Da coluna Escorregões do Português
Em: 06/10/2015, às 20H22
[José Maria Vasconcelos]
DÍLSON LAGES
O conhecido e aplaudido professor de português e literatura, poeta, analista de obras consagradas, recentemente eleito membro da Academia Piauiense de Letras, “topou a parada” no desafio proposto pela coluna, há algum tempo aos poetas: apresentarem um poema de sua lavra, acompanhado das explicações técnicas e artísticas, em linguagem e didática para estudantes e curiosos na construção do poema. O motivo do desafio destina-se a educar os jovens a interpretar e criar poesia, especialmente a de vanguarda, metafórica. Infelizmente, há versos por aí travestidos de poesia. A colaboração de Dílson Lages, certamente, cairá nas mãos de estudantes e professores, em círculos de debate:
MARATAOÃ
“O rio corre em meu coração/E separa os sentimentos da areia./A vaga das águas vai/Virando pó em pensamento/E a estrada encurta distâncias./O rio viaja no horizonte/Onde dançam os cabelos das carnaúbas/E soluçam os olhos do sol./O rio corre em meu coração/E deságua nas correntezas do caminho.”
Por economia de espaço, compactei os versos. Dílson enviou seguinte comentário, reduzido ao espaço da coluna:
“Qual a alma de uma cidade? Antes dos valores do mundo do consumo determinarem tendências e comportamentos, em muitos lugares, a igreja, a praça e principalmente o rio definiam a essência das cidades. O afeto, a interação, o tempo mais valiam que qualquer outro signo, porque a pressa era viver. O afeto, a interação e o tempo cabiam com todas as letras na igreja, na praça e principalmente no rio.
Muitos exaltaram o rio-alma de sua aldeia. Pessoa enalteceu o Tejo. João Cabral de Melo Neto, o Capibaribe. Da Costa e Silva, o Parnaíba. Exaltei o amor pelo rio de minha terra de nascimento, expressando no poema Marataoã designação do volume de águas que serpenteia o perímetro urbano de Barras-PI, o sentimento do eu lírico que utiliza o rio não apenas como símbolo de identidade, mas elemento por meio do qual o lirismo telúrico projeta a interlocução entre o mundo exterior e o universo interior da voz poética. O rio funciona, pois, como uma metonímia para a própria terra e as emoções dela advindas, resignificada em jogos sonoros e imagéticos, construídos com a finalidade de revelar o sofrimento pela distância da terra-berço.
Como em poesia a relação ritmo-imagem conta mais do que qualquer experimentalismo, os recursos da tradição literária, os tropos, ganham sentido especial. Neste poema, extremamente musical, o rio e a terra se confundem semanticamente. O rio é movimento (inclusive pela repetição assídua do som “rê”): assemelha-se ao sangue (“o rio corre em meu coração) – corre, viaja, dança. Acompanha o eu lírico como fragmento, como memória, conotada na metonímia “vaga das águas” (a parte pelo todo). O rio é onipotente, conforme se vê no processo metonímico “deságua nas correntezas do caminho”, processo que reitera o significado afetivo tanto da terra quanto do Marataoã. A Terra (cidade) e o Marataoã se confundem e fundem na expressão da alegria e da tristeza... o rio “separa os sentimentos da areia”, “vira pó em pensamento”, “soluça”, “deságua”, entretanto, está continuamente vivo no eu lírico... o rio absorve a imaginação: sinestesias, assonâncias e aliterações em alta voltagem... “cabelos das carnaúbas”,“olhos do sol”,.. ritmos e imagens...por conta da imaginação do leitor. Deixo o leitor à vontade, afinal, não apenas o rio, paradoxalmente, reduz-se a lembranças, mas tudo aquilo que significa, para nós, o afeto sem medida exata.”
Publicado originalmente no Jornal Meio Norte, em 04.10.2015