Fazenda Santa Cruz, em Leopoldina-MG, onde viveu o escritor português Miguel Torga por 5 anos.
Fazenda Santa Cruz, em Leopoldina-MG, onde viveu o escritor português Miguel Torga por 5 anos.

"Um de meus títulos de glória foi ter passado a adolescência no Brasil. O Brasil, amei-o eu sempre, foi o meu segundo berço, sinto-o na memória, trago-o no pensamento."  Miguel Torga

[Enéas Athanázio]

Em substancioso ensaio, o escritor Pedro Rogério Moreira rastreou os passos de Miguel Torga no Brasil. Considerado o maior escritor português de seu tempo, Torga esteve por duas vezes no país, a primeira aos 12 anos de idade, quando permaneceu por cinco anos, e a segunda aos 47 anos, já consagrado pela crítica e pelo público, aqui vindo para proferir conferências e outros compromissos literários.

Órfão em Portugal, Torga foi trazido ao Brasil pelo tio, fazendeiro em Providência, na Zona da Mata mineira. Na primeira estadia, o garoto sofreu toda sorte de humilhações pela “tia torta”, tendo que tratar dos porcos, rachar lenha e até matar cobras no terreno da fazenda, enfim, “todo serviço que podia humilhar o menino.” A bruxa via no pequeno hóspede uma ameaça à herança dos filhos. Os maus tratos marcaram para sempre a alma do futuro escritor.

Na segunda visita, já na maturidade, foi mais feliz. Esteve no Rio e em São Paulo, além de rever a região em que vivera na meninice, aonde “vai ao encontro de sua infância...”

Adolfo Correia da Rocha adotou o pseudônimo de Miguel Torga, com o qual se consagrou, homenageando Cervantes e Unamuno, além de uma flor agreste que teima em vicejar no chão inóspito de sua região natal. Na primeira vinda, viajou na terceira classe do navio inglês “Arlanza”, entregue aos cuidados do comerciante português de nome Gomes, que nem sequer o procurou durante a travessia. No Rio de Janeiro, embarcou num trem da Estrada de Ferro Leopoldina e se deslumbrou com a paisagem montanhosa do trajeto, suas matas e rios, observando as diversas estações onde o comboio fazia escalas. “As serras, os rios e as florestas eram de tal maneira, que não cabiam dentro dos olhos” – anotou ele. Nesse primeiro período, apesar de tudo, frequentou o célebre Ginásio Leopoldinense e teve os primeiros namoricos e paixões arrebatadas. Retornando à pátria, a seu pedido, estudou medicina na Universidade de Coimbra, cujo curso foi custeado pelo mesmo tio. Formado, estabeleceu-se como médico especialista em ouvidos, nariz e garganta na mesma cidade.

Independente, com sólida formação democrática, Torga sofreu implacável perseguição pela ditadura salazarista. Esteve na prisão de Aljube, foi demitido do serviço médico oficial, suas obras foram censuradas e foi relegado ao ostracismo cultural e social. Até sua esposa foi proibida de lecionar literatura portuguesa. “O ditador de Portugal levara aos extremos a crueldade da tia bruxa”, escreve o ensaísta, acrescentando: “Torga foi um combatente das letras, que jamais deixou de combater as desumanidades da civilização, especialmente as produzidas no campo político, como as guerras e as ditaduras.” Ainda que duramente perseguido, jamais deixou de bradar contra a criminosa ditadura salazarista que, como todas, praticava mais um de seus incontáveis crimes. E ainda existe quem pregue a implantação da ditadura!

Torga registra em seus diários os nomes de várias estações por onde passou na primeira vinda ao Brasil, estações da Estrada de Ferro Leopoldina, hoje extinta, algumas delas ainda com vida e outras em ruínas. Fotos de muitas delas foram estampadas no livro. É curioso lembrar que, na segunda viagem, o escritor português chegava ao Rio em 24 de agosto de 1954, dia fatídico em que se suicidava o presidente Getúlio Vargas. São muitas as referências ao Brasil na sua obra.

“Geografia sentimental de Miguel Torga em Minas” foi publicado na Revista da Academia Mineira de Letras e depois em separata pela Thesaurus Editora, de Brasília.

Pedro Rogério é membro da Academia Mineira e filho do escritor Vivaldi Moreira, sagrado Presidente Perpétuo da mesma.

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