Dicionário de Expressões do Piauí

Senhores e senhoras,

O livro que hoje se torna público traduz principalmente uma cidade, naquilo que ela tem de mais característico como elemento de identidade – sua linguagem, materializada no sentido das palavras de sua gente; o léxico comum de ruas, bares, casas, fazendas, o léxico empregado sobretudo em situações de comunicação informal ou na espontaneidade das conversas não monitoradas pelos falantes. Enfileiram-se em Dicionários de expressões do Piauí algumas centenas de vocábulos do Norte piauiense, grande parte delas genuinamente utilizada na cidade natal do autor.

Por isso, quero aqui, antes de apresentar breve visão geral deste livro, fazer longa digressão, a fim de remeter-me à representação historicamente construída sobre Barras do Marathaoan.  Torna-se quase impossível falar em Barras sem evocar sua natureza e a história de um passado oficialmente marcado, até a década de 1950, por conquistas e “heróis”.  

Barras é principalmente um rio – o Marathaoan, tão grandioso que um dia, registra o historiador Moisés Castello Branco, chegou-se a acreditar que o curso d’água a alguns quilômetros do perímetro urbano dessa urbe, o Longá, juntamente com o Marathaoan, tratava-se de um único rio. Acreditava-se, pois, segundo o historiador, que tudo era Marathaoan. Barras é principalmente um rio – o curso de águas que evoca de muitos dos aqui presentes, barrenses de nascimento ou coração, alguns dos mais memoráveis instantes de felicidade. Quanta alegria olhar para o espelho d’água serpenteando olhos e casas, e suas histórias de tempos idos de forte convivência comunitária e respeito mútuo.  O rio que é a própria cidade.

Torna-se quase impossível falar em Barras sem evocar sua história até meados  do século XX, sem evocar seu pioneirismo, bravura e vocação para a liderança. Sem evocar o pioneirismo de Estevão Lopes Castello Branco, que fundou a primeira associação com o fito de libertar escravos, marcando o compromisso dos homens de bem desta terra com a liberdade e a dignidade humana.  Sem evocar a bravura dos que corajosamente se enveredaram pela guerra e, como recompensa, aquilataram postos de destaque na política nacional durante a República Velha. Sem evocar a liderança de políticos, militares, médicos, advogados,  escritores, jornalistas e  professores que se projetaram para além das fronteiras geográficas de suas origens.  É uma visão bairrista – ás vezes, até ingênua – mas dela nos orgulhamos.

Evocar Barras é reverenciar a memória de Taumaturgo de Azevedo, Joaquim Pires, Teodoro Castello Branco, João Pinheiro, A. Tito Filho e tantos e tantos homens, de ontem e de hoje, apaixonados pelo trabalho, pela arte, pela vocação para servir e principalmente, movidos por um afeto que não cabe no peito, devotados à  elevação  do berço em que ao mundo vieram . Aludir a esse chão  é, pois, evocar a sua história. A história que é a própria cidade.

Torna-se quase impossível falar em Barras sem mencionar a religiosidade de sua gente, traço definidor da povoação dessas  terras situadas entre as seis barras de rios e riachos que formam cidade de paisagem física tão exuberante. Vibra nas ruas e no adro do templo católico, templo cuja história se iniciou em fins do século XVIII, o templo de ontem e o de hoje, a esperança e a fé de que a força da oração suplanta os mais árduos e dolorosos desafios.  Vibra nos corações barrenses a certeza de que Nossa Senhora da Conceição está ao seu lado, para ampará-los e protegê-los,  como o faz a generosidade de toda mãe. Nossa senhora da Conceição e sua igreja. A cidade é Nossa Senhora da Conceição e sua igreja.

“Aí, que saudade eu tenho de lá”, cantou um dia a sua dor o poeta Franci Monte. Cantam os barrenses distantes, nas reminiscências  que o tempo não cansa de repetir: “Ai que saudade eu tenho de lá, às vezes me dá vontade até de chorar, de chorar”.

Senhores e senhoras,

Se  evoco uma cidade é porque se torna  quase impossível  a ela aludir,  a seus valores e  a suas tradições, hoje,  sem citar este nome: Antenor de Castro Rêgo Filho, para os mais próximos, afetuosamente, Tena Filho. Antenor, desde muito jovem, apaixonado pela cidade em que nasceu, organizou seus objetivos de existência para elevar o lugar de sua origem. Graças a ele, um pedaço significativo da memória de Barras do Marathaoan é conservado. Graças a seus livros, assim como aos de Wilson Carvalho Gonçalves, Afonso Ligório Pires de carvalho, Edgardo Pires Ferreira e Gilberto de Abreu Sodré de Carvalho, Barras tem o que recordar e, infelizmente, também, o que lamentar.

A história de Antenor é marcada, desde sempre, pela permanente contribuição com sua Terra-berço. Escrevendo sobre fatos do folclore de Barras-PI, sobre sua história e mais recentemente sobre a linguagem, o escritor, que presidiu com destaque a Academia de Letras do Vale do Longá, vem evitando que a ausência de arquivo público ou de quaisquer iniciativas para preservação da história de seu torrão impeçam que as novas gerações desconheçam o processo histórico e social de formação de Barras.

Resgatando fatos curiosos ou folclóricos da memória oral de uma  Barras ainda constituída em torno das antigas fazendas e seus coronéis, ou da religiosidade peculiar, elemento definidor da povoação desse rincão, Antenor construiu obra ímpar da literatura de tradição oral no Piauí, o consagrado livro Jacurutu. Nele, desfilam alguns dos personagens vivos do imaginário coletivo de Barras. O inventor Zeca Velho, que sonhava com a arte de voar e um dia construiu seu rústico aeroplano. O valentão Lima Verde, que pagou com crueldade as maldades que assombraram seu tempo. Os risos e os risos dos fatos pitorescos que a memória oral difundiu e Jacurutu arquivou.

Escrevendo sobre a História de Barras, Antenor lega para a posterioridade o indispensável “Barras – histórias e saudades”. Antes de ser trabalho de afinado memorialismo, com descrição de traços do cotidiano da Terra de José Carvalho de Almeida, o livro é pioneiro na sistematização de informações sobre a educação, a saúde, a comunicação, os serviços públicos e, principalmente, sobre o processo de colonização de Barras, com documento até então inédito: o testamento de Miguel Carvalho de Aguiar, o fundador da Fazenda Buritizinho, hoje Barras do Marathaoan.

Senhores e senhoras,

A inquietação em registrar seu tempo e os costumes da Terra-berço levaram Antenor Rego, agora, a presentear os conterrâneos com o Dicionário de Expressões do Piauí, livro que, como bem escreveu o professor e jornalista Carlos Said, revela a primorosa habilidade do autor para a pesquisa em filologia.

Este livro permite conhecer, por meio de expressões e frases feitas, típicas de contextos específicos, aspectos inerentes ao falar piauiense. Lúdico por natureza, este Dicionário de Expressões do Piauí cumpre o firme propósito de evitar que termos comuns da linguagem piauiense sejam suplantados pelas rápidas transformações, oriundas dos processos de aculturação que as modernas tecnologias possibilitam hoje, interferindo até mesmo sobre a linguagem pela inserção nela de termos e significados que deformam a cultura.

Pesquisas dessa natureza encerram uma função clara: além de divertirem, asseguram o sentido da língua enquanto manifestação cultural. A linguagem reproduz, pelo vocabulário, os símbolos e sinais da realidade e, desse modo, constrói significados que transcendem o aqui e o agora. Desse modo, como explicam Peter Berger e Thomas Luckmann, esclarecendo sobre a construção social da realidade:

“A linguagem tipifica as experiencias, permitindo-me agrupá-las em amplas categorias em termos dos quais tem sentido não somente para mim, mas também para meus semelhantes. Ao mesmo tempo em que tipifica, também torna anonimas as experiências, pois as experiencias tipificadas podem ser repetidas por qualquer pessoa.” (p.57)

Nesse sentido, Termos e orações feitas, como símbolos que são conservam dada realidade social. Assim, os verbetes de Dicionário de expressões do Piauí, como registro da oralidade ou símbolos, conserva, pela linguagem oral, componentes da vida cotidiana da região de Barras do Marathaoan.

Não me estenderei sobre o significado de nenhum vocábulo, porque a curiosidade de vocês para passear pelos sentidos das palavras bem nossas é grande – não cabe na ansiedade de cada um comprar logo o livro e aproveitar do tempo de que aqui dispõem para o bom bate-papo, neste que é um dos espaços de sociabilidade mais sadios de Teresina.  Divirtam-se com os termos aqui catalogados. Tenho certeza de que revisitarão este livro muitas vezes, de que farão dele um precioso manual de consultas.

Divirtam-se! Obrigado pela paciência. Boa Noite.

Dílson Lages Monteiro

Editor de Entretextos

 

Discurso proferido em 02.08.2013, em apresentação ao livro Dicionário de Expressões do Piauí, de autoria de Antenor Rego Filho, editado pela Nova Aliança Editora e Portal Entretextos.

Na foto, Antenor Rego Filho autografa livro para o jornalista Toni Rodrigues