[Bráulio Tavares]

 

 

 


É um dos poemas mais melancólicos de Alguma Poesia, o primeiro livro de Carlos Drummond, cujos 80 anos de publicação estamos comemorando. (Se o leitor ainda não percebeu, estabeleci o projeto de comentar aqui nesta coluna todos os poemas desse livro, até o final do ano.) É uma pequena história de amor tristonho, ou melhor, um curtíssimo episódio de uma história de amor. O poeta diz: “A noite caiu na minh’alma / fiquei triste sem querer. / Uma sombra veio vindo, / veio vindo, me abraçou. / Era a sombra de meu bem / que morreu há tanto tempo”. O poema começa com um metro menos comum (um octossílabo) e daí em diante sofre uma regressão à redondilha de 7 sílabas, bem confortável, bem folclore, com as irresistíveis aliterações e repetições das cantigas populares (“veio vindo, / veio vindo”).

O primeiro verso difere do restante, também, pela presença deste “minh’alma” tão Romântico ou Parnasiano, com apóstrofo e tudo. Porque daí em diante a linguagem relaxa, torna-se coloquial, modernista, com as heresias típicas do Modernismo, como iniciar a frase com pronome oblíquo: “Me abraçou com tanto amor / me apertou com tanto fogo / me beijou, me consolou”. É o ritmo oral, ritmo de romanceiro, que o poeta voltará a usar inúmeras vezes, e cujo ponto de síntese mais alto ele encontrou, talvez, no “Caso do Vestido”.

Uma primeira estrofe totalmente sombria (a cena não é necessariamente noturna, a noite é da alma; tudo isto pode ocorrer numa casa banhada de sol). Uma segunda mais terna, e até meio impudica (“me abraçou com tanto fogo”). E a terceira e última estrofe diz: “Depois riu devagarinho / me disse adeus com a cabeça / e saiu. Fechou a porta. / Ouvi seus passos na escada. / Depois mais nada... Acabou”. Em termos de linguagem, a linha mais modernista, para mim, é esse ótimo, tão desconcertante e tão coloquial “me disse adeus com a cabeça”.

Que sombra é essa que fecha portas, ao invés de passar através delas, e cujos passos se ouvem na escada? Mistério. Será uma mulher de carne e osso que veio visitar o viúvo, tão casmurro, coitado, para lhe fazer uns agrados? E que ele, até por fidelidade póstuma, identifica com a finada? Drummond tinha carinho pelos grandes solitários (“o sineiro, e a viúva e o microscopista”, em Sentimento do Mundo) e, tão jovem e recém-casado já se dava o luxo de imaginar as fantasias eróticas de um viúvo. A presença viva e atuante dos mortos é um tema constante em sua poesia, com exemplos mais evidentes em “Canção da Moça Fantasma de Belo Horizonte”, “Os rostos imóveis”, etc. Como num filme de Bergman os mortos passeiam por entre os vivos, sem serem percebidos. Vêm quando lhes dá na veneta, e somem sem explicações. Não são fantasmas, são fantasias ou devaneios diurnos, mas não são menos reais por isso. Fazem parte de nossos sonhos, parte de nós, que somos câmara escura para as imagens luminosas em que se tornaram.