De salto alto na igreja

[Chagas Botelho] 

Era metade de uma manhã quente. Eu acabara de apresentar um artigo científico num evento de Letras, em Parnaíba. Missão literária cumprida, agora, era aguardar o horário do ônibus para voltar a Teresina. O retorno estava marcado para o fim da tarde. Sem mais nada a fazer, pus as mãos no bolso e, para matar o tempo, comecei a caminhar pelas ruas da capital do Delta. 

Passos cadenciados. Apreciei as casas memorialistas. As lanchonetes que exalavam acepipes. Os locutores que gritavam preços promocionais nas portas das lojas e jovens senhores que bebiam  cerveja de forma lenta e silenciosa em calçadas sombreadas. 

Manso e observador, me enfiei em vários lugares chamativos. Até as pernas se cansarem, flanei e flanei. E cansaram. Parei numa banca de revista, impulsionado pela curiosidade da palavra escrita. Na praça da Graça, passei os olhos pelos gibis. Li as manchetes dos jornais repletas de obituários. Limpei uma poeira secular sobre um Tolstoi, mas, nada comprei. Exceto uma água de coco para irrigar a garganta sedenta. 

Bebi sem pressa e sentado num banco defronte a Igreja de Nossa Senhora das Graças. De súbito, uma moça cuja beleza estava em todo o corpo - glúteos, coxas, cintura, costas e pescoço - era de fato uma cidadã toda refinada. Tão linda que me lembrou García Márquez na crônica “O Avião da Bela Adormecida”: “sempre acreditei que não há nada mais belo na natureza do que uma mulher bela”. Porém, o que tinha de linda tinha de triste. Uma acentuada tristeza que lhe encobria o rosto. 

Alheia, ela admirava a arquitetura da igreja. De minha parte, eu devotava sua contemplação tristonha. Nem os famintos pombos distraíam  seu distanciamento. Nada lhe tirava da atmosfera etérea e envolvente. Sequer era notada pelos passantes, nem pelos que estavam sentados contíguos ao seu banco. Ela também não notava ninguém, completamente ensimesmada. Não dava conta do mundo. O exterior não lhe tinha importância. Encontrava-se trancada em seu próprio interior. 

Quando voltou a si, dos pensamentos distantes, procurou algo dentro da bolsa. De lá, tirou um par de sandálias preta e cintilante. Tive a franca impressão de que iria jogar fora, embora não estivesse gasto. Talvez quisesse também ser jogada fora. Ser largada num canto qualquer e a qualquer custo. 

Mas, não. Escolheu outro gesto. Arrancou as rasteirinhas que calçava os pezinhos finos e brancos e as substituiu pelos saltos negros. Quem sabe marcara um encontro e quisesse aparentar ser mais alta ou simplesmente realçar o visual e elevar a autoestima. Nem uma coisa nem outra. Guardou as rasteirinhas na mesma bolsa e com firmeza bateu os dois pés no chão e, portanto, agora calçada no novo modelo, entrou na igreja. 

Deus, na sua imensa glória, Ele, sim, compreendeu o porquê da troca de calçados. O Divino entendeu por que a linda moça entrou em sua morada sobre um salto negro, tipo agulha 12, e não numa humilde rasteirinha. Dele nada escapa, afinal, é onipresente. Já eu, no alto de minha insignificância, bem diante dos meus olhos de pecador, de forma honesta, até hoje nunca entendi.