Nota  Prévia ao Leitor:   A vontade de escrever  me fez antrecipar o  período de minha  volta ao Letra Viva.. Segue, abaixo, mais um  texto meu.

 

 

 

                                                       

 

                                                           Cunha e Silva Filho

 

 

 

 

                   Era tempo de ginásio e, em seguida,  de científico. Mas, era tempo  também  de imensa  saudade vista  pelo  olhar do narrador  de hoje .

Domício. Liceu Piauiense. No meu  diploma do científico,  o velho  Liceu de tantos  carnavais, era então chamado de Colégio Estadual  “Zacarias de  Góis, pelo menos assim   consta do meu   diploma assinado, em 1963, pelo  (desculpe-me o chavão) “saudoso”  e ilustre professor  Lysandro Tito de Oliveira e pelo  secretário, professor Alcides Lebre, que,  por sinal, tinha   sido meu  professor  de desenho no Domício. O grande mestre de geografia,  Lysandro, que me lecionou no Domício,  em aulas  dignas  de  gravação,  nos fazia   viajar  pelo  Brasil afora. Era professor catedrático do Liceu piauiense. Sabia de tudo sobre o Sul do país. Principalmente,  se deliciava descrevendo  a paisagem rural,  econômica,  social e histórica  de estados  sulinos que, só  muito mais tarde , iria conhecer  pessoalmente.

                 Alto, usava bigode.   Sério e ao  mesmo tempo  afável, exigia muito do alunado, porém  sem exageros. Eu estudava muito  para suas  provas, às vezes me desesperava em casa, quase chorando,  porque  julgava que havia  muito conteúdo para  aprender  e a ser cobrando  nas provas. É curioso: não fui muito  forte na geografia, apesar de meu  pai ser  também  professor de geografia. As notas não eram tão altas assim. Contudo,  pouco  me importava,  porque  gostava  dele como  professor e como  pessoa. Até hoje, lamento não lhe ter dado um grande abraço  e conversado com ele na última vez que o vi e o cumprimentei  na presença de meu pai. É que eu estava aflito para entrar num banco,  onde  havia   um dinheiro  para   receber e  que tinha   demorado  muito. Foi imperdoável da minha parte.

Em 1965, já no Rio,  lhe pedi, através de  meu pai,  uma  carta de recomendação que juntaria com outras, as do  querido e admirado professor Viveiros, de inglês, de quem  fui  aluno  nota   10 no período do ginásio, no Domício (famoso  e popular colégio particular   dos  irmãos Magalhães), principalmente  nos anos cinquenta, sessenta,  e no científico, no Liceu Piauiense.  A carta do professor  Domício era  igualmente  cheia de  boas  referências sobre minha vida  de estudante.

O objetivo   dessas cartas era atender a   uma  exigência  da burocracia   do setor  de bolsas de estudos aos  Estados Unidos,  a cargo do IBEU, sigla para o  tradicional  curso de inglês, Instituto Brasil-Estados Unidos, célebre pelos seus seminários anuais de professores de inglês  vindos de  quase toda  as partes do país e  pelo  alto  nível do seu TTC (Teacher’s Training Course), curso de formação de professores, naquela época considerado  de alto  nível.  O IBEU realizava /realiza também os exames de Michigan, concedido  pela Universidade de Michigan  por longo tempo muito  concorrido por  estudantes  ávidos  de ostentar a sua  proficiency   oral e escrita  na língua  inglesa.A eles me submeti com sucesso,  sendo  que  o meu  certificado data de 1982.

Tinha  me inscrito  como candidato  a  uma bolsa de nível  undergraduate, o que corresponderia  a um nível  entre  o curso secundário, o equivalente ao  ensino médio de hoje e a  universidade.  Nos Estados Unidos   o curso  duraria  um ano e meio. Passara  bem nos exames  escrito e oral. Já  tinha  feito  uma entrevista  com  o setor encarregado  das bolsas.  Juntei, depois,  todos os documentos. Estava  pronto   a embarcar. Diziam que  viajaria  em navio   militar.

 As cartas de recomendação, sobretudo as do  professor Lysandro e do professor Viveiros,  eram muito  elogiosas,   especialmente  porque  falavam  bem  de meu caráter como  estudante. A do professor  Viveiros viera  redigida em  inglês, com todas  as formalidade  de um  correspondência  oficial  dirigida  ao governo  americano. Até me lembro de algumas  frases,   entre  as quais, forçando a memória,  “To whom it may concern”.   O  aluno   em  questão  “was  an exceptional  student  while   I was his high school  English    instructor” “He is congenial...”  “I can  highly recommend him  as a good representative Brazilian student in the United States.”

 Não tenho  cópia das cartas que tanto  me  lisonjearam e me estimulavam  a estudar  no exterior. Uma semana antes do embarque,  recebi uma carta do IBEU  lamentando  que a  minha    bolsa tinha sido  cancelada. Foi uma ducha de água   fria no espírito  caloroso  daquele adolescente de dezoito anos. O pior era que já tinha  me despedido de alguns amigos mais  chegados. Decepção sem tamanho! A carta, como  consolação,  ainda afirmava que, no ano seguinte,  poderia  tentar  outra vez.

 Mais tarde,  pensando bem,  deduzi  a razão  do cancelamento da minha bolsa de estudos. Na mencionada  entrevista  que tive com  uma senhora do setor  de bolsas, eu havia declarado não ter condições  financeiras  de  ordem  familiar para o meu  sustento (alimentação,  hospedagem e outras despesas)  lá fora. A bolsa apenas  incluía  a gratuidade  dos estudos, do curso. Não tentei. A decepção  feriu muito  profundamente  a minha sensibilidade  de jovem. No ano seguinte,  entrara para cursar  letras na Faculdade Nacional  de Filosofia. Na época, não atinei  para  a iniciativa de  tirar cópias  daquelas cartas maravilhosas  de meus   ex-professores.

Após essa digressão com a qual não contava como  assunto   central  destas memórias,  machadianamente  volto ao  sugerido no título   deste  texto.

A Rua Arlindo Nogueira  tem  uma  capital   importância na minha  vida  de escritor. Foi  naquela  casa  grande  e de varanda   ampla que  me iniciei  na  arte  de  escrever e de me sentir   inclinado  para o resto da vida  à escrita e à leitura. No entanto,  não  vou agora  detalhar  esse  aspecto, pois o que me  interessa   aqui é comentar   aquele  lado da vida  m ais  pessoal  e mais  íntimo, que é  o despertar para o amor.  Sentimento  indispensável da  vida de qualquer  ser humano,  vou  recolher  os  primeiros  frutos  dele através da  imagem espácio-temporal  localizada  a partir  de uma das janelas para fora da qual  dirigia o meu  olhar com aquilo que virou  hábito:  à tardinha, apreciar  sobretudo  as belas  meninas  que  todo  dia  passavam  pela rua, ora para casa, ora  para  outros lugares. Ali estavam  elas  graciosas,  de todos os  tipos e para todos os gostos: morenas  cor de jambo,  alvas,  louras,  algumas  bem torneadas, com as curvas  mais  harmoniosas,  ou seja, as curvas   de Niemeyer...

 Obviamente,  não  poderia   ter a pretensão  de  que todas  também  me  dessem um  olhar mais faceiro ou  que me correspondessem  sempre (que pretensão!)  ao meu  próprio  olhar  de jovem  romântico em plena  adolescência. A minha casa tanto dava para a Rua  Arlindo Nogueira quanto para a Rua  São Pedro. Nesta é que  a minha  casa  tinha  sua  entrada, uma espécie de espaço   pequeno  em que bem se poderia  ali  plantar  flores e fazer um  jardinzinho. Era uma entrada  apenas aparente,  visto que por ali  se podia ter acesso a um quarto especial ou, usando uma palavra mais antiga,  porém apropriada ao tom  deste   texto,  para a alcova justamente o espaço sagrado de  meus pais. O quarto,  além  disso,   servia para   ocupar duas estantes  apinhadas  de livros, preciosos  livros! As estantes eram  grandes, sólidas  e de boa madeira. No teto delas meu pai colocava  caixas grandes de  papelão, repletas de antigos recortes  de  artigos de diversos  jornais para os quais  havia  colaborado ou ainda colaborava assim como   revistas,   anotações  de estudo de língua estrangeira,  material esse  datado do  início  de  sua carreira de jornalista e professor, primeiro em  Amarante, depois, em Teresina.

Na casa das Ruas Arlindo  Nogueira e São Pedro,  praticamente  iniciei a minha  vida  amorosa,  as minhas aventuras  juvenis  à procura  da simpatia  feminina que  às vezes  não surtia o efeito desejado. Qual adolescente que  não se  frustra com  um amor  não correspondido?   Decepciona, dói, mas, como  tudo nesta vida,   cura com o tempo. Era uma  época   grandiosa sob todos os aspectos. Amores idos e vividos.  Amores partidos. Até amores sonhados.  Amores  nunca percebidos plenamente pela outra parte. Ficava apenas na  vontade  de amar, o que é dilacerante  para   os  adolescentes.

Aquela janela,  inscrita num   tempo pretérito,  virou  uma forma de metáfora   de uma época em que  começava a forjar  as experiências que me  levariam a outros amores, agora adultos,  e as  experiências com  o ato da escrita, também    com as suas  mudanças,   suas tentativas  de melhor   comunicar  o sentimento e o pensamento  lógico   em variadas  formas e em  tempos  superpostos que me chegam até os dias  de hoje.A Rua Arlindo Nogueira, esquina   com a  São Pedro, é o princípio de tudo  na vida  deste escritor.