EM BUSCA DA POÉTICA DE J. G. DE ARAÚJO JORGE

 
Rogel Samuel


Faço aqui uma breve tentativa de ensaio crítico sobre este grande poeta – e como “ensaio”, algo provisório, limitado a alguns poemas de “Harpa submersa” (1952), para mim reveladores, indicadores daquela arte do poeta acreano, no centenário de seu nascimento.

Até hoje, ele ainda é o poeta mais lido do Brasil, porque popular, fácil, melódico, oral. De certo modo, o maior poeta para o povo brasileiro. Famosíssimo mesmo hoje, tantos anos depois de sua morte (1987), publicou 36 livros, um romance, 2 LPs, várias músicas, manteve programa de rádio, é nome de rua no Rio de Janeiro e em várias cidades brasileiras. Suas músicas foram gravadas por Orlando Silva, Nana Caymmi, Carlos Galhardo, Silvio Caldas, Agnaldo Timóteo, etc.

Foi professor do Colégio Pedro II, no tempo em que lá só chegavam grandes mestres. 

Enfim, uma vida plena e gloriosa.

Morreu aos 73 anos.

 
A obra literária, sua poética, se confunde com a sua ideologia política, que ele escreveu para povo, para o leitor semialfabetizado, rural, proletário, operário, para as belas normalistas suburbanas, que com elas queria comunicar-se, para as massas, deu voz às massas, como poeta.

Creio que foi o único parlamentar brasileiro moderno que conseguiu eleger-se como poeta, com a fama de Poeta, com a popularidade de seus livros, que eram publicados e vendidos aos milhares, mesmo no interior brasileiro, em papel jornal pela Editora Vecchi. “Amo!” vendeu 80 mil. Ele foi o único poeta brasileiro que vendeu mais de um milhão de livros.

JG por volta dos 18/19 anos.
Foto cedida por Rogel Samuel,
retirada de livro do poeta.
Nasceu em 20 de maio de 1914, em Tarauacá (que na época devia ser uma pequena vila na beira do rio), no Acre.

Curso primário no Acre, secundário nos Colégios Anglo-Americano e Pedro II do Rio.

Em 1931, ainda estudante, publicou um poema no “Correio da Manhã”, depois transcrito no popular “Almanaque Bertand”, em 1932.

Em 1932, no Externato Pedro II, foi escolhido “Príncipe dos Poetas”, saudado por Coelho Neto.

Estudou na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil.

Foi orador oficial do CACO, da União Democrática Estudantil, precursora da UNE, da Associação Universitária. 

Foi locutor e redator da Rádio Nacional, Tupi e Eldorado.

Em Coimbra, recebeu o título de “estudante honorário” e na Alemanha fez Curso de Extensão Cultural na Universidade de Berlim.

Elegeu-se Deputado Federal em 1970, pela Guanabara, reelegendo-se para o terceiro mandato em 1978.

Ocupou a vice-liderança do MDB e a presidência da Comissão de Comunicação na Câmara dos Deputados.

Só não foi reeleito pela 4ª vez devido na uma greve dos Correios, que (dizem) o deixou endividado e deprimido, morrendo anos depois, em 1987, creio que em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro.

Ele adorava Friburgo.

Politicamente, era homem de esquerda, desde estudante, quando combateu o “Estado Novo”. Preso e perseguido várias vezes. Deixou de ser orador de sua turma por estar detido na Vila Militar, em 1937.   

Ficou famoso como Poeta do Povo e da Mocidade, pela mensagem socialista da sua obra lírica.

Um dia, uma pessoa querendo me ofender, me disse:

- Sabe quem gostou do seu livro?... A minha empregada!

Isto não seria problema para o grande J. G. de Araújo Jorge, que se dirigia à massa proletária!

Ele mesmo tem um livro que se chama “O poeta na praça” (1981).

Sua poesia é oral, livre, espacial, fácil.

Como não compreender sua poética?

“O diabo é que não sou complicado / sempre sei o que sinto, o que quero, / pelo menos no momento que passa. // Por isso não tenho dificuldade em meu verso, / na verdade, não tenho nenhum trabalho, / ele vem e me diz: aqui estou! / Pois bem: que cante!” (“Harpa Submersa” 1952 )

No seu “Canto Banal”, ele diz:

“Não te quero dizer palavras difíceis e deformantes / nem inventar imagens que embelezam talvez / mas que não reconheces. // Não tocarei música para os teus ouvidos / nem criarei poesia para a tua imaginação, / nem nada esculpirei que já não esteja em ti... // Nesse instante serei banal, / não respeitarei nem mesmo o silêncio, / nada que nos eleve além do plano em que estamos, / não serás estrela, não serás a nuvem, não serás a flor... // Quando chegares, e eu tomar teu corpo em meus braços nervosos, te direi apenas: / - meu amor!” (“Harpa Submersa” 1952).

Ele também sabia dizer coisas como:

“Meu coração, como uma harpa submersa, / jaz no fundo de que ignorado oceano? / Que estranhas correntes arrancam de suas cordas / sons líquidos e redondos que se perdem côncavos / antes de chegar à tona?... // Que peixes cegos tiram notas imprevistas / e se vão tontos na ondulação do canto que despertam / entre espectros calcários e verdes algas trementes? // Que músicas borbulhantes se agitam, nascidas / de que movimentos sem origens, incognoscíveis, / marcando um tempo morto e imensurável? // Meu coração é como uma harpa submersa, / sem dedos, sem cordas, tocando sozinha / uma canção que desvenda os mistérios da vida / para os peixes ouvirem.” (“Harpa Submersa” 1952).

Que significa Harpa Submersa?

Harpa Submersa “/ Este retardatário gosto de pureza, / que me vem à boca do fundo coração, / não sei se é tédio ou o sinal de alvoradas renascentes. / Na areia branca onde a onda tenta apagar/ vestígios de pés e levar todas as conchas, / me deixo à espera de outras vagas carregadas de conchas / ou de passos que tatuem novas marcas / na epiderme do coração. / Pobre coração marinheiro, tão marcado, / de que canto obscuro desenterras imprevistamente / esta harpa cheia de algas e de sons submersos?” (“Harpa Submersa” 1952).

A água é signo feminino. Ele sabe tocar o âmago da mulher, tocar a sua Harpa, o seu ventre submerso.

O canto lhe vem à boca, do fundo do mar do coração. O canto nasce imprevisto do obscuro das algas, do som submerso daquela harpa cheia de algas, de pureza retardatária, do seu itinerário, das marcas na areia do chão de sua vida.

Harpa Submersa significa “ventre submerso”. Ele é o poeta do sentimento, do amor, do itinerário da vida. Ele era um “poeta popular” sim.  E a depender dos leitores, o poeta da Harpa Submersa vai se tornar eterno.

Ele não entrou na Academia Brasileira, mas se sentia “Imortal”:

“Me sinto na academia, me sinto “imortal” / Não sei bem de que academia / nem sei a que morte me refiro / sei que neste momento me sinto como as crianças / e os animais / para quem a morte não é nem mesmo, / uma palavra que se lê.”

Por que deputado?

Por que o grande poeta do povo entrou na política?

Por que foi um grande político de esquerda, tão grande que morreu pobre e endividado?

Porque toda poesia é uma política. Política entendida como a arte de mudar o mundo. Era no mundo grego a “arte da polis”. A consciência comunicativa vigorava na polis grega, entre os homens livres. Mas a poesia só manifesta “arte” na medida em que está a serviço da “polis”. O mundo poético é o mundo da sociedade. A poesia, tal como ele a praticou, resume uma grande força política em prol do desenvolvimento espiritual dos povos.

O poeta dá voz aos povos, como um profeta, as massas se identificam com ele.

Ele não era porta-voz da classe dominante, da elite intelectual dominante, que combateu e por isso ela se vingou, apagando o seu nome das histórias da literatura.
Mas ele não precisava disso.

Sua legitimação vinha do povo.

Ele fez política, fez política com a sua poesia de amor. Quando canta: “meu coração é como uma harpa submersa, / sem dedos, sem cordas, tocando sozinha / uma canção que desvenda os mistérios da vida / para os peixes ouvirem” – tais peixes atuam, nadam no subconsciente revolucionário das massas proletárias.

Poucos como ele sabem que a poesia pode mudar o mundo.

Por isso ele não consta das histórias literárias e a crítica o ignora.

O seu público é outro: JG escreveu para a massa proletária dos “homens tristes” (de que ele sempre fala), para o verdadeiro Brasil operário.

Hoje ele seria aceito?

Não sei. Talvez. Mas não pela mídia, que a elite dominante continua a mesma e mais entrincheirada. O Brasil está cheio de grandes poetas esquecidos da mídia e da crítica.

Mesmo assim JG colecionou prêmios acadêmicos, como o “Prêmio Raul de Leoni”, para o melhor livro de poesia do ano, prêmio oferecido pela Academia Carioca de Letras, com o livro “Eterno motivo”, em 1943.

E até agora ele vende muito: seus livros são os primeiros a vender nos sebos, quando aparecem.

Suas obras estão quase todas na Internet.

Mas em Tarauacá, onde nasceu o poeta, não existe nenhuma livraria...

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ROGEL SAMUEL é doutor em Letras e professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. Poeta, romancista, cronista, webjornalista. É autor, entre outros, de O Amante das Amazonas (2005, 2a edição), Novo Manual de Teoria Literária (2013, 6a reimpressão); Teatro Amazonas (2012); e Modernas Teorias Literárias: breve introdução (2014). Visite a página pessoal do autor: literaturarogelsamuel.blogspot.com