DIÁRIO DE UM SOBREVIVENTE - PARTE III
Por Margarete Hülsendeger Em: 07/08/2017, às 16H04
Praga, 10 de abril de 1628.
Não consigo evitar, a preocupação me consome, pois temo pelo meu futuro. Essa guerra estúpida e sem sentido mantém-me em constante estado de alerta. Contudo, apesar dela, tenho vivido em relativa tranquilidade. O imperador tem me obsequiado com seus favores e Praga acabou se tornando o meu lar.
Parece, no entanto, que o meu destino não é viver feliz e em paz. Ao contrário. Agora vejo-me obrigado a decidir qual religião devo professar. Meus amigos argumentam que ao escolher o catolicismo estarei assegurando uma posição estável para mim e para minha família. Até mesmo Guldin enviou-me carta, desde Viena, tentando-me convencer a aceitar a abjuração.
Essa seria, com certeza, a saída mais simples e lógica. Afinal, sendo batizado já me considero católico, apenas não assumi o status de romano. Então, porque essa ideia me causa tanto desconforto?
O problema é que nunca precisei da mediação de qualquer autoridade eclesiástica para sentir-me na presença de Deus. Eu sempre o encontro nas minhas leituras e na observação dos céus. Porém, para “eles” isso não parece ser o suficiente.
Devo pensar com seriedade em uma maneira de sair de Praga antes que seja tarde demais. Talvez consiga trabalho em Sagan. O ducado agora pertence ao general Wallenstein, meu amigo há mais de vinte anos. Conhecemo-nos quando elaborei seu horóscopo. Na época minhas previsões foram tão exatas que o general sentiu-se em dívida comigo. Entretanto, ainda não estou seguro se essa seria a decisão acertada, pois a sorte de meu protetor depende da sorte das armas. Se em uma dessas inúmeras batalhas ele for derrotado, será minha família e eu que sairemos perdendo.
Em meio a toda essa confusão uma das poucas coisas que me consola é o de ter enfim publicado minhas “Tabelas Rodolfinas”. As medidas coletadas por Brahe ajudaram-me a elaborar esse documento, tornando-o um guia importante para astrônomos, astrólogos, navegadores e exploradores. Foram 22 anos de trabalho árduo, recalculando e interpretando os inúmeros dados acumulados por Brahe. Posso comparar esse trabalho as dores de um parto: um esforço descomunal, muito suor e um sofrimento enorme.
Entretanto, apesar do seu mérito evidente fui obrigado a enfrentar vários obstáculos para conseguir a sua publicação. Uma verdadeira via crucís.
Primeiro a gráfica. A que existia em Linz foi completamente destruída pela guerra. Precisei ir até Ulm para encontrar um editor. Até hoje não sei como consegui sobreviver à viagem. Tive de percorrer a pé a distância entre essas duas cidades carregando os tipos para a impressão. Nunca pensei que pudesse sentir tantas dores.
Ao chegar em Ulm deparei-me com outro problema, o dinheiro, ou melhor, a falta dele. Os adiantamentos do tesouro imperial não foram suficientes nem mesmo para comprar o papel. Paguei do meu próprio bolso o custo da impressão. E como se não bastasse, os herdeiros de Brahe tornaram a minha vida um inferno, exigindo participação nos lucros das vendas.
Enfim, o orgulho de ver minha obra publicada custou-me uma longa e perigosa viagem, meses de negociação e um dinheiro que não possuía. Hoje sou um homem bem mais pobre. Pouco progredi no que diz respeito à minha situação financeira. Se Barbara fosse viva estaria, com certeza, azucrinando-me os ouvidos. Graças a Deus que agora tenho Suzanna.
Se não fosse por ela, eu estaria louco ou morto. Ela é tudo o que sempre desejei em uma mulher. No entanto, dessa vez não quis correr riscos e obriguei-me a seguir um método que me permitisse escolher a esposa ideal. Para atingir esse objetivo, avaliei minuciosamente o caráter, a fortuna, a reputação da família, o estado de saúde, a idade e os atrativos de minhas pretendentes. Entre as onze candidatas, Suzanna foi a escolhida. Graças ao bom Deus, finalmente, encontrei nela uma esposa leal, amável, boa dona de casa, compreensiva e bela, atributos que nunca fizeram parte da personalidade de Barbara.
Portanto, por Suzanna e pelos meus filhos, preciso escolher bem. Permanecer em Praga e me declarar católico apostólico romano ou ir para Sagan e colocar-me sob a proteção do general Wallenstein? Se a minha escolha for a errada, não prejudicarei apenas a mim, mas arrastarei Suzanna e as crianças para um perigo que há anos tento evitar, envolver-me de forma definitiva nessa guerra insana.
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Johannes Kepler, matemático, astrônomo e astrólogo alemão, nasceu em 27 de dezembro de 1571 em Weil der Stadt, próximo a Stuttgart, e morreu em 15 de novembro de 1630, na cidade de Sagan.
A guerra referida no texto é a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Essa é a denominação genérica para uma série de conflitos envolvendo diversas nações europeias, especialmente a Alemanha, por motivos diversos: rivalidades religiosas (protestantes versus católicos), dinásticas, territoriais e comerciais.
Kepler acabou decidindo ir para Sagan, a fim de evitar a abjuração. No entanto, essa cidade também foi atingida pela guerra e seus cidadãos foram confrontados com a escolha de converter-se ao catolicismo ou deixar a cidade. Kepler foi poupado desse ultimato, mas caiu em um isolamento profissional do qual nunca se recuperou.
Sua última obra, Somnium, relato fantástico de uma viagem à lua, foi publicada quatro anos após a sua morte. Nem mesmo seu túmulo foi deixado em paz, pois a Guerra dos Trinta Anos destruiu a cemitério no qual Kepler fora enterrado.