Diálogos entre  música popular e literatura
Alfredo Werney*

A literatura acadêmica e a música popular, ao que nos parece, nunca estiveram tão sintonizadas e afinadas, em outros países, como estão no Brasil. A estreita ligação entre a poesia da canção e a poesia dos livros fez do Brasil um espaço de ricas experiências da relação palavra/ música. Esta complexa ligação certamente não veio dos dias de hoje. A literatura portuguesa se inicia, como nos mostram os estudos históricos, com o Trovadorismo. No prelúdio da nossa literatura (e também da literatura universal), já se faz presente a música, o que se gera uma arte híbrida – que não é tão-somente literatura, nem tão-somente música. No contexto da literatura portuguesa, podemos citar as famosas cantigas de amigo, de escárnio e de amor, executadas pelos trovadores da Idade Média.


Ao tratarmos da literatura acadêmica e da música popular brasileira, pode parecer, em alguns momentos, que estamos versando sobre um encontro extremamente amistoso entre as duas artes. Na realidade, não se trata de uma relação sem tensões, pelo menos em seu preâmbulo. A música popular, que recebe o rótulo de MPB na década de 60, foi vista por muitos intelectuais como uma arte menor. Para muitos, um mero entretenimento. Quem ousaria comparar Cartola com Gonçalves Dias? Sinhô com Manuel Bandeira? Noel Rosa com Drumonnd? É importante dizer, entretanto, que alguns intelectuais se interessaram pela música popular e chegaram mesmo a participar da composição de letras, a exemplo de Manuel Bandeira, que fez parceria com Jaime Ovalle. Mário de Andrade, pesquisador e músico, também se interessou bastante pelas sonoridades da música popular (embora fizesse ressalvas ao samba urbano veiculado aos meios de comunicação de massa). O fato é que ainda hoje perduram tais preconceitos, como se fosse incompatível o universo de signos da nossa literatura acadêmica com o os signos sonoros da canção popular.


Alguns pesquisadores consideram que é a partir do surgimento da bossa-nova, no final dos anos 50, que se intensificam as relações entre escritores acadêmicos e cancionistas populares. Vinicius de Moraes, ao mesmo tempo poeta da canção e dos livros, foi certamente a figura mais importante no empreendimento de uma conexão intertextual entre as duas artes. É claro que antes dele vieram Cartola, Noel Rosa e outros grandes cancionistas. Porém, estes compositores não eram ligados aos escritores acadêmicos da época (o que, diga-se de passagem, não diminui em nada a riqueza de símbolos da arte desses músicos).


Vinicius nos mostrou que as letras de canções populares podiam ser, a um só tempo, comunicativas e possuidoras de qualidades literárias. Suas letras – fáceis de assimilação por parte dos interlocutores – chegam mesmo a parecer demasiado simplórias e carentes de expressividade estilística. Uma impressão errônea, a nosso ver, já que existem muitos recursos poéticos para além das camadas aparentes do seu texto. As canções do compositor carioca, em uma análise mais detida, trazem para a tradição da MPB situações poéticas extraídas do cotidiano (processo iniciado por Noel Rosa), além do que possuem sutilezas rítmicas, tímbricas, que se coadunam perfeitamente com o percurso gerativo de sentido do texto melódico da canção.

Um exemplo significativo desse processo de construção é a canção “Garota de Ipanema”, em parceria com Tom Jobim. O poeta transforma uma situação rotineira (uma menina que passa num doce balanço a caminho do mar) em um momento repleto de inventividade – processo de criação estética caro ao Modernismo. As palavras de “Garota de Ipanema”, afinadas estruturalmente com a melodia jobiniana, “dançam” e reproduzem ritmicamente o rebolado da garota. Um insight de rara beleza lítero-musical.


Vários foram os movimentos musicais brasileiros que buscaram dialogar com os estilos de época da nossa literatura. A bossa nova, como foi visto, foi um dos primeiros movimentos a empreender uma conexão intertextual com a literatura nacional (em especial com o modernismo da poesia de João Cabral). Isto se observa na concisão dos textos, na economia de recursos dos arranjos e na eliminação de elementos subjetivos e dramáticos. Vale ainda ressaltar a importância basilar do Tropicalismo, que imprimiu novas associações entre palavra e música e buscou expressar, através do “fragmentário” e do “alegórico”, as tensões político-sociais do nosso país.


Chico Buarque parece sintetizar em suas composições todo um conjunto de experiências da literatura brasileira e universal. Observamos em sua lírica cantigas de amigo, sonetos clássicos, redondilhas, textos concisos e de sintaxe não-convencionais, paródias, citações de obras clássicas da literatura, etc. Em sua obra, as tensões do mundo amoroso, político, cultural, revelam-se na forma do conteúdo da letra e na construção melódica da música. É possível inferir que o autor da “Ópera do Malandro” aprendeu a retirar os excessos e depurar a forma de seu texto poético-musical com a poesia moderna brasileira. Para tanto, foram basilares: Manuel Bandeira, João Cabral e Carlos Drummond (novamente). A canção “Iracema voou” (1998) é um exemplo dessa influência.


E os diálogos entre MPB e literatura nacional não cessam. Daria para citarmos uma enorme gama de compositores que focalizaram seus trabalhos no liame entre a literatura erudita e a música popular urbana. Há, por exemplo, em muitos artistas, uma presença marcante do espírito anti-linear, dramático e contrastante do Barroco. Caetano Veloso traduz, em certo sentido, esse barroquismo, em algumas de suas canções. Há na lírica deste baiano uma polifonia de cores, sons, ritmos e uma tendência ao exagero e à exuberância formal que nos remete ao Seiscentismo.


Zé Ramalho, por sua vez, procura dialogar com correntes estéticas como o Surrealismo, o Simbolismo e com a visão poética, espiritual e transcendental do mundo do sertão (possivelmente inspirado no universo literário de Guimarães Rosa). Existe, de maneira patente, o pathos ufanista da lírica gonçalviana em algumas canções de Ary Barroso. Arnaldo Antunes procura associações entre palavra e música em suas composições que, muitas das vezes, remetem-nos à força visual e à concisão poética do Concretismo.

Por outro lado, a literatura acadêmica também homenageou e mesmo se inspirou em elementos da música popular. Lima Barreto fez apologia à modinha, em “Triste fim de Policarpo Quaresma”. Nas camadas fônicas da poesia de Bandeira há muitos componentes da sonoridade das canções brasileiras. A literatura de Mário de Andrade (e do Modernismo como um todo) também buscou inspiração em nossa tradição popular. Olavo Bilac homenageou, em soneto (“Música Brasileira”), a nossa riqueza musical; dentre outras experiências. Enfim, as relações entre os movimentos literários e musicais do Brasil, além de fecundas, são fundamentais para que compreendamos as matrizes e as matizes composicionais da nossa música popular e mesmo toda a formação cultural do nosso país.


*Alfredo Werney é arte-educador, músico e pesquisador. Participou do livro "Cantigas de Viver:leituras de H.dobal". É autor do livro, em parceria com Wanderson Lima, "Reencantamento do mundo: notas sobre cinema".