Elfriede Jelinek (Prémio Nobel-2004)‏

PAULA

Outrora eu ainda fazia os exercícios de ginástica, que são
feitos para que a gente adquira e mantenha uma barriga reta e
dura. Então eu senti uma gravidez se aproximando e desisti
desses importantes exercícios, que eu havia recortado de um
jornal. Parece que eu havia sido feita para me tornar mãe, e
portanto era, sim, um ser humano inteiro. E a gente costuma
dizer que a gravidez exige um ser humano inteiro. Talvez
tenha sido um erro eu ter parado com os exercícios quando
senti que estava me tornando mãe, pois não é bom parar jamais
com os exercícios quando a gente sente que está se tornando
mãe: aí mesmo é que não. Pois caso contrário ao invés de um
ser humano inteiro a gente é apenas um pela metade, ou
dividido. Talvez isso também tenha contribuído para eu
começar a me estranhar pouco a pouco de meu marido, coisa que
encontrou sua expressão em uma crise conjugal. Temo que eu
tenha me negligenciado um pouco quando senti uma nova vida
crescer em mim. A gente não pode se concentrar tanto na vida
que cresce dentro da gente, a gente tem de também dedicar uma
atençãozinha ao marido, porque caso contrário ele se sente
negligenciado de repente. Ele não deve acreditar que agora já
não faz mais parte do primeiro plano e é relegado ao segundo.
A vida nova dentro de mim, portanto, cresceu e cresceu, mas
eu entrei cada vez mais em decadência exterior, numa grandeza
diretamente proporcional ao crescimento da nova vida. E ainda
por cima os pesados trabalhos domésticos que, se não
atrapalhavam o crescimento da nova vida, me afastavam cada
vez mais dos meus cuidados mínimos diários comigo mesma.
Claro que eu ainda não tinha 16, mas quanto mais vida nova eu
sentia dentro de mim, tanto mais cabelos e dentes caíam de
minha cabeça, o que não teria sido absolutamente necessário,
se eu tivesse feito uso dos truques cosméticos que a gente
tem de usar a fim de poder permanecer com seus cabelos e seus
dentes. Eu estava um bocado desfigurada! Até então sempre
havia tentado manter meu juízo, por exemplo, através de
programas de televisão, bem informada. Agora, no entanto, eu
tinha de, justo na hora de olhar TV, buscar meu marido no
restaurante, e isso se repetia cada vez mais; à hora do
horário nobre ele já estava sempre completamente bêbado. O
caminho do restaurante para casa era um caminho difícil,
muitas vezes nós dois caíamos juntos, tropeçando em
obstáculos, ou ele me esbofeteava até eu cair num buraco, no
chão. Mesmo assim eu sempre estava contente por tê-lo trazido
são e salvo para casa. Se ele se embebedasse mais tarde, eu
não conseguiria mais arrancá-lo da cama de manhã cedo para
encaminhá-lo ao trabalho. Mas assim ele ainda conseguia se
preparar a tempo de seguir nesse caminho difícil. Também eu
teria de fazer meu caminho difícil ao hospital em pouco, a
fim de executar o nascimento. Durante o tempo em que senti
que estava me tornando mãe, começou, pois, meu estranhamento
em relação ao meu marido, que em pouco se estendia com
rapidez, abarcando todos os setores do cotidiano. Porque meu
único capital, meu corpo outrora elegante e por isso fácil de
ser tratado, tanto cosmética quanto vestuariamente, agora
lamentavelmente me deixava na mão. Quer dizer, era o fim da
elegância. O mais importante na verdade é sempre ter uma
base, qualquer que seja ela, sobre a qual a gente pode
construir tudo, no meu caso essa base era meu corpo elegante,
e ela se fora. Em pouco meu marido começou a me dar pontapés
ora aqui ora acolá. Às vezes eu tinha sorte e ele acertava um
lugar que doía menos, como a coxa ou o traseiro, mas às vezes
eu tinha azar e ele acertava um lugar que me doía muito mais,
a barriga por exemplo. Mesmo durante a gravidez, minha
barriga parecia não ser nem um pouco sagrada para ele,
conforme aliás deveria ser, mas sim algo profano, que podia
ser chutado. Mesmo assim a gravidez não foi interrompida.
Aqui está escrito que a gente tem de continuar os exercícios
ginásticos quaisquer que sejam as circunstâncias. Mas a
circunstância, o estado interessante era para mim uma carga
tão pesada que os exercícios tinham de ficar pra trás. O que
é importante entre um homem e uma mulher é o respeito mútuo.
E meu marido lamentavelmente não conseguia demonstrá-lo mais
para comigo, porque eu me acabei tanto em termos físicos. Sei
que deveria ter me defendido contra esse ímpeto interno que
sempre me dizia: jogue tudo para o alto, que tinha de lutar
contra ele, talvez, quem sabe, eu até tivesse vencido, e o
ímpeto de jogar tudo para o alto teria sucumbido. Mas então
eu de repente senti um pânico se levantar dentro de mim, que
me dizia: cuidados cosméticos, ainda que sejam os cuidados
mais essenciais, custam dinheiro. E esse dinheiro meu marido
bebia. Mal meu marido havia ouvido que eu sentia que estava
me tornando mãe, e já ele foi ao botequim e não saiu mais de
lá a não ser para me bater e me chutar. Às vezes ele também
me fazia pensar se nós não éramos demasiado limitados em
termos de espaço para ter crianças, porque nós tínhamos
apenas esse quarto pequeno na casa de meus pais para morar.
Ele teria preferido que eu sumisse no ar ou talvez morrido
com aquela vida que ainda não vira a luz do mundo, apenas
para que eu e a vida que ainda não vira a luz do mundo não
ocupássemos espaço. Ainda que meu corpo elegante tenha
ocupado pouco espaço outrora em sua condição de corpo
elegante, isso agora havia terminado, e de dia para dia eu
ocupava mais espaço, tanto mais quanto mais sentia que me
tornava mãe. Primeiro meu marido disse: Um dia eu não
conseguirei mais entrar pela porta, quando chegar morto de
cansado do trabalho para casa, se você e seu bastardo
seguirem ocupando mais espaço, depois ele tentava, através
dos métodos radicais mencionados acima, reduzir o volume da
minha barriga a suas medidas normais e naturais. É uma sorte
e tanto quando a gente sente que está se tornando mãe, mas eu
sentia apenas as pancadas de meu esposo descerem como granizo
sobre meu agora pouco flexível e por isso nada ágil corpo de
grávida. É um tempo de preparação interna e externa para uma
mulher. Eu sou uma mulher. Mas eu quase sempre estava
despreparada quando as pancadas vinham, ainda que as
esperasse de hora em hora. Às vezes, quando eu
excepcionalmente tentava enfiar um pouco de diversão e
distração da rotina cotidiana em minha cabeça, ao olhar
alguma coisa na TV, ele logo me tirava da diversão e da
distração, me tirava da sala dos meus pais, me conduzia ao
nosso quartinho e lá me espancava, às vezes até na cabeça,
que, se continuava ágil, aos poucos também passou a ter
dificuldades, assim como meu corpo. Eu acredito que meu
marido desejava em segredo que aquele que não havia nascido
continuasse na condição de não nascido e jamais se tornasse
algo nascido, coisa que quase chegou a conseguir num belo dia
desses. Se não tivessem mantido minha alma e meu corpo unidos
no hospital e quase atado o que não havia nascido a eles,
quem sabe talvez hoje minha alma e meu corpo já estivessem
separados um do outro. Mas ambos acabaram sendo salvos. Foi
um belo tempo aquele, boa comida, carne muitas vezes, até que
meu esposo voltou a me tirar do hospital, porque eu tinha de
executar os trabalhos domésticos, pois, caso contrário, quem
os faria? E assim também esse belo tempo chegou ao fim, ainda
hoje gosto de me lembrar dele. Mas meu esposo desejava ter-me
ao lado dele, que é onde a mulher deve estar. E assim eu
voltei às minhas obrigações cotidianas ao lado dele. Agora
até que as coisas andavam de novo, com as forças um pouco
renovadas; a vida que estava se preparando para ser, em minha
barriga, saneada por algum tempo. No hospital eu já havia
visto um novo corte de cabelo numa revista ilustrada, corte
de cabelo que eu lamentavelmente não podia mandar fazer em
minha cabeça. Oh, se eu o tivesse feito! O fato de não fazê-
lo por certo foi um erro que logo se vingaria de mim,
enquanto eu ficava cada vez menos atrativa para meu marido,
vendo a vida que se formava por assim dizer comendo meus
cabelos; um novo corte de cabelo talvez pudesse salvar o que
ainda havia para ser salvo, que não era muito, mas esse sonho
eu tive de ver frustrado antes mesmo de chegar a sonhá-lo de
fato. E assim tudo ficou como era antes. Meu esposo talvez
ficasse satisfeito com uma mulher de cabelo novo, cortado
curto, mas ainda mais satisfeito ele ficava com um ou mais
litros de álcool dentro de si. Apesar disso eu continuava
sendo torturada pelo pensamento de que poderia ter feito bem
mais em termos cosméticos e ginásticos para o caso que agora
estava sucedendo, ou seja, meu ocaso físico, que se fazia
visível, entre outras coisas, também na água das pernas, que
tornava o ato de caminhar um assunto complicado e demorado. É
até bem natural e nem um pouco perigoso que mulheres que
estão esperando um filho tenham água nas pernas, e isso
costuma desaparecer sem deixar rastros depois do nascimento.
Essa é uma das poucas coisas que não deixam marcas em um ser
humano. A água de fato sumiu sem deixar rastros e a criança
era uma criança saudável, mais tarde ainda haveria mais uma.
S e outrora eu ansiava por cuidados cosméticos e mais tempo
para a ginástica, agora eu ansiava incompreensivelmente por
uma vida melhor, que eu pensava que seria mais adequada para
mim do que uma pior. Por certo foi um erro da minha parte
pensar que eu tinha um direito natural a uma vida assim
concedido pelo fato de eu ter filhos saudáveis. Há pessoas
que não podem afirmar o mesmo de si. E também eu, a mãe,
estava saudável. E isso era uma sorte que muitas mães
afirmavam ser uma sorte desmerecida, porque entre essas
muitas também há aquelas que trazem ao mundo crianças pouco
saudáveis, quando não doentes, e as chamam de suas. Também o
meu esposo estava, dadas as circunstâncias, saudável. As
circunstâncias, por seu lado, eram quase insalubres nesse
quarto pequeno, no qual viviam quatro pessoas, na verdade
apenas três, pois crianças com menos de 14 anos são meias
pessoas, é isso que diz a lei, quando se trata de quantas
pessoas podem viajar em um automóvel. Talvez tenha sido um
erro meu o fato de eu querer mudar essas circunstâncias de
vida em dignas de vida, em circunstâncias dignas de vida, eu
quero dizer. Eu deveria ter me contentado com o fato de todos
termos o suficiente para comer até nos fartar, do que meu
esposo se encarregava depois de ter desviado uma parte nem um
pouco insignificante de seu salário semanal para fins
alcoólicos. Eu também reconheço que as circunstâncias de vida
de meu esposo também não eram as mais agradáveis do mundo,
uma vez que além das circunstâncias de vida desagradáveis em
casa, que nós dividíamos com ele, ele também tinha de
encaminhar o trabalho desagradável e pesado na floresta. Em
todo caso nós morávamos apenas em três, se não em dois, no
pequeno espaço do quarto, enquanto ele derrubava árvores,
zeloso, lá fora. Mas tão pouco quanto me contentava o fato de
viver entre três em um espaço tão pequeno, tão pouco também
me contentava viver entre quatro no mesmo espaço pequeno e
ainda ser afastada a pancadas da frente da TV justo na parte
mais empolgante, ora por ninharias ora, conforme eu tenho de
admitir, por importantes faltas matrimoniais como uma louça
que foi deixada de lavar por causa do "Comissário". Onde meu
marido tinha razão, ele tinha razão. Serviços domésticos e
crianças não podem sofrer sob as conseqüências
do "Comissário". Quando os serviços domésticos e as crianças
não sofriam sob as conseqüências do "Comissário", eles
lamentavelmente sofriam, e cada vez mais, devido a uma mãe
irritadiça e muitas vezes também rabugenta, ou seja, devido a
mim, que imaginava estar vivendo sob uma carga insuportável,
que se manifestava sobretudo em termos nervosos, mas que na
verdade sempre fora suportável. Prova: eu a suportei. E isso
durante vários anos! E isso prova, por sua vez, que no final
das contas a culpa tinha de ser minha. Depois de eu ter
desistido da ginástica diária para a barriga e os quadris,
bem como do batom e da sombra para os olhos, eu teria de pelo
menos buscar e encontrar uma compensação menos transitória,
até permanente para isso, quer dizer, meu esposo, as crianças
e tudo o que diz respeito aos serviços domésticos. Se é
verdade que eu havia procurado e encontrado meu esposo, as
crianças e inclusive os serviços domésticos, eles não foram
uma compensação duradoura para mim. Ou seja, continuei
conservando em mim um certo superficialismo, ainda que minha
vida tivesse uma profundidade verdadeiramente suficiente;
assim mesmo as pancadas que se abatiam sobre mim, por
exemplo, muitas vezes acabavam deixando um sentimento
profundo de ódio contra aquele que as dava dentro de mim,
aquela que as recebia. Em seguida eu vim a cometer, conforme
acredito, aquele que foi o erro decisivo: ver no dinheiro a
solução desses problemas, ele que jamais pode ser uma solução
de verdade, uma vez que as coisas decisivas da vida, conforme
todo mundo sabe, não podem ser compradas pelo dinheiro, a
saúde, por exemplo, conforme eu já expliquei anteriormente.
Ao invés disso eu queria comprar sempre mais e com mais
violência. Algo que a gente quer alcançar com violência
muitas vezes acaba não dando certo. Mas algo que a gente pode
comprar com dinheiro, a gente pode comprar, pressupondo-se o
fato de que a gente pode dizer que esse dinheiro é seu. O
dinheiro move o mundo. Isso é uma fatura das mais simples.
Talvez tivesse sido de fato minha culpa, mas a prostituição
por dinheiro, na qual eu ao final das contas vi a minha única
saída para alcançar o que eu queria, me deu tanto dinheiro
que eu poderia me dar ao luxo de levar uma vida
despreocupada, principalmente no lugar em que morávamos, onde
a oferta de prostitutas por assim dizer praticamente não
estava à mão. Ou, para dizer melhor, teria me dado tanto
dinheiro se não fosse impossível a má árvore dar bom fruto. O
dinheiro conseguido com a prostituição era o resultado dessa
má árvore, que também em meu caso não deu bom fruto. Tudo
isso eu percebi mais tardar no dia em que tudo foi
descoberto, ou seja, que o fruto que eu obtinha com tanto
zelo era mau. Eu o havia obtido com a ajuda do meu corpo
cosmeticamente descuidado e, lamentavelmente sou obrigada a
dizer, quase desleixado, que mesmo assim ainda poderia ser
chamado de um corpo feminino, cujos poucos cabelos ainda não
haviam sido cortados, cujas unhas quebradas ainda não haviam
sido pintadas, cujos saltos ainda estavam tortos e não haviam
sido trocados, e assim por diante. Eu o havia obtido, ainda
que alguém mal pudesse encontrar algo de atrativo em mim, nem
mesmo com o auxílio de uma lupa, e ainda assim parece que as
poucas características tipicamente femininas bastavam a fim
de encaminhar com elas um negócio pequeno mas florescente.
Mas justo no momento em que eu começava a me arranjar um
pouco de novo, os cuidados de conservação e proteção já
chegavam ao fim, pois nesse momento veio a se confirmar mais
uma vez o fato de que a má árvore não pode dar bom fruto. E
por um acaso idiota. Meus filhos e meu esposo se foram tão
rápido que eu nem sequer me dei conta. Justo agora que eu
voltava a ter in petto uma feminilidade um pouco mais
cuidada. Precisamente agora que eu podia recomeçar a me
tornar atrativa mais uma vez, tinha de acontecer isso. Os
frutos obtidos da árvore má encolheram tanto mais rápidos na
seqüência, conforme me parece, e eles encolheram inclusive
nos tempos depois da separação, quando eu tive de procurar um
emprego que por fim também acabei encontrando. De verdade, um
capital parado chega ao fim bem rápido. Eu mesma tinha de
trabalhar, não podia ficar parada. Talvez também tenha sido
um erro meu até certo ponto não ter continuado a obter meus
frutos da árvore má, coisa que configura uma atividade fácil,
ainda que um tanto nojenta, mas eu queria, já que não tinha
mais uma família que poderia chamar de minha, obter meus
frutos de maneira decente. Talvez tenha sido um erro eu ter
dado um basta na prostituição e me dedicado à atividade do
fabrico; na primeira por certo eu ganharia mais, mas ela já
havia me dado azar uma vez, sobretudo porque eu posso
alimentar a esperança de, pela minha aparência, encontrar um
namorado logo, que talvez venha a ter um trabalho mais limpo
e não entre em contato com uma gota de álcool sequer. Então
talvez o investimento que consiste em exercer um trabalho
legal e correto em uma fábrica renda seus juros sob a forma
de um novo casamento e de novos filhos. Não quero jogar para
o alto essa chance, através de uma nova busca de frutos em
árvores más... Coisas como ter azar ou colher frutos fáceis
se transformam com facilidade num mau costume. E eu gostaria
de também pertencer, em pouco tempo, àquelas pessoas que por
costume e até com regularidade têm sorte, como o proprietário
dessa fábrica de papel, por exemplo, para citar apenas um,
essa fábrica na qual eu ganho meu pão e meus cosméticos. Os
últimos representam um assim chamado EXTRA, que todavia me é
muito conveniente e pertence à categoria dos investimentos
legítimos que objetivam fundar um novo casamento e uma nova
casa com uma pessoa nova, descansada e nada gasta. Dessa
maneira eu por certo não haverei de obter muitos bens, mas
farei com que pelo menos esses bens dêem seus frutos. Da
outra maneira eu com certeza poderei vir a obter muito mais
bens, mas em minhas mãos eles apenas haveriam de trazer azar
e não dariam bons frutos. Para mim chega de azar. Agora eu
quero progredir. Eu aprendi com os meus erros do passado, o
que já é um senhor desempenho. Uma vez já fui eu quem cometeu
o erro, em uma eventual segunda vez o erro não será meu. Aí


as coisas terão de andar como manda o figurino.

 

 

ELFRIEDE JELINEK
 Conto "Paula", da coletânea "A Inocência Infinda" (Die
Endlose Unschuldigkeit, 1980),

Tradução brasileira de Marcelo Backes