Direito a outros animais
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 07/03/2012, às 12H58
[Paulo Ghiraldelli Jr.]
A distinção entre humanos e outros animais que prevalece na superfície da Terra é feita por nós humanos. Não sabemos se os animais fazem essa distinção. O que sabemos é que alguns, se fazem, agem em sentido contrário ao nosso. Colocam-se como iguais, parecem acreditar na igualdade entre nós e eles. Assim são os cães. Muitos de nós são amigos dos cães, mas os cães, na maioria, são nossos amigos de modo quase que incondicional. Eles acham que somos merecedores de cuidados tanto quanto qualquer um de seus filhos. Nós os consideramos e já os estamos protegendo pelas nossas leis. Mas ainda falta muito para que eles sejam tomados como iguais em direitos, e não apenas “pets”. Aliás, em muitos lugares os cães são assassinados brutalmente e servem de comida. Em relação aos outros animais, tendemos a pensar na proteção aos que nós mesmos já quase dizimamos. Mas não os protegemos pelos mesmos motivos que protegemos os cães. No limite, o que nós, ocidentais-brancos-com-boa-escolaridade-e-alguns-bens, fazemos ao dar proteção a qualquer outro vivente na superfície da Terra não é algo uniforme ou com alguma homogeneidade. Cada grupo que integramos no círculo de nossa proteção legal ganha de fato alguma proteção por razões distintas, mas que, em geral, tem a ver conosco mesmo. Ou seja, a referência é o “humano”, não o “animal”. O animal ganha proteção à medida que desenvolve algumas habilidades que nos são úteis ou, enfim, que se mostram como aquilo que identificamos como “o humano”. Esse movimento da história do direito é longo. O branco com o poder da linguagem, da política e do dinheiro deu estatuto de relativa igualdade à mulher, depois aos filhos e então estendeu isso a todas as crianças e a todas as mulheres. Em seguida seguiu esse curso em relação ao escravo. Agora, estamos fazendo o mesmo com alguns animais. O critério foi variando. Havia os que tinham algo chamado “alma” e os que não tinham. Depois, havia os que tinham algo chamado “razão” e os que não tinham. Veio então Darwin e bagunçou tais critérios. Ele nos fez todos parentes e, assim, deixou os critérios “alma” e “razão” parecerem arbitrários demais. Atualmente, falamos em posse e não posse da “linguagem”. Todavia, de uns tempos para cá há quem diga que conseguiu ensinar para gorilas a linguagem de sinais (veja aqui o caso Koko). Ora, tratar-se-ia não de um adestramento, mas de uma linguagem mesmo – LIBRAS. Há dúvidas sobre isso no campo científico. Uns falam que é adestramento, outros, falam que não, que os gorilas em questão realmente possuem a linguagem e a estão ampliando criativamente. Nesse caso, algo com semântica, sintaxe e pragmática se desenvolve para além de nós, os dito humanos. Sendo isso verdade, novamente podemos estar diante de mais um grupo incorporado ao que chamamos de “direitos”, ou melhor dizendo, um grupo que iria, dentro do grupo já integrado ao “direito dos animais”, ajustar tais direitos para o seu caso específico. Poderiam reivindicar um ajuste ou, então, poderiam querer passar para o nosso grupo, usufruindo dos chamados “direitos humanos”. Não sei como seria isso. Eles teriam os nossos direitos, mas não poderiam ter os nossos deveres? Por exemplo, sendo ocidentais, teriam de usar roupa? Certamente que sim – diriam uns. Mas logo haveria discordância. Essas coisas são sempre assim. Por exemplo, as mulheres atenienses não estudavam, mas as mulheres estrangeiras que viviam em Atenas, sendo estrangeiras, não estavam sob as mesmas regras e, então, podiam estudar. Todavia, se a lei não as tolhia, também não as protegia: elas podiam ser estupradas e o estuprador não seria incriminado, diferentemente da mulher ateniense, protegida pela lei contra algo desse tipo. Pensar a vida é pensar o direito. Mas, às vezes, os teóricos do direito esquecem que pensar o direito é pensar a vida. Até então a nossa prática de incorporação de mais pessoas a um sistema de direitos se fez a partir da idéia de que há um grupo que, por razões diversas, concede seus direitos a outro grupo. Assim, o direito nasce da teoria e ao mesmo tempo da luta política ou da guerra. Um grupo incorpora outro grupo aos direitos já existentes ou, então, se cria uma categoria de direitos novos para o grupo emergente. Por exemplo: incorporamos as mulheres aos “direitos humanos”, mas não fizemos isso aos animais, para eles, criamos o “direito dos animais”. Bem, a mulher é usuária da linguagem. Mas os animais não. Então, deixando de lado os velhos critérios, alma e razão, e ficando somente com a linguagem como critério atual, caso nos deparemos com gorilas se comunicando conosco e entre eles através de LIBRAS, poderemos continuar, ainda, considerando-os sob a égide dos “direitos dos animais”? Essa questão remete a uma outra, que já esteve presente nos tempos de Darwin, mas que agora, do modo como aparece, vai ter mais base popular: que critério usaremos para ainda tentarmos nos diferenciar dos animais sem admitir que isso não é algo em favor da biologia e da ciência, mas uma questão política de hegemonia? Afinal, se finalmente entendermos que os animais podem se comunicar, isso vai fazer um bocado de gente, que ainda usa outros critérios para se diferenciar dos animais, a pensar de movo novo. Não será preciso que alguns gorilas aprendam a falar e saiam nas ruas com faixas pedindo direitos. Antes disso, alguns entre nós já terão pensado em algo mais ou menos assim: será que não somos assassinos canibais ao matarmos para comer esses nossos parentes, ou seja, todos os outros seres vivos animais da face da Terra? Ao darmos esse passo, estaremos também pensando em outras questões, como por exemplo: e os robôs? E os seres criados em laboratório, por invenção nossa? Caso tenhamos um robô com a nossa aparência e com uma inteligência quesimule a aquisição de experiência ou vivência, teríamos aí alguém capaz de reivindicar não direitos quaisquer, mas “direitos humanos”. Afinal de contas, a idéia de que nós, que nos chamamos de humanos, acumulamos experiências e o computador, é algo que se sustente filosoficamente? Há muita discussão sobre isso. Aliás, não sabemos se não somos capazes de criar uma máquina que venha a ter vivências. Também não sabemos se nós mesmos não fomos criados mais ou menos assim, por um grupo de habitantes do espaço que nos colocou aqui na Terra e, depois disso, desapareceu, voltou lá para a sua distante estrela. Assim, podemos estar em um mundo que gorilas de um lado e computadores de outro, irão pedir direitos. Cada um de nós, então, irá pensar: ora, eu esperava conceder direitos antes ao meu cão, não a eles, mas … Isso poderá fazer com que pensemos em mais coisas estranhas. Por exemplo: uma série de minorias – anões, pessoas com problemas físicos ou mentais, mulheres e crianças em determinados locais, indígenas e negros em outros locais, pessoas que já não possuem nenhum gênero tradicionalmente definido, pobres abandonados, etc. – poderão gritar: “ei, primeiro nós, né?”. Isso sem contar as brigas por conta de defasagens. Por exemplo, um grupo de robôs prostitutos pode conseguir direitos trabalhistas, dado que são robôs, e isso primeiro que as prostitutas e os prostitutos ditos “humanos”. Claro que isso pode ocorrer. Na história do direito já não ocorreu em algumas sociedades das mulheres ganharem direitos após outros grupos? Não sei! Será que não? Estamos em uma época em que, se fôssemos corajosos, começaríamos seriamente a levar em conta nossas ações contra outros seres da superfície, de modo que o arrependimento mais tarde não venha a ser insuportável. Talvez já tenha passado da hora de termos enterrado uma série de classificações que não nos tem tornado “versões melhores de nós mesmos”, mas apenas têm reiterado nossa idéia de que possui direito, mesmo, quem for semelhante ao ocidental-branco-escolarizado-e-com-alguns-bens. © 2012 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ