Capa da edição brasileira
Capa da edição brasileira

Desvendando as margens do paraíso

 

Décio Torres Cruz*

 

O romance As margens do paraíso, de Lima Trindade, é um daqueles romances impactantes que o leitor não consegue largar antes de chegar ao seu final. Com uma narrativa contundente e um enredo cheio de surpresas, o narrador nos conta as histórias de Leda, Rubem, Zaqueu e Mauro, personagens espalhados por várias cidades e estados brasileiros.

A trama se passa em diferentes cenários: Cidade Livre, local que depois se tornaria a capital federal do Brasil, Anápolis (Goiás), Rio de Janeiro e Juazeiro (Bahia). Os personagens depois acabam se encontrando numa Brasília em construção. O enredo mescla real e ficção através de histórias de indivíduos comuns que se entrelaçam para revelar os bastidores de uma história real de nosso país.

O autor se debruçou em uma pesquisa de dados históricos para a elaboração de seu romance, criando uma instigante história de vidas que se desenrolam às margens do paraíso prometido por JK. Com o intuito de desvendar o pensamento e o comportamento dos jovens daquela época da construção de Brasília na década de 50 quando pessoas de diversas partes do Brasil para lá se deslocaram, Lima Trindade acaba por revelar a gênese das mazelas da corrupção que nos assola há muito tempo. No entanto, ele leva o leitor a descobrir que, em meio à exploração humana, opulência, miséria, injustiça, ciúmes, intrigas, mentiras e selvageria policial a serviço de quem se encontra em alguma forma de poder, por menor que seja, há também formas de solidariedade, empatia, amor, amizade, lealdade e muitas das características que nos tornam humanos.

Além disso, há diversas referências à cultura pop do final dos anos 50: a revista O Cruzeiro, a cantora Nora Ney, e o ator James Dean são alguns dos ícones da época mencionados no texto. 

Em sua narrativa por vezes cinematográfica, o romancista utiliza diversas técnicas do cinema, transformando a leitura em um deleite pictórico como se estivéssemos a assistir a um filme. Este trecho, por exemplo, é escrito como se fosse uma cena filmada do alto por uma câmera em uma tomada aérea:

Do topo do prédio de um dos ministérios, contemplo a Esplanada. Parte de mim festeja solidário. Já a outra franze o cenho e quer negar uma, duas, trezentas vezes. Eu me imaginava lá embaixo, braços dados com os operários, lado a lado com os companheiros da firma, feliz e me deixando levar pelo cordão. Vários deles carregam os filhos nos ombros.

Neste outro trecho da chegada a Brasília, o leitor é convidado a ver a cena como se estivesse sentado ante uma tela de cinema. A descrição é feita de tal modo que enfatiza bastante o caráter ocular da narrativa, utilizando técnicas cinematógraficas como close-up, tracking e fade-in e fade-out, delineando cenas típicas de um road movie, filmes que retratam estradas e viagens quando a câmera traduz em imagens a percepção de pequenos detalhes visuais e a luminosidade ofuscante, ambos sentidos pelo personagem através da janela de um ônibus:

Rubem meteu a cara na janela do ônibus e a luminosidade o cegou por um instante, para dar lugar às manchas vermelhas e pequenos círculos brilhosos que estouravam, enquanto ele piscava, e logo desapareciam, até que a paisagem rústica de céu e chão pudesse se distinguir com exatidão em sua mente.

O motorista freou com cuidado, mas não o suficiente para evitar que a cortina amarronzada de poeira cobrisse todo o painel dianteiro e embaçasse os vidros. Chegamos, ele disse, enfim, à Cidade Livre.

Originalmente publicado em 2019, As margens do paraíso acaba de ganhar uma nova edição em Moçambique pela Massinhane Edições agora em 2025. Embora com histórias distintas, o editor moçambicano estabelece pontes comparativas entre as histórias do Brasil e de Moçambique na época do enredo, enfatizando a dimensão atemporal da obra para além de fronteiras territoriais. No texto da orelha da edição moçambicana, o apresentador afirma:

Do Brasil, oscilando sempre entre ditaduras e democracia, a Moçambique, que passou da guerra colonial à paz instável, este livro entrelaça vozes e falas, o que faz da literatura uma forma de reavivar feridas, mesmo dolorosamente, e ferramenta necessária para reinventar caminhos.

No encontro entre a ficção e a realidade, o leitor se depara com um espelho: uma história que não pertence a um só território, mas a todos aqueles que se recusam a esquecer.

Ler As margens do paraíso é adentrar em um Brasil e em um Moçambique ainda vivos, ainda por se decifrar.

E assim podemos perceber as conexões que podem ser estabelecidas entre países tão díspares e tão assemelhados.

Ao escolher uma cidade em construção que irá se tornar a nova capital do Brasil e que se tornará mundialmente famosa por sua revolucionária arquitetura modernista, o autor nos apresenta não somente as pessoas que vivem à sua margem, mas, principalmente, destaca as margens do desejo que habita cada ser em busca de seu lugar e seu pequeno espaço nesta terra. Em sua escolha por não crasear o artigo do título, o autor, propositadamente, enfatiza a impossibilidade de sagas salvadoras, deixando vir à tona que o paraíso é apenas um construto religioso-social inatingível para as pessoas comuns.

Assim, temos, aqui, uma boa oportunidade para que os leitores brasileiros que ainda não leram esta obra passem a conhecê-la. As margens do paraíso possui a qualidade literária necessária para se tornar um clássico de nossa literatura e merece ser estudado em nossas escolas nas aulas de literatura e de história. Para quem busca uma boa companhia, recomendo a sua leitura e tenho certeza de que vocês irão se surpreender com o conteúdo e a técnica narrativa do autor.

O livro está disponível em diversas lojas e sites, e pode ser adquirido diretamente em lojas virtuais e no site da editora CEPE.

 

SOBRE O AUTOR

Foto divulgação Lima Trindade (CEPE)

O escritor Lima Trindade. Foto: Marcelo Frazão

 

Lima Trindade nasceu em Brasília em 1966 e mora em Salvador desde 2002. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Estreou na literatura em 2005, com duas publicações: a novela Supermercado da Solidão e a coletânea de contos Todo sol mais o Espírito Santo. Em 2007, lançou o livro de contos Corações blues e serpentinas. Em 2014, publicou a novela O retrato: ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e a coletânea de contos Aceitaria tudo (2015). Seu primeiro romance, As margens do paraíso (2019), recebeu bastante destaque na mídia nacional. Alguns de seus contos estão traduzidos para o espanhol, inglês e alemão. Além dos títulos publicados, Lima participou de várias antologias e possui textos publicados em jornais, revistas, suplementos literários e em sites da internet no Brasil e no exterior. Seu primeiro livro de contos foi traduzido e publicado na Cidade do México em outubro de 2014. Assinou uma coluna de crônicas no site do jornal Rascunho no período de fevereiro de 2021 a janeiro de 2023.

 

 

 

 

 


* Escritor membro da Academia de Letras da Bahia, da Academia de Letras de São Paulo e da Academia de Letras e Artes do Rio de Janeiro. Autor, dentre outros, de Viagens & travessias (Caravana, 2025)  A poesia da matemática (Caravana, 2024), Histórias roubadas (Penalux, 2022) e Paisagens interiores (Patuá, 2021).