[Sérgio Rodrigues]

O começo in medias res – expressão cunhada pelo poeta latino Horácio e que significa “no meio das coisas, dos fatos” – é aquele em que a narrativa já se inicia com o bonde andando, no meio ou perto do fim da história, e aos poucos vai dando ao leitor as necessárias informações sobre o passado. In medias res se opõe a ab ovo (do princípio), outro termo horaciano, e é típico da grande – e há muito extinta – poesia épica. Tão antigo quanto a própria literatura, portanto. O que não o torna menos eficaz nas narrativas modernas.

A “Ilíada” de Homero começa com a Guerra de Troia perto do fim e com o herói amuado em sua tenda, recusando-se a participar do cerco dos gregos aos troianos. Aquiles, sabemos depois, brigou com o rei Agamenon quando este lhe confiscou uma cativa por quem nutria especial afeição. De tão humilhado, quer que os gregos se explodam. Isso lá é jeito de começar? Claro que é. Num bom início in medias res, a própria confusão momentânea experimentada pelo leitor, para quem o quadro geral vai se desembaçando aos poucos, contribui para sustentar sua curiosidade.

Note-se que na técnica clássica do in medias res não basta adiantar um aspecto intrigante do final nas primeiras páginas e voltar logo em seguida ao começo, para narrar então de forma linear o caminho que foi dar lá. Este é outro truque, também útil para a obtenção de certos efeitos, mas tecnicamente menos exigente. Quando se começa “no meio dos fatos” mesmo, a ideia é avançar dali para o fim, com o passado se revelando sem pressa e muitas vezes confusamente, em espasmos, por meio de flashbacks ou diálogos reconstitutivos.

Os dois exemplos a seguir fazem isso, cada um ao seu modo e os dois de forma criativa. O primeiro, aparecido em 1941, é o começo do conto O jardim de caminhos que se bifurcam, do livro “Ficções”, obra-prima de Jorge Luis Borges (tradução de Carlos Nejar). Uma pequena introdução erudita típica do autor antecede a entrada do relato do narrador principal, ao qual, num golpe de gênio, “faltam as duas páginas iniciais”:

Na página 242 da “História da Guerra Europeia”, de Liddell Hart, lê-se que uma ofensiva de treze divisões britânicas (apoiadas por mil e quatrocentas peças de artilharia) contra a linha Serre-Montauban tinha sido planejada para o dia vinte e quatro de julho de 1916 e teve de ser postergada até a manhã do dia vinte e nove. As chuvas torrenciais (anota o capitão Liddell Hart) provocaram essa delonga – nada significativa, por certo. A seguinte declaração, ditada, relida e assinada pelo doutor Yu Tsun, antigo catedrático de inglês na Hochschule de Tsingtao, lança insuspeitada luz sobre o caso. Faltam as duas páginas iniciais.

“…e pendurei o fone. Imediatamente após, reconheci a voz que havia respondido em alemão. Era a do capitão Richard Madden. Madden, no apartamento de Viktor Runeberg, significava o fim de nossos afãs e – mas isso parecia muito secundário, ou assim devia parecer-me – também de nossas vidas. Queria dizer que Runeberg tinha sido detido, ou assassinado. Antes que declinasse o sol desse dia, eu sofreria a mesma sorte.”

O segundo exemplo é, por assim dizer, o in medias res elevado à potência convulsiva de um ataque epiléptico. O início de “O jogador”, publicado por Fiodor Dostoievski em 1866 (tradução de Oscar Mendes), lança o leitor no meio de tal tumulto de nomes e histórias já começadas que se arrisca a transformar sua curiosidade em exasperação. Fica uma dúvida: será que o grande escritor russo empurrava conscientemente os limites da técnica ou apenas transferia para o texto a urgência que cercou um romance ditado para sua estenógrafa (com quem acabaria se casando logo depois) em apenas três semanas, a fim de pagar uma dívida com seu editor?

Voltava finalmente depois de uma ausência de duas semanas. Os nossos estavam havia já três dias em Rulettenburgo. Pensava que eles, Deus sabe como, me estariam esperando, mas enganava-me. O general parecia o supra-sumo da indiferença; falou-me com altivez e enviou-me à sua irmã. Saltava aos olhos que, fosse como fosse, haviam arranjado dinheiro. A mim me pareceu também que o general se esforçava muito por não me olhar. Mária Filipóvna estava muito atarefada e falou-me muito à pressa; aceitou, não obstante, o dinheiro, contou-o e escutou meu relato até o fim. À hora da refeição esperavam Miezientsov, um francês e também certo inglês; assim costumavam fazer enquanto tinham dinheiro: em seguida davam jantares à moscovita. Polina Alieksándrovna, ao ver-me, perguntou: “Vai estar ali muito tempo?” E sem esperar resposta, foi-se para não sei onde. Naturalmente, fez aquilo de propósito. Precisávamos, não obstante, ter uma explicação. Haviam-se juntado muitas coisas.

Muitas coisas, realmente.