ENSAIO SOBRE O SUICÍDIO: E AGORA, JOSÉ?
Por Rosidelma Fraga Em: 29/11/2012, às 09H53
ENSAIO SOBRE O SUICÍDIO: E AGORA, JOSÉ?
[Nota Prévia do Narrador: Eu precisava contar essa história que me chamava por dez anos. E aqui está. Ficção ou realidade, o conto se apresenta].
“Olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam” (Do Livro de Coríntios, Capítulo 1, Versículos
2:9).
1999. Penúltimo ano do século XX. Era um ano da celebração de casamento de Dora Lima. Pobre, mas Feliz por ser poetisa de nascimento e não pretender se casar.
Dizia o vilarejo que Dora almejava ser professora, ainda que de óculos grandes, magra, de seios fartos, olhos roxos e miúdos de sono, mas queria demasiadamente o ofício, sonhava acordada, de saltar de alegrias, de dormir na Biblioteca da Universidade do Estado de Mato Grosso.
Ser professora era a arma de que Dora dispunha para mudar o universo com toda a poesia que leu desde a infância e com a poesia que ela escondia nas chamas da alma.
Dora teve um surto do dia para a noite e teve que, inconscientemente, se casar. Casou-se com José Qualquer da Silva, um José cabisbaixo, pouco assunto, falso romântico, até cuidadoso, para não dizer, sufocante e psicopata. Imagine você que está sentado agora, leitor! Dora poetisa com um serzinho de sorriso forçado, olhar desconfiado e pés fora do chão.
Dora arrependeu-se amargamente, mas, já era tarde. Entrara, naquela noite, para a lista das mulheres que suicidam diuturnamente quando se casam.
Dias depois, Dora não se estarreceu com os cuidados de José Qualquer. Saiu em busca de seu grande sonho. Foi professora desde quando amou Vozes da África pela primeira vez. Leu Nélson Rodrigues numa só noite e se viu na tragédia psicológica de Lídia, a mulher sem pecado. Dora sentiu-se tal como a viúva, porém honesta. Foi castigada sem ter passado pela nudez. Viu-se nas acusações de Capitu, que não tinha voz para revidar os castigos psicológicos de Bentinho.
Dora devorou a obra Otelo para compartilhar o sofrimento de Desdêmona e esmagar o seu medo de morrer sem voz. Dora era genuína no caráter, no sentimento e na certeza de que o homem é o bicho devorador de si mesmo. No fundo, Dora quis fugir como fez Lídia com Olegário, deixando um bilhetinho para José Qualquer.
Não obstante, Dora não era tão forte e fugiria aos poucos. A sensibilidade de poeta, ao mesmo tempo em que era a salvação para se livrar do suicídio, era também o leitmotiv em que ela se aprisionava, chorando, versificando, contando haikais de amor que nunca serão publicados, porque o marido, de alma doentia, botou fogo e forçou Dora a não escrever. Decretou que Dora não amasse, mas o coração de Dora estava dilatado demais para aceitar a lei do machismo. Esse era o maior suicídio que Dora conheceu.
Não aceitou o ultimato contra a liberdade da poesia. Era como ressuicidar-se. Escondeu-se na beira do Rio Araguaia e foi escrever os livros e tentar resgatar os versos queimados. Ninguém lhe roubaria o sonho de ser professora. Muito menos o dom de ser poeta. Dora viajou, cortou rios e céus para subir os degraus.
Chegou feliz em casa, toda arrebatada. Finalmente Dora tinha de ser a professora de literatura, a poetisa do vilarejo que tirou todas as pedras no meio do caminho para declamar Carlos Drummond de Andrade e ler Machado de Assis na sala de aula. Mas Dora era pequena demais para vencer o medo arrebatador de José Qualquer. Ainda tinha medo de verbalizar os castigos.
A noite da tragédia humana aconteceu meses depois da formatura de Dora e na primeira semana em que ela se orgulhava de ser professora universitária. Sem piedade de indivíduo, foi violentada, sofreu os golpes físicos, ficou toda machucada de alma e escondeu os ferimentos por anos, por vergonha, por não saber para onde ir, por medo de sofrer duas vezes ou sempre que fosse confessar que estava condenada à morte por uma espécie de Iago mascarado de arcanjo...
Dora teve medo de morrer naquela noite, quando era enforcada por José Qualquer. Mas, felizmente, o anjo de outras vidas, que sempre acompanhou Dora, apareceu com seu cajado forte e José ficou sem forças, ajoelhou-se pedindo perdão e suplicando amor. O que era o amor? O amor de José restringia-se em posse corporal e humilhações. Ser dono do corpo de Dora era também uma agressão moral e psicológica. Porque Dora não o amava mais. Sentia pena, medo e arrependimento.
Dias depois, Dora apareceu grávida. Apesar de todos os surtos de suicídio, esse acontecimento era o único e grande motivo de que ela precisava para ter companhia, conversar, ler poesia, ouvir música e sonhar que o amanhã seria de livre-arbítrio.
Nasceu João Lima da Silva em 2003 e Dora tinha a chama eterna da luz e do amor infinitos. Ser mãe era a força motriz de que Dora tanto precisava para lutar contra as correntes da escravidão em pleno século XXI.
Agora, Dora já não era sozinha e podia sorrir sem medo de ser feliz como era antes de se alistar para o suicídio. Aos poucos, o brilho foi tomando conta dos lábios da professora Dora e José passou a perder o sobrenome.
João esteve com ela por longos anos. Dora fugia de JQ aos poucos. E o medo, também aos poucos, ia desaparecendo e a seiva ganhava corpo e voz.
O silêncio de Dora já era gritante. A luta e o anseio por libertação empurravam-na sempre para frente. Dora voltou para a Universidade e adquiriu respeito e voz como professora. JQ foi perdendo as energias diante da coragem de uma nova Fênix que nunca deveria ter se calado e muito menos ouvido as leis religiosas que tomam a mulher por fonte de submissão.
Dora aprendeu também, com José Saramago, que a honestidade é um princípio moral que o homem adquire de herança familiar e não nas igrejas. A religião, muitas vezes, leva o homem a usar máscaras de bom cidadão quando, na verdade, o amor e o respeito ao semelhante passam longe de muitos que se mascaram em templos de adoração a Deus. São os falsos profetas e os "anjinhos" querendo um céu que nem eles mesmos acreditam que existe.
Por anos, Dora era como Iauaretê. Falava com voz de bicho, sem ser compreendida. Todavia, chegou o dia em que ela deixou de tartamudear como Augusto Matraga e gritou alto demais em seu silêncio. Todo o grito veio depois que Dora leu na obra de Guimarães Rosa, que o silêncio era a gente demais e depois de ler que quem quiser atravessar um rio a nado não pode ficar tão entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Quem quiser atravessar um rio deve pensar que “num ponto mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou (...) o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia...”.
Sem medo das constantes ameaças, requereu o divórcio em litígio (o que a igreja condena) e sentiu que a sua liberdade só teria valor se fosse muito mais digna que outra mulher. Sem ter para onde ir, ainda assim, Dora saiu com seus livros: a única herança além dos mares navegados. Sentiu-se quase um Quixote de La Mancha.
Dora tornou-se a mulher que passa, canta feliz porque é professora e pode ser uma poetisa livre, escrever versos de todas as cores e fazer dedicatórias sem pedir nada em troca, porque amor foge a dicionários e imposições. Amor é estado de graça. E, se é estado de graça, é divino e é humano. E se o amor é divino e humano, é o mesmo amor do menino Jesus que acompanhava o poeta Alberto Caeiro quando guardava rebanhos.
Diante das pressões familiares e das bocas impiedosas dos que se dizem religiosos, Dora quase teve outro surto e, em vez de ir às margens do Rio Araguaia escrever poesia, ela teve vontade de saltar na ponte que divide os estados de Goiás e Mato Grosso, entre Santa Rita do Araguaia e Alto Araguaia, terra em que Dora Lima nasceu, no dia 25 de dezembro, no Hospital Samaritano.
Os jornais de Mato Grosso fariam sensacionalismo. Quem sabe os versos de Dora seriam declamados com uma marcha fúnebre, ou com o Réquiem de Mozart e até seria homenageada pela Academia Mato-grossense de Letras, já que os chamados imortais não conheceram os escritos de Dora Lima.
Eis que, diante das águas da ponte, com os pés posicionados para o segundo suicídio de sua vida, Dora surpreendeu-se com a voz do anjo que a socorreu na noite em que JQ a violentou sem piedade e por impulsos de ciúmes. Somente agora Dora consegue ver os olhos do coração do anjo, que era um cego. O mesmo que aparecia nas noites para declamar os versos de Vinícius de Moraes que ela nem adorava porque eram de amor e o amor que Dora ouviu dizer era o poço negro de amargura.
O cego pedia ajuda para atravessar a ponte. Foi assim que Dora conheceu o amor e o amor a pegou de vez como contraiu Jó Joaquim na história Desenredo, escrita por João Guimarães Rosa, justamente no mês das noivas, o calendário do amor, também o mês em que o cego nasceu.
Os curiosos em volta da ponte contaram para mim essa história e eu reconto a narrativa aqui, nestas linhas finais.
Dizem que foi um poeta cego que libertou Dora do suicídio de não ler poesia, de não falar de amor, de não sorrir com o coração verde dos pássaros e descrever a cor da água do Rio Araguaia e a espuma que formava nos dois rios entre Goiás e Mato Grosso e suas sagradas cachoeiras. No mesmo rio, de onde fazia a imagem do espelho que dava para ver a outra margem da vida após a morte e embalada pelos versos de Dora, ao som da música Travessia, de Milton Nascimento: “Eu não quero mais a morte. Tenho muito que viver. Vou querer amar de novo. E se não der, não vou sofrer (...). Hoje faço com meu braço o meu viver”. Como narradora testemunha, eu conto-vos, leitores, essa história. Do narrador aos seus ouvintes. E o povo pergunta: “E agora, José?”.
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[Qualquer semelhança entre a vida real e este conto pode ser ou não mera coincidência, escrito por Rosidelma Fraga, também disponível em: <http://rosidelmapoeta.blogspot.com>]