DISCURSO DE POSSE
Por Rogel Samuel Em: 07/08/2013, às 20H19
ACADEMIA AMAZONENSE DE LETRAS
DISCURSO DE POSSE
Agnello Uchôa Bittencourt (*)
Para começar não direi, por um suposto dever de cortesia, que a deliberação de me trazerdes ao vosso convívio possa ter sido fruto de vossa generosidade ou de vossa indulgência. Seria desvalorizar os sufrágios que ensejaram esta investidura. Para minha honra e meu contentamento, reconhecestes em mim aptidão para dar continuidade às presenças aqui de Agnello Bittencourt e de Ulysses Bittencourt, ocupantes da cadeira que tem Gonçalves Dias por patrono.
Identifico-me com a Academia Amazonense de Letras desde quando, há 65 anos, assisti, deslumbrado, Alcides Bahia, Pericles Moraes e Waldemar Pedrosa comunicarem a meu pai a outorga da mesma titulação que esta Casa atribuiria em 1976 a meu irmão, a mesma com que agora me distinguis.
Ao sentar-me entre vós devo dizer, sim, da percepção da responsabilidade que passo a portar, e de quanto a prezo. Assumo o papel de vosso companheiro com orgulhosa humildade.
E se é de preceito fale o recipiendário sobre patrono e antecessores, logo vos digo que, quanto a Gonçalves Dias, nada tenho a acrescentar a quanto de sua vida e de sua obra disseram em livro Antonio Henriques Leal, Lúcia Miguel Pereira, Manuel Bandeira, Josué Montello e mais os conferencistas da série de estudos que lhe dedicou a Academia Brasileira de Letras.
No que tange à sua estada no Amazonas, de fevereiro a outubro de 1861, trata-se de assunto suficientemente esclarecido, que mereceu a atenção de vários escritores aqui militantes, inclusive meus antecessores. Optei, pois, por fazer-lhe uma referência breve, apenas um comentário sobre os dias passados em nossa província.
Quando Gonçalves Dias chegou a Manaus, lembra Montello, seis anos fazia que nele se calara o poeta.(1) Aqui, em paralelo às atividades de inspetor escolar e coordenador da coleta de peças para uma exposição a realizar-se no Rio de Janeiro, reativar-se-ia sua expressão poética.
Aos padecimentos físicos, por sua saúde precária, somava-se a erosão interior pelo que nele representava fosse a perda de Ana Amélia, fosse sua severidade em perceber-se responsável pela desdita da amada. Sentimentos que o trouxeram de volta à poesia.
Salvo uns de sarcasmo político, seus versos de Manaus evocam o malogrado amor a Ana Amélia e expõem a amarga reflexão com que o poeta, a propósito desse amor, se flagela.
Em carta de 25 de maio, sente-se “uma sombra, sem coração, sem gosto, sem futuro, como uma planta sem raízes”; em outra carta, de 25 de agosto, propõe-se a alguma reação, em cima do desalento: “Ia para o Peru, para a Índia, para o Inferno - mudei de tenção, volto para o Rio”.(2)
Gonçalves Dias morara em capitais da Europa; fora interlocutor de
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(1) MONTELLO, Josué. Introdução. Em: “Diário de Viagem ao Rio Negro”. Transcrição de Lúcia Miguel Pereira. Rio, Academia Brasileira de Letras (Coleção “Afrânio Peixoto”), 1997, pag.18
(2) Apud Pinheiro, Geraldo. Em: Clube da Madrugada. “Gonçalves Dias: 1864-1964” Manaus, Ed. Sergio Cardoso, 1965. Pag. 21.
Martius; no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Imperador o ouvia. Agora, estava naquela aldeia parada no tempo, a ter hemoptises, com o casamento formal desestruturado e sem Ana Amélia - cheio de tédio e solidão.
Aqui, pois, não obstante o sucesso de suas missões administrativas, atravessou o poeta um momento existencial particularmente desfavorável.
Agora, neste instante, que para mim é de alegria, estou a trazer-vos a lembrança de registros sombrios da vida do patrono da cadeira em que vou sentar. Mas essa é a conotação do Amazonas nessa vida.
E também agora vos digo da carga emocional deste ato, ao sentar-me na cadeira que pertenceu a Agnello Bittencourt e a Ulysses Uchôa Bittencourt. Ao falar sobre eles, falo de pai e irmão: espero que não esperem de mim a obrigação do distanciamento crítico ou da frieza judicativa. Este não é um instante de questionamento e análise, este é um rito de saudade.
Desde professor rural a catedrático de Geografia do Colégio Estadual do Amazonas, Agnello Bittencourt exerceu o magistério por 52 anos, até aposentar-se.
Nos seus 99 anos, viveu um ciclo de mudanças radicais, quer em dimensão planetária, quer no âmbito de sua cidade natal.
Vejo-o em 1888, quando o Conde d’Eu esteve no Amazonas. De fato novo, ganho para a oportunidade, nem se dava conta do que olhava para o crepúsculo da Monarquia. Quando, no curso de minhas pesquisas, vim a ler as anotações manuscritas do próprio Conde sobre essa viagem, a minuciosa descrição que meu pai fazia de gestos, trajetos e trajes proporcionou-me como que olhar junto com ele tudo aquilo, compreendendo melhor tanto os episódios como o estilo de ser e conviver da época.
Vejo-o empolgado com a caçada da última onça de Manaus, morta na mata em frente onde hoje se ergue o Palácio Rio Negro, bem perto da casa do seu avô, casa pioneira, durante muito tempo ali isolada, razão de chamar-se àquele de “igarapé do Bittencourt”.
Vejo-o a receber uma bronca do Governador Eduardo Ribeiro: havia uma torneira aberta, o Governador entendeu que aquele rapazinho a abrira e deixara aberta; recriminou-o asperamente; o rapazinho ia passando, apenas parara a ver o Governador aproximar-se, a cavalo. Anos depois, o cidadão Agnello Bittencourt bendizia a injustiça, que demonstrava, no administrador vigilante, a determinação de defender o bem comum. Elson Faria frisou o episódio em um poema.
Vejo, ainda, Agnello Bittencourt, teria pouco mais de 18 anos, amanuense da Secretaria do Legislativo estadual, quando, no dia 25 de março de 1895, testemunhou, de sua mesa, a trama final para o não-reconhecimento de deputados da Oposição. Um dos contricantes advertiu: Fala baixo. Aquele é filho do Bittencourt. Não dava para parar. Fez-se o esbulho dos mandatos em sessão que começou às 10 horas da manhã quando regimentalmente deveria começar às 12. O foguetão do meio-dia, um ritual da cidade, estourou às 10. Apesar da evidência em contrário ficou valendo a fraude. Aquela legislatura passou a ser conhecida como “o Congresso Foguetão”. O futuro historiador Agnello Bittencourt vira e ouvira a História acontecer.
Tais são referências sem interesse maior para compor a descrição de uma vida. Ganham porém, significado quando o que se quer entender é a acumulação de vivência e, pois, a absorção e sedimentação de valores. No que Agnello Bittencourt teve uma inspiração constante: a vida de seu pai, Antonio Clemente Ribeiro Bittencourt, cuja imagem cultivava como um modelo ético e cívico. Aliás, por três vezes exerceria papéis que seu pai exercera: o de Prefeito de Manaus, o de Presidente do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, o de Grão-Mestre da Maçonaria do Amazonas e Acre.
De Antonio Bittencourt Agnello herdou a identificação com o Amazonas - um dado consubstancial de sua vida, a refletir-se na temática de sua obra. Para comprová-lo, basta citar três títulos em uma produção intelectual de cerca de 70 anos: sua tese de concurso, de 1905, procurou sistematizar quanto se sabia então da geografia do Amazonas; em 1925 esse esforço se amplia na “Corografia do Estado do Amazonas”; de 1973 é o “Dicionário Amazonense de Biografias”.
A primeira manifestação de militância intelectual de Agnello Bittencourt é o discurso que em 1893 proferiu ao definir-se a separação entre o curso de bacharelado em grau secundário e o de formação de professores, deste derivando o atual Instituto de Educação. Possuo o manuscrito desse discurso, com a mesma firme letra de toda a vida, a oferecer-nos o testemunho gráfico de sua precoce maturidade.
Em 1896, redação e oficinas do “Amazonas”, onde trabalhava, foram invadidas; a tipografia, empastelada; seu diretor, Raymundo Nunes Salgado, espancado. Nesse clima, o jornal reiniciou suas atividades sob a direção provisória de Francisco de Lima Bacury, tio de Agnello Bittencourt. Até a recuperação do diretor, um mês depois, Agnello fez o jornal, com a mesma linha política e a mesma vibração. Ainda não completara 20 anos. E, assinale-se, no jornal, em que, até pouco tempo atrás, fora tipógrafo.
Começando o século XX, lera o possível sobre a Amazônia. Amigo do Barão de Sant’Ana Nery, um clássico da Amazonologia, foi levá-lo a bordo do navio que o conduziria de volta à Europa. Aquela, em 1901, seria a última visita do Barão a Manaus. Aquela, então, estava sendo a última de tantas conversas de Agnello Bittencourt com o Barão sobre limites, lendas, missionários, castanha e borracha, tucunarés, o sairé, velhos cronistas.
Nessa fase, de fim de um século, de começo de outro, Agnello Bittencourt fez amizade com Bento Aranha, Bertino de Miranda Lima e João Baptista de Faria e Sousa, pesquisadores que tanto contribuíram para a História do Amazonas. Neles e em Bernardo Ramos, o “Beré”, encontrou estímulo para seu gosto por estudos históricos. A Bernardo Ramos acompanharia em 1917 na criação do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas.
Ainda nessa fase, é de mencionar sua constante interação intelectual com seu primo, o combativo e brilhante jornalista e orador Heliodoro Balbi.
A mesma paixão pela Amazônia que o ligava a Sant’Ana Nery e nutria sua articulação com Bertino, Bento Aranha, JB, Beré e Balbi, o levou a Ermano Stradelli, o jurista, poeta, etnólogo e linguista italiano, que se embrenhou em rios, serras e florestas, com seu título de conde esquecido, a interpretar os índios. A última vez que o viu Agnello Bittencourt foi em visita que lhe fez quando, pelos anos Vinte, o sábio pesquisador do mito de Jurupari se recolhera ao Umirizal, então uma colônia de hansenianos.
Diversos cursos d’água cortavam o aglomerado de casas predominantemente cobertas de palha em que foi menino: as ruas se arrumavam no interfluvio desses igarapés. Era de canoa que se ia para a escola. De canoa, Agnello ia visitar o avô, em outro igarapé. Veria os grandes aterros e sobre eles desdobrarem-se avenidas. Cresceu com a cidade. Viu o apogeu, viu o desabamento da economia e das ilusões, viu a modorra sem fim. Veria a animação fugaz da Batalha da Borracha, no momento da Segunda Grande Guerra. Veria a Zona Franca.
Por um lado, conservador. Foi um dos dois últimos usuários de fraque em Manaus - o outro foi o Prof. Vicente Telles de Souza. Por outro lado, mente aberta. Já passando dos noventa anos, soube ter simpatia aos estudantes de 1968.
Leitor infatigável, tinha fome de informações sobre a Amazônia. Assisti a conversas suas com práticos de rios sobre ilhas, curvas, paranás, sacados, rebojos, deltas, barrancos, distâncias. Amigo do Comandante Braz de Aguiar e do Major, depois Marechal Boanerges de Sousa, dedicados e competentes responsáveis pela demarcação de fronteiras, aproveitava de suas presenças em Manaus para informar-se sobre relevos do Sistema Parimo-guiano, cachoeiras, tribos, cabeceiras de rios e tudo quanto se relacionasse à fisiografia do contorno do território brasileiro no Norte e sua ocupação.
À disposição para aprender aliava a de repartir o sabido. Solicitado por um professor de currículo conspícuo, ou por um ginasiano, a um e a outro recebia com dados, indicações bibliográficas, acesso à sua biblioteca, e mais sala, papel e mesa, e um guaraná.
Suas aulas se caracterizavam pela fluidez da exposição, também por uma postura austera. Capaz de fazer cessar algum começo de turbulência sem uma palavra, somente com um olhar, sua irradiação de autoridade mal escondia como que um pudor da própria doçura.
Pelos meses finais de sua vida, em que morou com o filho também Agnello, amparado pela ternura e a competência da nora Letícia, e envolvido pelo carinho de familiares e amigos, tantas vezes de madrugada acordava e lhe ouvíamos a voz, inacreditavelmente forte: - Meu filho! E quando eu chegava: - Que horas são? Eu mentia: - São dez horas, pai - Então está cedo, dá tempo para conversar. Sempre temas de História da Amazônia: Lope de Aguirre, Pedro Teixeira, Antonio Vieira, os Carmelitas, Ajuricaba, Pombal, Mendonça Furtado, Pereira Caldas, Lobo d’Almada, a Cabanagem, o Barão de Solimões, a renúncia de Fileto Pires, o bombardeio de Manaus em 1910, o governo insurrecional de 1924. Administradores coloniais, políticos republicanos, fases, datações, fontes, nomes e feitos desfilavam pela madrugada. Creio que fiz, então, de pijama, uma espécie de mestrado.
Quatro dias antes de morrer, fragilizado, sem que percebesse as lágrimas que desciam dos meus olhos e dos de Letícia, ouvimo-lo recitar o “Sete anos de pastor Jacó servira” e, bem do fundo da memória, alguma coisa de cujo autor não se lembrava, talvez Gonçalves Crespo. Contou uma anedota potável de Bocage. E pediu que eu lhe lesse um poema de Claudel. Dormiu ouvindo Claudel. Não acordaria mais.
Relevem-me se esqueço de que esta é uma oração protocolar sujeita a disciplina do tempo. De repente, o texto me conduz.
Ora, prossigo.
Falo de Ulysses Uchôa Bittencourt, até há pouco ativo ocupante da cadeira patrocinada por Gonçalves Dias.
Ulysses preparou-se no Ginásio Amazonense Pedro II. Por esse tempo aplicava-se à produção de jornais estudantis. Lembro-me de seu empenho em redigir, obter anunciantes e promover a impressão do jornal “A Colmeia”, fainas desenvolvidas junto com Atila Sá Peixoto. Cheio de iniciativa, inquieto, incansável, pelo dia de Finados complementava a mesada vendendo velas na porta do cemitério, com o seu sócio, o hoje ilustre advogado Aldemir de Miranda - no que contavam com a torcida de suas famílias. Secundário feito, um dia Ulysses saiu de Manaus para ser aviador militar, matriculou-se na Escola de Veterinária do Exército. Com a extinção desta, completou o curso na então Universidade do Brasil. Indo ao Paraná em 1939, com uma carta de recomendação do seu cunhado, o Acadêmico Carlos de Araujo Lima, para o Interventor Manoel Ribas, e após uma viagem com este por uns dias, foi nomeado Prefeito de Guarapuava, na época nada menos que o maior município do Estado, algo como a quarta parte do território paranaense. Em Guarapuava, esse executivo de 23 anos deixou a marca de sua criatividade, dinamismo, energia, gosto de realizar. Testemunho de um magistrado que lá atuou e lá o conheceu, o Desembargador Lauro Fabrício de Melo Pinto: “O jovem prefeito modernizou a cidade, construiu estradas e pontes, e erigiu, pela primeira vez naquela velha região pastoril, um posto de monta, que melhorou sensivelmente o rebanho equino do município”. Em meio ao êxito administrativo, e não obstante o reconhecimento da comunidade, sentiu falta de Manaus, que não via há alguns anos. Pediu para deixar a Prefeitura, Manoel Ribas não quis acreditar, não lhe concedeu exoneração, deu-lhe uma licença, esperando que voltasse. No Amazonas veio a ocupar a cadeira de Geografia do Colégio Estadual, a qual fora de seu pai. De um desentendimento com o Diretor, o seu e meu amigo Machado e Silva, entendeu deixar o Colégio Estadual e regressar ao Rio de Janeiro. Aí, convocado para o Exército, serviria justamente no Paraná, em regimento comandado por um amazonense, o Coronel Salgado dos Santos. Em 1945 deixou o Exército e foi trabalhar no Departamento de Geografia e Estatística do Distrito Federal. Daí saiu para o Departamento de Renda Mercantil, em que se aposentou.
Com a aposentadoria passou a dispor de tempo para dedicar-se a escrever crônicas, publicadas na imprensa de Manaus. Nelas, com seu poder de evocação, em texto enxuto e fluente, conseguiu mobilizar o interesse e o enternecimento de muitos leitores, como pude comprovar em comentários que ouvi de tantas pessoas, tocadas por suas reminiscências, cuja exatidão procurava sempre escrupulosamente verificar. Esses textos reuniu-os em dois livros “Raiz” (1985) e “Patiguá” (1993), a este não tendo visto pronto.
Soube fazer amigos. Adorava ser-lhes útil. E até a quem mal conhecia prestava obséquios, como comprar no Rio e remeter para Manaus um livro ou um remédio; como acompanhar a situação de processos em repartições públicas. Do Mestre Arthur Reis, um dia, ouvi dizer a alguém que enfrentava uma dificuldade: - Fala com o Cônsul! - Que Cônsul? - O Cônsul do Amazonas. - E quem é o Cônsul do Amazonas? - Ora, é o Ulysses Bittencourt, telefone 236.2276.
Criara essa imagem por sua invariável disponibilidade para agradar. Apresentando “Patiguá”, Mario Ypiranga Monteiro lembrou essa investidura, legitimada pela gratidão de tantos.
Aliás, ao pronunciar esse nome, o de Mario Ypiranga Monteiro, quero destacar o quanto meus antecessores lhe devotavam apreço e lhe devota apreço este sobrevivente. Aluno de meu pai, colega de turma de meu irmão Mario - presos juntos os dois Marios em 1930 -, meu colega quando fui professor no Colégio Estadual, mantinha com Ulysses ativo relacionamento, temperado de admiração recíproca.
Sob a capa da cortesia e da militância da boa vontade, havia em Ulysses um impressionante lastro de determinação e coragem.
Lembro-me da cena. 1930. O Ginásio Amazonense cercado pela Polícia. Tiros. Tensão na cidade. Ninguém sabia como aquela confusa situação poderia terminar. Minha mãe, a professora Zulmira Uchôa Bittencourt, foi nos buscar, a mim e a meu irmão Antonio, na aula particular de D. Chiquita, na Rui Barbosa, ali perto da briga. Quando, quase correndo, atravessávamos a praça em frente ao Ginásio, um de seus lados com soldados agachados, fuzil à mão, Antonio e eu achando tudo ótimo, vimos o Ulysses, em seu uniforme de ginasiano, teria seus 14 anos, vindo no sentido do Ginásio. Minha mãe gritou: - Ulysses! Ulysses! Detido, informou que ia “engrossar a massa”. - Volta, Ulysses, estão atirando! - Por isso mesmo é que eu vou para lá. Contrariado, obedeceu.
No tempo em que Ulysses foi prefeito de Guarapuava, o Oeste do Paraná era uma região de bandidagem. Um delegado eficiente começou a prender bandidos. Na cadeia de Guarapuava já se acumulavam mais de cinquenta. Um dia, com o delegado ausente, houve um motim. Subjugaram a guarda, houve mortos, apropriaram-se de fuzis e munição, alguns fugiram. Não contavam com a pronta reação de Prefeito, Juiz e Promotor. Os três, armados, contiveram os que ficaram, dominando a situação.
No Rio, muitos anos depois, com a sua Fernanda, companheira exemplar de toda a vida, voltava à noite para casa quando um assaltante apontou-lhe um revólver. Não titubeou Ulysses, sequer segundos. Deu-lhe forte murro, derrubando-o Um vigor do seu tempo de remo no Manaus Rudder Clube. O bandido, no chão, atirou no mesmo instante em que levava violento pontapé. O tiro, dado naquela agitação, não acertou. Então, o bandido, diante de tanta disposição, levantou-se e saiu correndo, de arma na mão.
Se consoante o conhecido aforisma de Gasset, “Eu sou eu e minha circunstância”, não dá para falar de mestre Agnello e de mano Ulysses sem falar de Amazonas e Manaus, ingredientes indispensáveis, a cada instante, pela vida toda, do que foi a circunstância de um e de outro. Temas de estudo e objetos de amor, compartilhados em dimensão familiar, as gerações passando. Obrigação assumida e gosto. A ambos, caboclitude compulsiva, impregnava-os o sentimento de sua província.
A palavra província tem uma conotação menos nobre, a envolver certo efeito repressivo, mediocrizante e confinador, a de celebração do ranço, tantas vezes a mescla da autocomplacência com o rancor pelo sucesso do próximo. E tem a outra vertente semântica - a do enlevo e mesmo da prosápia daquela origem e daquela identidade, o mesmo enlevo e a mesma prosápia com que um se proclama gaúcho e outro se proclama pernambucano. Cada qual querendo dizer dos primores e da primazia de sua província. E aí o sentimento de província tem um efeito nutritivo e sublimador.
Para dar-vos um exemplo banal, permitam-me a jactância de lembrar de minha filha mais velha, então pelos seus seis anos, nascida no Rio, e que nunca pode vir a Manaus, a dizer-me como quem bota banca: - Nós amazonenses, e não me lembro de qual atributo exaltava desse povo eleito. Era a radicalização afetiva que vinha, por impulsão atávica, do bisavô Antonio, passara pelo avô Agnello e lhe chegava por pai e tios. Tal a força da imagem do Amazonas dentro de nós.
A imagem de nossa província, que portamos, e até com esse poder de contágio, costuma associar-se à de uma cidade, muito pessoal, que a emblematiza. Pois uma cidade é aquela que os olhos de todos enxergam, e também é outra. Além de determinada configuração tangível de ruas e gente, de cores e sons, suscetível de progresso ou decadência, parte do tecido da História, uma cidade é, também, e sobretudo, a do nosso espaço subjetivo, povoada de recordações amáveis ou mesmo docemente amargas - a lembrança viva somada de professores e namoradas, de porres e rixas, de serenatas e quermesses, de regatas e carnavais, de pastorinhas e comícios, de tias maravilhosas a abençoar-nos pelas seis da tarde, de amigos que se foram, de bondes que não rodam mais.
Milton Santos acentua a importância, para o estudo de uma sociedade, da relação entre espaço e tempo - a cada espaço significativo (país, no enunciado de sua reflexão) correspondendo temporalidade peculiar.(3)
A observação é tão válida que dá para qualificá-la, no universo de nossas cognições e referências, com foco mais fechado, e sobre espaços menores - a imagem que temos de nossa região, de nossa província, de nossa cidade, de nosso bairro. Para sermos precisos, podemos efetuar o recorte lírico de um pedaço de bairro. Como Thiago de Mello, no seu livro de amor a memória dedicado a Manaus, a lembrar-nos daquele território de afetos feito de uns fins de ruas - a Isabel, a Quintino Bocayuva, a Lima Bacury, a Dr. Almino. Ou como Luiz Bacellar oferecendo-nos a lembrança das 13 casas iguais, paredes-meias, do Bairro dos Tocos. Que foram de dona Donana e hoje são de todos nós, por sua mediação mágica.
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(3) Espaço e Sociedade. 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 1962. Págs. 43-44
No mais longe de nossas reminiscências, o espaço de nossa infância contém um tempo congelado. Assim o de nossa adolescência. A infância e a adolescência de qualquer um. Lição de Bachelard: “Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido”. (4)
Mas não é aí que quero chegar. Direi, desenvolvendo o modelo esboçado por Milton Santos, que a recíproca é verdadeira: na relação entre espaço e tempo, a cada estrato de tempo corresponde uma configuração de representações a compor nosso espaço subjetivo.
Uma cidade, ser vivo, dispõe do atributo de, mesmo sem deixar de existir, viver sucessivamente várias vidas, como que sucessivas encarnações. E, deste modo, na dinâmica das percepções de agora e das reminiscências, em cada um podem existir os envolvimentos de diferentes encarnações da mesma cidade.
Direi, então, que no espaço subjetivo de Agnello Bittencourt podemos supor sincronicamente duas Manaus: a da infância e da adolescência - aldeia ainda tosca, e já ambiciosa, seu tanto bovarista, com as sementes brotando do delírio que fazia e faria teatro, mercado, porto, pontes, avenidas e palácios; e a da cidade que viveu a plenitude do delírio e viveria o amargor da ressaca - aquela cidade em sua fase vibrante, tudo novo, de que foi prefeito, e em sua comprida fase de decadência, ou estagnação, ou digna acomodação, desde a queda dos preços da borracha até o advento da Zona Franca.
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(4) A Poética do Espaço. Em “A Filosofia do Não. O Novo Espírito Científico. A Poética do Espaço”. Trad. De Antonio da Costa Leal e Lidia da Costa Leal. São Paulo, Abril Cultural, 1978. Pág. 202.
No espaço subjetivo de Ulysses Bittencourt e os de sua geração, em que me incluo, distinguem-se, também, duas temporalidades: a da cidade de menos de 200.000 habitantes - ressentida, resmungadora e nostálgica, sem deixar de ser risonha; e outra, entre crescida e inchada, a da Zona Franca, que logo ultrapassaria o milhão de habitantes.
De uma temporalidade a outra, e a outra: dois estilos de viver o tempo, dois padrões de atitude, dois ritmos de ser. Aplico a nós, amazonianos, mais que amazonenses, um modelo de análise proposto por Gilberto Freyre: digo que vivemos a tensão dialética entre um tempo hispanotropical, melhor dizendo hispanocaboclo, e um tempo anglo-saxão - modos de olhar e estar no mundo.(5)
A vigência do tempo hispanocaboclo se traduz em papos intermináveis de bar, lancha, clube ou esquina sobre literatura, filosofia, futebol, política ou sacanagem; se associa a uma forma sensual de adesão ao entorno, com seresta, pescaria, chamego e sesta; não dispensa a caldeirada de tucunaré mais uma cervejinha. Uma vivência cheia de sabedoria na organização do lazer, a ensejar, por exemplo, o Clube da Madrugada.
A vigência do tempo anglo-saxão vem com as pressas e as pressões da ânsia de progresso e se expressa em uma agressiva ganhação de vida, com discurso racionalizante e sujeição obsessiva ao cálculo, à programação, ao calendário.
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(5) Sobre os conceitos e as implicações de um “tempo hispânico” e um “tempo anglo-saxão”, ver: Freyre, Gilberto. O Brasileiro entre outros Hispanos: afinidades, contrastes e possíveis futuros nas suas inter-relações. Rio, José Olympio/MEC, 1975.
Com uma postura que tende ao lúdico, impregnam o jeito hispanocaboclo de sentir o mundo e de usar o tempo valores e modos em boa parte contemplativos, sem que o ser facundo exclua necessariamente o ser fecundo.
Com uma postura que se pretende utilitária, o jeito anglo-saxão de sentir o mundo e usar o tempo impregna-se de valores e modos essencialmente ativistas.(6)
A coexistência na mesma sociedade e no mesmo indivíduo dessas percepções do mundo, da vida e do tempo acaba suscitando “um conflito entre o gosto pelo ócio e a paixão do negócio”. (7)
A Zona Franca mudou Manaus, para o bem e para o mal. Mudou a fisionomia das ruas, a escala dos negócios, o mercado de trabalho, as opções de lazer, a pauta das aspirações, a estrutura do poder. Foi um salto qualitativo do modo de produção. Foi um salto quantitativo da concentração de gente. Um processo, em curso, que trouxe soluções e trouxe problemas. Com uma forte expansão dos lucros e da massa de salários e também um agravamento da dívida social - a ampliar o contingente de excluídos e as condições sub-humanas de sua sobrevivência. De fato, um processo nacional e mesmo mundial, acentuado com singularidades locais, inclusive a permanência, ao lado, do extrativismo, como vem de mostrar mestre Samuel Benchimol, professor de todos nós. (8)
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(6) Id., ibid. Pág. XXXV
(7) Id. Ibid. Pág. 49
(8) Benchimol, Samuel. Zona Franca de Manaus: pólo de desenvolvimento industrial. Manaus, Universidade do Amazonas - Federação das Indústrias do Amazonas - Associação Comercial do Amazonas, 1997.
Descabe julgar a Zona Franca somente pelo que ela é hoje, e como é, a enfrentar a globalização e os pólos regionais. Importa, para entendê-la, invocar o passado, lembrando-nos de que quando foi instituído o modelo, encaminhava-se o Amazonas para a inviabilização. Importa invocar também o futuro, indagando se alguém, na hipótese de perecimento da Zona Franca, dispõe de outro modelo para manter a Amazônia Interior funcionando e funcionando integrada no Brasil.
Um parêntese pessoal. Não o digo como um exercício de nostalgia pela cumplicidade, ínfimo papel, há trinta anos, com Artur Amorim, ao criar-se a Zona Franca. A primeira minuta, a que veio a Manaus para discussão e reformulação, foi redigida por mim, sob encomenda e orientação de Artur. Quando me telefonou expondo suas idéias e querendo um texto que as articulasse sob forma de lei, disse-lhe: - Vou fazer, é muito ousado, uma linda loucura. Ao darmos uma olhada final no projeto - Artur, Alberto Rocha e eu -, entendi que ali se começara a construir uma ponte para a Utopia.
Até que ponto as alterações objetivas do espaço econômico, com seu halo social, são absorvidas pelo equilíbrio de cada espaço subjetivo? Direi que em cada espaço subjetivo ocorre um ajustamento de valores e modos entre um tempo que foi, aprisionado em nossa essência, mais para o hispanocaboclo, e o tempo que está sendo, mais para o anglo-saxão.
Não sei aonde chegaremos, sabendo-se que há o risco de, ao invés de integração, se dê confusão, e ao invés de resultarmos plurais resultemos promíscuos. Temo que o êxito material, às vezes ruidoso, atribuível ao prevalecimento do tempo anglo-saxão, sufoque em nós o tempo hispanocaboclo, que quase nos leva a desdenhar do calendário e do relógio, em função do prazer do convívio. Temo que o processo se faça desamazonizante, que nos desfigure, que nos distancie de como bem éramos e mal ainda somos.
Apenas um sintoma. Pergunto daqui, pergunto dali, fiquei sabendo que as crianças de Manaus não têm mais medo da Matinta Perêra, do Curupira e do Mapinguari - estetizações do respeito à Natureza, base de séculos de boa interação entre espaço e gente. Mitos da floresta, anos atrás, no tempo de minha infância, com forte incidência urbana. As crianças de Manaus não mais os temem. Nem sabem do que se trata. Descaboclizam-se.
Isto é: descabocliza-se a sociedade. Nesse sentido de que o entranhado amor ao Amazonas inteiro como um pedaço do Brasil, tão presente na vida de Agnello Bittencourt e na de Ulysses Uchôa Bittencourt, começa a diluir-se. E tanto e tanto que até parece dar-se algo como uma alienação, de que é sinal a perda de sensibilidade para as ameaças à nossa integridade territorial - como que a esgarçar-se o que deveria ser uma cláusula pétrea no nosso sistema de valores.
Precisamos de um consenso regional de governos e sociedade na definição de projeto viável, a permitir possamos bem entrar no Terceiro Ciclo, a que se refere o Governador Amazonino Mendes.
Esse consenso é indispensável para estimular, em nível nacional, a vontade política de resguardar a Amazônia, valorizando-a. Como aconteceu ao criar-se a Zona Franca, sob a inspiração do Presidente Castello Branco - vontade política instrumentada pelo Ministro Roberto Campos, com a colaboração do amazonense Artur Amorim.
Vale recordar a conceituação do esquecido Mannheim: a de utopia como figuração do futuro, a transcender a realidade que está aí - um futuro modelado pela vontade de romper os laços da ordem existente. (9) No nosso caso, os laços do subdesenvolvimento ou do desenvolvimento perverso, com miséria estrutural.
Nossa circunstância se alterou; e se altera, aceleradamente. A isso correspondem alterações adequadas dentro de nós? Estamos resolvendo o conflito entre a consciência do que temos de ser, pelas exigências do aqui e do agora, e o a que não deveremos renunciar - nossa caboclitude ancestral. A História metabolizará esse conflito. A julgar, na qualidade de nosso desempenho, nossa capacidade de, sem desfigurar-nos, sabermos mudar - a capacidade de temperar o tempo anglo-saxão com o tempo hispano-caboclo, a capacidade de sermos nós mesmos e sabermos tanto inventá-la como bem gerenciar nossa utopia.
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(9) Mannheim, Karl. Ideologia e Utopia. Introdução à Sociologia do Conhecimento. Trad. De Emilio Willems. 2ª ed. Porto Alegre, Globo, 1952, pág. 179.