De neto para avô

[José Ribamar Garcia - especial para Entretextos]

 
A paixão de Carlos Lacerda pelo avô paterno Sebastião, exibida no livro “A Casa do meu avô”, e a de José Lins do Rego pelo avô materno, José Lins, revelada em “Meus verdes anos”, preencheram o vazio no coração, ou na mente desses netos. Histórias fascinantes sobre avôs tão diferentes entre si, separados pelo tempo e pelo espaço, os quais jamais imaginaram que marcariam e influenciariam a vida dos autores.   
                                            
Sebastião de Lacerda, com quem o neto passou a infância, nasceu no Estado do Rio de Janeiro e viveu na chácara da família, localizada na Estação do Comércio – que hoje leva o nome dele –, no município de Vassouras. Era um homem calado, de sentimentos contidos, quase a conta-gotas, imerso na solidão e na nostalgia. Delas só emergia para tomar o trem que o conduzia à capital, então Distrito Federal, onde comparecia às sessões do Supremo Tribunal Federal, do qual era Ministro – antes fora ministro da Aviação. Um misantropo, de cultura elástica e erudita, mas acima de tudo generoso. Deixou o legado da honradez e do exemplo de transparência e independência no exercício da magistratura. Homem reservado e de fúrias momentâneas. Mas, ao lado do neto mudava de humor. Nessas aproximações, que não eram raras, ele se sentia à vontade, extravasava. Sorria, falava de poesia, declamava e até ousava cantarolar baixinho canções antigas que revolviam seu passado nostálgico. Momentos em que, aos olhos do neto preferido, tornava-se maior, agigantava-se – e ele, neto, mais protegido e confiante. Assim, retratado:
 
 “De repente me encontrei pensando nesse Avô que eu tive, de barbicha em pêra, um quisto feito ovo de pombo no lado direito da fronte, um chapeuzinho de feltro preto amassado no alto da cabeça; muito claro, o nariz pronunciado, a fronte alta e prolongada pela calva, parecia um judeu estudioso, desses de gravura...” “Esse Avô, como se fora só meu, era repleto de ternura que precisava desabafar com alguém, carinho reprimido pelos coices da vida, decepções que agora entendo...” E “A sombra agora é densa e refrescante. As árvores pendem sobre os dois amigos, o menino moreno e o velho muito branco, o cavanhaque lhe prolonga o perfil pronunciado, o nariz quase adunco e aquela roupa negra de rabino, o chapéu amassado e o casaco que pende sobre o corpo apenas meão que aos olhos do menino, vendo o mundo de baixo para cima, parece inatingível.”
 
 
Quanto ao de José Lins do Rego, o fazendeiro José Lins Cavalcanti de Albuquerque, ou coronel Zé Lins para os de fora, e “Bubu” para alguns poucos de casa, incluído o neto, nasceu na Paraíba e viveu no Engenho Corredor, no município de Pilar, onde o romancista passou a infância. Era o homem mais rico e poderoso da região. Dono de terras e de engenhos. De vida sociável atribulada e preocupada. E, apesar do temperamento aberto, era um solitário, que trancava os sentimentos no fundo do baú. Tal como Sebastião de Lacerda, nunca pegou o neto pelo colo, nunca o beijou, nem o abraçou, ou expressou ato de carinho. Seu afeto era sincero, mas à distância, como confessaria o neto:
 
“Às vezes chamava-me para o seu lado na banca e passava as mãos pelos meus cabelos. E quando entrava em dieta, a tia Maria trazia-lhe o prato de papa de maisena e ele me fazia comer a metade. Mas nunca me deu um beijo, nunca me acariciou com exuberância. Em certas ocasiões me botava na garupa do seu cavalo Gouveia e saía para ver de perto os trabalhos dos cabras no eito”.                             
   
Avôs de sentimentos camuflados, quase envergonhados. No entanto, transmitiam aos netos a sensação de segurança, de proteção, de poder. O que não acontece, às vezes, com aquele avô convencional que toma o neto pelo colo, que se senta no chão para brincar com ele durante horas a fio, que o leva e o traz da escola. Mas, não consegue passar para a criança aquela emoção. E não consegue, porque simplesmente não sabe, ou porque não tem esse dom, ou mesmo empatia – e acaba num avô artificial, enfadonho.
 
Sebastião de Lacerda e o coronel Zé Lins, de comum, o sentimento do certo, do justo e a solidão. Até parece que esta é uma característica dos bons avôs.   
 
Carlos Lacerda e José Lins do Rego, a certa altura da vida, tornaram-se amigos. O primeiro virou político e o segundo romancista. Quando este faleceu, Lacerda, deputado federal, pronunciou na tribuna da Câmara um longo e belo discurso sobre o amigo, do qual se extrai este texto em que disseca sobre o humor do ex-menino do Engenho Corredor: 
 
“Esse homem exuberante, das gargalhadas homéricas, dos risos sacudidos, das histórias, das anedotas, dos casos contados em sequência, trazia pela primeira vez a timidez de quem se cuida e as cautelas de que pressente o inimigo à porta.”  
 
Esses netos, além da paixão pelos avôs, tiverem outra: o rio da infância. Rio que tinha o mesmo nome: Paraíba. O Paraíba de José Lins do Rego, que “corria bem próximo ao cercado da Casa-Grande” era pequeno e secava durante algum período do ano. Enquanto o de Carlos Lacerda traz o sobrenome Sul e, sempre perene, corta pedaço do Estado do Rio de Janeiro. Curiosidade, apenas.   
 

José Ribamar Garcia é romancista e membro da Academia Piauiense de Letras. Vive no Rio de Janeiro