Avenida Frei Serafim
Avenida Frei Serafim

Dílson Lages Monteiro – Professor, editor de Entretextos, membro da APL

Teresina se transformou aos poucos em minha cidade. Teresina é a minha cidade.

A imagem mais remota de minha memória sobre Teresina, a capital do Piauí, confunde o rural e o urbano. A criança de outros tempos, a mim fica essa impressão, era mais acabrunhada, medrosa e com uma visão de superioridade do mundo urbano que a de hoje. Agora, o mundo urbano também está na roça: apagou-se a luz de lamparinas, chegaram a tevê, a água por canos e até a internet. Coisa de apenas 3 décadas... Cabaça na cabeça, nunca mais! Nem semente para espalhar os ramos por aí encontramos. Mas e a imagem?

Talvez eu tivesse uns 6 anos. Retornava na companhia de meus pais de uma consulta médica. Já rumávamos para a então casa mantida por meus avós no bairro Piçarra, naquele final de 1970, a periferia, onde a piçarra da rua em que a casa se situava, rua de entorno feio, fazia poeira de tossir. Mas naquele dia, na altura do Hospital Casa Mater os céus borbulhavam ventos e a surpreendente quantidade de água na biqueira das casas, a escorrer pelas telhas, atirada para longe pela força dos ventos, colheu-nos de repente. Abrigamo-nos na frente da casa de saúde e o temporal, apesar de breve, fez da água um grande volume a atingir-nos à metade do joelho. Lembrei-me das enxurradas da zona rural: as correntezas arrastando galhos secos, coisas mortas e esquecidas da beira dos riachos por caminhos de gente e não das águas. E a cidade me fez lembrar do campo, de seus cheiros e cores.

Quase uma década depois, eu descobriria realmente o sentido de cidade... para além do pequeno lugarejo de vida urbana acanhada e pacata... É-me ainda afetivamente vivo o dia de fevereiro de 1986, quando o veículo de meus tios que me deram abrigo e acolhimento, os quais forma de gratidão nenhuma nunca há de compensar, fez as curvas da Estrada Barras-Teresina, na altura da ponte do Pesqueiro. O dia misturava alegria e tristeza: ficava para trás do Morro do Pipoca mais do que a imagem da Torre da igreja e os 13 anos ali vividos. Transformavam-se em passado ou memória a permanente proteção e amor da casa paterna, o rio quase de carne e osso, euforia viva dos banhos e pescarias do fim de semana, para onde corria a cidade inteira, a energia positiva do templo religioso pregando partilhas, a praça de felicidades inúmeras de tanta liberdade ao som da bandinha em retreta.

O retorno esporádico era um repetir-se de frio na barriga, quando as mesmas curvas, a do Cantinho e a do Pipoca, faziam a viagem vencida e eu avistava a Torre da Matriz e os significados a me confundir a emoção. O desejo era voltar: e muitas, e muitas ocasiões, sonhei com o dia... que hoje, em vida física (não nos tome por redundante ou contraditório: creio que existe vida também na morte, a vida espiritual ou simbólica, física quando a materializamos na forma de pensar), é apenas uma ideia remota, romântica e tola, a não ser para o descanso na casa paterna (hoje, mais materna, porque o pai virou saudade) e no campo, à meditação e à respiração de suas matas oxigenadas da calmaria da criação. Hoje, a cidade natal, uma segunda pátria, ressoa para mim como os versos do poeta Fenelon Castello Branco:

"Ó formosa cidade sertaneja,

Transbordante de graças campesinas,

Banhada pelas águas cristalinas

Que o rio Marataoan além despeja;

 

Viva eu perto de ti, ou longe esteja,

Com essas tuas delícias me fascinas...

E já velho revejo-me o traquina

Que brincou, por aí, no adro da igreja.

(...)"

Teresina se transformou, aos poucos, em minha cidade. Teresina é a minha cidade. Mais do que morada, me contagiou de amor. Contagiou-me com o que faz a cada qual vencido pela sua vocação de cidade luz, a da luminosidade invisível e contagiante dos livros e, principalmente, do labor. Somos, cada um de nós aqui, moldados pela dimensão que está na alma desta cidade que responde pelo nome de trabalho, serpenteando o Poty e o Parnaíba e as transformações urbanas de que as novas gerações foram testemunhas. Ah, quantas transformações nestes 33 anos em que me faço testemunha ocular da história.

Daquela década de 1980, na periferia onde existi à sombra dos livros e mesmo no Centro, vivemos sobre novos referentes. Os shoppings e o crescimento vertiginoso da Zona Leste construíram novos conceitos e estilos de consumir, morar, divertir-se e mesmo trabalhar. No distante Parque Piauí de minha adolescência, os ônibus eram um caos e a droga em ruas escuras e de assaltos abundava. Ou melhor: eram fantasmas reais. Os ônibus continuam, pelo que ouço dos que permanecem lá, ainda a não satisfazerem quem deles necessita nem os assaltos, quem hoje não tem mais lugar para acontecer nem prioridade de bairro, foram embora, numa região que ganhou autonomia comercial e, por isso, tornou-se alvo corriqueiro da bandidagem, como o entorno, de fisionomia menos desagradável com a reforma das casas dos conjuntos habitacionais, casas de moradas comprimidas, mas transformadas, para um grande número de moradores, pela capacidade inventiva da indústria da construção civil. Vive-se ali melhor. Bem melhor.

Se o Centro determinava tudo, ou quase, hoje a história o legou a lugar de lembrança e nostalgia. Lugar que respira como quem procura ar. As grandes lojas de departamentos de outros tempos sucumbiram. Também o personalismo de outras que eram o próprio dono. Não vou citar. Já o jockey e arredores se faziam em serem modelos naquele tempo, ainda a depender de serviços concentrados na área central ou em grandes avenidas como a Miguel Rosa, hoje são, de fato, o coração da vida urbana. E se alguém recebe uma visita e vai levar o convidado para um diálogo ao sabor da gastronomia nossa, terá que pôr os pés na Zona Leste, que avança e avança como pulmão, cérebro, coração e até o intestino da cidade.

Se a maioria de nós, como Saraiva, Frei Serafim e David Caldas renascemos aqui, com os ideais que estão no destino desta cidade, tão verdadeiro é que nos sentimos parte integrante da identidade que faz de cada teresinense um predestinado para amar este recanto e agradecer a  ele as oportunidades de crescimento e superação. A cada aniversário, Teresina cresce em nossos corações, cresce em urbanidades, reinventadas a cada ano, a cada década, e celebra a festa de sentir-se personagem do tempo, mãe e pai de todas as conquistas e satisfações, de todas as emoções e afetos na vibrante estação do sol, que nos fixa aqui como se para sempre.