Dentro da lona do trem
Por Miguel Carqueija Em: 16/11/2012, às 15H52
(Miguel Carqueija)
O futuro pode reservar costumes muito estranhos...
DENTRO DA LONA DO TREM
O trem era enorme e, consequentemente, a lona que o recobria por dentro era também enorme. Estendia-se por dezenas de metros quadrados em cada vagão e, frouxa como era, permitia fácil movimentação por baixo. Eu, se não visse com meus próprios olhos de míope, não teria acreditado nas coisas que se podia fazer por baixo da lona, mas o fato é que o meu amigo Ariovaldo Macbeth me convidara para acompanhá-lo numa viagem por debaixo da lona, “hobby” de muitos excêntricos hoje em dia.
— Veja — disse ele, quando nos aproximamos do Expresso do Círculo Mineiro — as pessoas que viajam por baixo da lona são geralmente reconhecíveis. Usam roupas mais resistentes, de brim ou mesmo magiplast, ou andam bem à vontade de short ou bermuda. Algumas são meio corcundas, eu não acho recomendável viajar assim com frequência mas sempre existem os fanáticos...
Na bilheteria digitáramos a tecla verde, significativa da viagem por baixo da lona, ou seja no andar baixo do trem. Nossos bilhetes ostentavam a figura do basilisco. Acho que a razão era tratar-se de animal
rastejante. Assim, apresentamos os bilhetes para a chancela do robô-fiscal e penetramos em nosso vagão, por uma portinhola cujos umbrais e padieira já eram aderentes à lona.
— Agora — disse Macbeth — se abaixe! Vamos entrar!
Abaixei-me e fomos caminhando curvados, beneficiando-nos da luz que emanava de círculos engastados no assoalho de magiplast. Logo tivemos que ficar de quatro, caminhando como jabutis, pois em muitos trechos a lona abaixava até quase o chão. Percebi em seguida que ela podia, sim, chegar até o chão, e aí ou rastejávamos como víboras ou erguíamos o nosso teto, o que era trabalhoso.
Mesmo assim eu estava pensando em fazer isso, mas Macbeth me interrompeu:
— Vamos ter de passar por um obstáculo.
O “obstáculo”, no caso, era um homem gordo, volumoso, de barba por fazer, panturrilhas protuberantes e aspecto de quem não tomava banho e nem lavava a roupa. Ele estava esparramado de barriga no chão e olhos muito abertos, pouco à nossa frente; olhou-nos com naturalidade e nos cumprimentou.
Comecei a perceber que o ar era pesado e opressivo, e que a ventilação do assoalho era incapaz de compensar o esforço que fazíamos e a apertura daquele lugar. Senti a inhaca daquele sujeito e desejei estar longe dali.
— Sabe onde é o refeitório? — perguntou Macbeth.
— Sei, sim — disse o sujeito, ainda naquela posição que fazia lembrar uma tartaruga gigante. — O meu nome é Sarmento — acrescentou, aliás sem dizer onde ficava o refeitório.
— Ariovaldo, por favor — interferi — como pode pensar em comer numa hora dessas?
— Comer é bom — disse o Sarmento, com ar plácido, parecendo muito satisfeito da vida. — Eu sempre que tenho oportunidade. Gosto muito de costeleta de porco.
— Vocês estão procurando o refeitório? É nessa direção — disse uma voz feminina, inesperada.
Era uma garota magrinha, de calças cor de vinho e rabo-de-cavalo. Precisamos erguer um pouco a lona, içando algumas estacas fixas, para enxergá-la melhor; e contornando o Sarmento, que se havia sentado no chão, seguimos por um tunelzinho, ou seja uma passagem de teto mais alto, atrás da garota. Pude então ver as poltronas, com vários passageiros.
Certamente é estranho ficar sentado naquela luz difusa, com uma lona roçando em sua cabeça. Ela pesava, no fim das contas. Eu já me sentia um tatu ou um minhocão, qualquer desses bichos que se movem por baixo da terra. Mas já Macbeth me chamava, para que eu não perdesse tempo em observações; a garota já se perdia à distância.
Fomos andando curvados até chegar ao pequeno refeitório, onde os pedidos eram entregues pela parede automática, mediante digitação do cardápio. A menina se voltou para trás, alegremente, e mostrou o cardápio eletrônico na parede luminosa:
— Como vêem, o prato do dia é espaguete com suflê de batanoura.
Eu não aprecio muito comidas híbridas, mas estava começando a sentir apetite e gosto de espaguete. Havia também ovos de pelicana, cozidos; pedi um. Ai olhei para a prestativa garota:
— Você já tinha viajado assim?
— Já. Desde os seis anos.
O trem deu uma sacudidela numa curva; não podíamos enxergar nada do lado de fora e ela, subitamente desequilibrada, caiu por cima de mim. A própria lona nos amparou.
— Obrigada por me segurar.
— Não foi nada — falei, contendo-me para não dizer “foi a lona”. Macbeth já recebia o primeiro prato, que tratou logo de fixar sobre a mesa, ativando as suas ventosas. Um senhor idoso, de paletó naquele calor, ajudou-o na operação.
— Vejo que o senhor é um veterano das lonas — disse ele. — Acho mesmo que o conheci na lona do Transpantaneiro, quinze anos atrás.
— É possível. Não foi o senhor quem pediu um cozido de cantalupos?
— Sim, isso mesmo, e o senhor comeu pitus com rabanete assado, não foi isso?
A garota pôs-se a me ajudar na arrumação da outra mesa.
— Parece que as pessoas que se encontram nas lonas sempre se recordam dos pratos e dos vizinhos de mesa... a propósito eu sou a Laura, e você?
— Bem, eu sou... puxa, como é mesmo que eu me chamo?
Sorrindo, ela mexeu no meu bolso e retirou a minha carteira.
— Que está fazendo?
— Se não se lembra o seu nome, eu mesma vou verificar.
Nesse momento entramos no túnel. O imenso túnel Macedônia.
— Não vai dar para você ler — falei, encostando nela. – Eu me chamo Edgar.
— Alan Poe?
— Quem dera. Epa, segure firme!
— Deixa eu botar a sua carteira de volta... puxa, que luz fraca!
— Edgar — disse Macbeth — é melhor vocês dois sentarem! Ou a comida vai esfriar...
Seguimos o conselho. Ela se pôs a cortar o espaguete, coberto de molho curry, e mantinha uma expressão muito séria, ao me perguntar:
— Então, está gostando de viajar sob a lona?
— Muito — admiti, fitando os seus olhos verdes. — Principalmente depois que eu descobri o que pode existir debaixo da lona...