo o binômio concentração versus miséria, agravado ainda com o pior problema que enfrenta a sociedade, o da violência galopante e sem precedente tomando conta do território nacional e sem perspectiva de solução. A esses problemas se adicionam a ruína da saúde pública, a falência de alguns estados brasileiros, sendo o pior deles o do Rio de Janeiro e, para complementar o quadro da tragédia, a corrupção deslavada no seio da política brasileira.
Ao falar de “Céu” e “Inferno” quero aludir ao descompasso do cotidiano brasileiro multifacetado, i.e., o país dispõe de vantagens e privilégios para alguns assim como de agruras e sofrimentos para outros. Para os senhores do poder, até parece que nada de ruim acontece com o povo. Estão indiferentes no aconchego dos palácios das mil e uma noites de prazeres e regalias desmedidas.
Sabedor da índole pacata desse povo, o governo federal, vai amansando a população, liberando um beneficiozinhos de quando em quando e, assim, vai amortecendo possíveis atritos sociais, administrando subliminarmente reações de indignação, manifestações do populacho controladas por pão e circo: futebol, carnaval, shows musicais e programas de terceira linha dirigidos ao povo.
Ora, diante da riqueza de poucos essas migalhas sociais nada custam aos cofres públicos, principalmente porque tudo o que o governo libera vem do bolso do contribuinte, do mais humilde ao mais aquinhoado financeiramente. Agora, realizar uma redistribuição de renda em escala nacional, taxar os grandes capitalistas, isso nunca. Mais valia e reserva do mercado são determinantes na manutenção concentracionária.
No “Céu” estão as mansões, o consumismo desenfreado dos endinheirados, os melhores planos de saúde, os melhores hospitais, os melhores transportes, os mais ricos alimentos, as bebidas mais refinadas, as festas pantagruélicas, a suntuosidade, o perfume, as roupas, calçados e bolsas de grifes, as viagens maravilhosas, os melhores hotéis, balneários, o bem-bom dos potentados.
No “Inferno”, o desemprego, o transporte deficiente, a moradia sem saneamento básico, os bairros periféricos e humildes ou os barracos das favelas, a falta de assistência nos hospitais públicos, a ausência de planos de saúde, as escolas sucateadas, as universidades falidas, os professores com salários atrasados, os policias com baixos salários e armas inferiores aos dos traficantes. Os doentes pobres morrendo por falta de atendimento médico, de remédios, de equipamentos médicos, de vagas no hospitais.
No “Céu,” a elite política, o nepotismo, a herança política de pai a filho ou neto, parentes e aderentes, os dignitários do governo atual, escolhidos não por competência mas sobretudo pelo aulicismo da politicagem tacanha, os ministros autoritários com decisões tomadas com mão de ferro semelhantes ao que ocorre nas ditaduras escancaradas, os polpudos salários, as mordomias, a impunidade, o foro privilegiado, a compra de votos vultosos de parlamentares para manter o presidente da República no seu cargo, o indulto presidencial a ladrões do Erário Público e criminosos hediondos, os corruptos passivos e ativos, a alegria da burguesia festeira, carnavalizada, indiferente aos desfavorecidos no país de crônicas injustiças.
No “Inferno,” a caixa de Pandora aberta por Epimeteu, os sem-teto, os moradores de rua, os esquecidos, a ralé, a patuleia, a arraia miúda, cega (por ignorância) aos grandes problemas nacionais, cega ao dar o seu voto aos mesmos canalhas que se perpetuam na politicalha brasileira como se fossem donatários de capitanias hereditárias.
Até nas prisões continuam as regalias e os arbítrios em favor das ratazanas que, ao serem premiados com tornozeleiras eletrônicas (isso é uma comédia de erros, nome técnico de uma aparelho importado e imitado para encobrir as brechas da Justiça em terra de peculatos e tranquibérnias de políticos e empresários venais) vão para suas mansões de marajás.
Oh, como é bom ser rico e ganhar o “Céu” no Brasil! Enquanto isso, o “Inferno” no país se enriquece de balas perdidas, de traficantes, de drogas, de feminicídios, de estupros, de assaltos e mortes abomináveis, de governantes ladrões, de impunidades, de progressivos benefícios a criminosos, de prisão condicional, de brechas da Justiça, de indultos para marginais pobres ou de colarinho branco. No país persiste, insiste e não desiste o convívio imposto entre a Casa e a Senzala, entre o senhor e escravo.
O mais curioso é que o país é idiossincrático, quase inexplicável porque as coisas aqui acontecem entre a bonança e a fome, entre o que funciona e o que está arruinado, entre a favela e o luxo, entre o luxo e o lixo;
Dizem que a economia vai bem melhor do que nos últimos anos. No entanto, os alimentos são caros, a comida é cara, a vida é cara, os remédios são caros, a moradia é cara, a saúde, via planos, é cara. Em suma, o Brasil é uma “Serra das Confusões” que, pontualmente, parece estar melhorando, mas, na verdade, no geral, está muito mal, sobretudo na imoralidade política, que é corrupta, cínica e autoritária, adjetivos que são necessários repetir ad nauseam.
Alguém afirmou e bem que não adianta ter-se uma economia dando bons sinais de retomada do crescimento se a sociedade múltipla e desigual vai muito mal, quer dizer, se os ricos tornam-se mais ricos e os pobres e miseráveis continuam marcando passo num ritmo secular e inexorável. Para terminar, esta crônica de antípodas convém repetir uma expressão usada por um ilustre ministro do Supremo, Roberto Barroso: o Brasil é uma “tragédia de corrupção.”
Ou por outra: o país, no campo da má justiça, não passa ainda, mutatis mutandis, da mentalidade dos meirinhos do tempo del-rei Dom João VI (1767-1826) genialmente descrita e narrada no romance Memórias de um Sargento de Milícias (1854-55) de Manuel Antônio de Almeida (1830-1861), capítulo 1, ”Origem, Nascimento e Batizado” ou daquela cena tragicômica, capítulo 8, de título “O Pátio dos Bichos” da guarda palaciana do reinado joanino, cena esta exemplar do que seja o sistema de segurança na mãos dos velhuscos oficiais dorminhocos e tagarelas, vítima das chacotas de eventuais transeuntes e até dos soldados subalternos que se divertiam a valer com a cena hilariante e de alta comicidade. Essa alusão que faço ao romance picaresco-malandro-carnavalizado de Almeida sempre me vem à baila quando penso nos males crônicos do país.