Descoberta foto inédita de Lima Barreto

DANIELA BIRMAN

Arquivos não são imparciais nem frios. Pelo contrário. Eles muito dizem sobre a trajetória de autores, documentos e imagens. Desse modo, se o escritor Lima Barreto ocupa cada vez mais um lugar central em nossa literatura, esta mudança se faz acompanhar por novas idas aos acervos do autor e pela valorização destes. No entanto, sua história de marginalização também cobra um preço. E os movimentos de busca por documentos esbarram em atos e consequências dessa história, assim como dos arquivos que a escrevem. No caso de Lima Barreto, não há somente arquivos literários a serem consultados. Fundamentais também são os médicos e psiquiátricos. E parte desses enfrenta um passado marcado pela dispersão e má conservação, o que dificulta e em alguns casos impossibilita a consulta a importantes documentos.

Felizmente, o vagaroso e por vezes desalentador trabalho de pesquisa em arquivo também traz momentos de grande recompensa. Este foi o caso da localização recente da foto inédita de Lima Barreto aqui publicada, pertencente ao acervo da Biblioteca do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Nela, vemos o escritor em agosto de 1914, aos 33 anos, por ocasião da sua primeira internação no antigo Hospital Nacional de Alienados. Ela nos revela um Lima ainda jovem enquadrado num processo de objetivação psiquiátrico, em que seu diagnóstico é cravado logo acima da sua imagem: “alcoolismo”. Observando-a, percebemos também que o autor provavelmente vestia o uniforme do manicômio. Como ele escreverá logo no início do seu “Diário do Hospício”, redigido em sua segunda passagem por essa mesma instituição, ao chegar ali pelas mãos da polícia, o interno passa pelo Pavilhão de Observação, onde “tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez (...).” A foto aqui publicada do autor integra um registro médico de Lima de 1914, que consta no “Livro de Observações Clínicas” do antigo Pavilhão de Observação do hospital.

Comparada à fotografia da segunda entrada do escritor no hospício, em dezembro de 1919, a diferença impressiona. Embora as imagens tenham apenas cinco anos de intervalo, a destruição física de Lima na segunda imagem salta aos olhos. O escritor, lembramos, morreria apenas três anos depois, em 1 de novembro de 1922. Como escreve no “Diário do Hospício”, Lima estava certo que não retornaria uma terceira vez ao manicômio. “(...) senão, saio dele para o São João Batista que é próximo.” 

Outras duas diferenças também chamam a atenção: em 1914, Lima Barreto declara-se “empregado público” no seu prontuário hospitalar e é identificado como “branco” no quesito “cor”. Já na segunda internação, ele se diz “jornalista” e a sua cor é “parda”, de acordo com outro registro do antigo Pavilhão de Observação, de 1919. A passagem de funcionário público para jornalista se deu após a aposentadoria por invalidez do escritor no seu cargo na Secretaria da Guerra e com o aumento da sua colaboração com a imprensa. A mudança de sua “cor”, porém, mais intriga do que explica. Erro, descaso, ou cuidado em “embranquecer” (e, portanto, em proteger) um jovem escritor e funcionário naquela que seria sua primeira internação? Tendemos para esta última hipótese.

Ato falho ou intencional, a informação não foi transcrita para a cópia do documento publicada no volume XV das “Obras de Lima Barreto” (editora Brasiliense, 1956), organizadas sob a direção de Francisco de Assis Barbosa, com a colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença. Figura essencial na preservação, publicação e valorização da obra do escritor, Assis Barbosa copiou o registro do Livro de Observações Clínicas de 1914, porém sem a informação da “cor” e sem a reprodução da imagem. Já em outros dois registros médicos transcritos no mesmo volume (extraídos dos arquivos do Hospital Pedro II e do Hospital Gustavo Riedel), a “raça” de Lima também é definida como “parda”.

A fotografia de 1914 foi localizada no quadro da pesquisa de pós-doutorado “Confinados: escrita e experiência do cárcere em Lima Barreto e Graciliano Ramos”, desenvolvida por mim no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Já aquela de 1919, hoje bastante difundida, foi publicada pela primeira vez em 2004, com a edição da reunião em dois volumes de todas as crônicas do escritor, pela Agir. Ela foi descoberta pela pesquisadora Beatriz Resende, especialista em Lima Barreto e responsável, ao lado de Rachel Valença, pela organização dessa obra. Segundo explica Beatriz Resende, naquele momento, os livros de registros de entrada no Hospital Nacional de Alienados saíram do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, propriamente, e foram levados para a Biblioteca do Instituto, sob a responsabilidade do SIBI (Sistema de Bibliotecas e Informações), onde começaram a ser reorganizados e tratados, passando à condição de documentos de pesquisa.

Esperamos que, com a publicação desta e de outras imagens, documentos e livros, novas idas aos acervos sejam impulsionadas, gerando outros achados e contribuindo para o estudo da obra do autor e a preservação de seus registros nos arquivos psiquiátricos e médicos da época. Torcemos ainda para que, no futuro, os pesquisadores não escutem, como temos ouvido em nossas recentes buscas em arquivos, variações da tragicômica pergunta: Lima de quê?

*DANIELA BIRMAN é jornalista e faz pós-doutorado em Literatura Brasileira no Iel/Unicamp, com financiamento da FAPESP

Publicado originalmente no Prosa e Verso (O Globo, 26.09.2010)