DIÁRIO - 26/05/2020

DIÁRIO

[A reconstrução do Paraíso]

Elmar Carvalho

26/05/2020

            No domingo de manhã, como às vezes costumo fazer, fui folhear um de meus livros de fotografias ou pinturas no alpendre da casa.

            Tentando driblar o tédio da quarentena coroniana, olhei atenta e lentamente as pinturas de Salvador Dalí, um de meus pintores favoritos, tanto que inspirado em sua biografia e em suas telas cometi o meu poema épico moderno Dalilíada.

            Estava nessa agradável tarefa, quando de repente, do nada como diriam os jovens de hoje, me veio um estalo à Vieira, e a ideia de um conto me borbulhou na mente. A pequena peça de ficção, que a seguir transponho para este diário, tem alguma coisa de apocalíptica ou escatológica, embora muito diferente da forma como muitos imaginam.

 

A reconstrução do Paraíso

“Daquele dia e hora, porém, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão só o Pai. [Mateus 24:36]”

 

No ano de 2098 o médico e pesquisador John Paul Clark começou a notar sinais, entre seus pacientes e conhecidos, de que algo estranho estaria começando a acontecer.

Com sua famosa acuidade e perspicácia notou, nos gráficos de batimentos cardíacos de alguns de seus pacientes, que eles tiveram uma rápida interrupção ou parada, mas que logo o coração se reanimara, por conta própria, sem que ninguém, nem a equipe médica, nem acompanhante e muito menos o doente percebessem. O fenômeno era discreto, sutil, de pequena ocorrência, de modo que nenhum de seus colegas comentaram o fato, se é que o notaram.

Como outros casos surgissem no decorrer do ano, sob o argumento de que iria fazer uma pesquisa para a elaboração de um livro de sua autoria, conseguiu a autorização do diretor do hospital para executá-la a partir do início do ano e entre todos os pacientes do hospital. Teve a cautela de tirar cópia de todos os eletrocardiogramas, para se municiar das devidas comprovações.

Resolveu estender a investigação por três anos, ao tempo em que estudava e notava outras ocorrências, que entendia fora do comum. Com a sua perspicácia e memória extraordinárias começou a perceber que algumas pessoas aparentavam não estar envelhecendo, enquanto outras, mais idosas, pareciam mesmo estar tendo um leve e lento processo de rejuvenescimento.

Contudo, observava que outras envelheciam e morriam de forma natural, como sempre acontecera. Para sua perplexidade, esta última categoria, pelo que lhe foi possível apurar (e até então manteve absoluto silêncio sobre suas constatações e suspeitas), eram pessoas ambiciosas, intolerantes, agressivas, egoístas e sobretudo más.

Sem que pudesse comprovar, já que não foram internadas e muito menos submetidas a eletrocardiogramas, teve a convicção de que muitas outras pessoas teriam tido uma súbita e rápida morte, mas com imediata reanimação ou ressurreição, caso se queira usar o último vocábulo. De tudo isso tirou a conclusão de que todos os seres humanos vivos até essa época teriam que passar pelo aguilhão da morte, ainda que tivessem um imperceptível e imediato retorno à vida.

Passou a acreditar que essas pessoas que haviam sofrido essas rápidas e inexplicáveis paradas cardíacas ou morte súbita e rápida, e por isso imperceptíveis, não mais adoeceriam, nem envelheceriam e nem morreriam, enquanto as demais morreriam para toda a eternidade, salvo alguma cuja alma tivesse a graça de ser arrebatada diretamente para outra dimensão divina. Seriam seres humanos a caminho da perfeição espiritual, e teriam – quem sabe? – com o passar do tempo, um belo e glorioso corpo.

Quando entendeu disso ter certeza, começou a expor abertamente o que observara, e disse de forma convicta, sem vacilações ou dúvidas, que já se dera a segunda vinda de Cristo, que estava havendo uma transição para uma vida melhor e mais gloriosa, e que o novo Paraíso terrestre estava começando a ser construído.

Muitos acreditaram no que ele disse. Outros, em dúvida, disseram que esperariam mais alguns anos, para firmarem ou não sua crença.

Porém, muitos acharam que ele não passava de um ensandecido profeta messiânico de final de século.