Corujas, tetéus, casacas e outros bichos
Por Elmar Carvalho Em: 11/08/2017, às 05H12
Corujas, tetéus, casacas e outros bichos
Elmar Carvalho
No local onde nos últimos meses me hospedo em Parnaíba, tenho ainda uma bela visão, de paisagens próximas e de outras que vejo ao longe. Assim, vejo os grandes cata-ventos das usinas eólicas, que me fazem recordar os belos e quase bucólicos cata-ventos de minha meninice, e as dunas que outrora ornaram a Lagoa do Portinho... Disse “outrora ornaram” porque a lagoa já não existe, ou pelo menos já não existe em todo seu esplendor e glória.
Bem distante, como um debrum do céu, vejo uma nesga azulada do que deve ser uma serra. Pensei fosse a Serra Grande, a Serra da Ibiapaba, o que me faz lembrar os romances indígenas de Alencar, a viçosa e antiga Viçosa imperial, e as graciosas Tianguá e Ubajara, que conheci em minha adolescência, quando desejei morar nelas, para melhor lhes sentir as névoas e o frio, e dessa forma escrever friorentos e nevoentos poemas, cheios de distância e de brumas. Todavia, alguns dizem ser uma outra serra, menos imponente e mais perto, pertencente ao município de Luís Correia.
O local a que me refiro se presta a umas boas pedaladas. Por isso, resolvi adquirir uma bicicleta. Nesses passeios ciclísticos, vejo as ervas e as flores silvestres da terra ainda sem construções. E isso me faz recordar a minha adolescência, em que, algumas vezes, eu empreendia longos passeios pela periferia e arrabaldes de Campo Maior, tendo numa das vezes ido até a pequenina Serra Grande de Campo Maior ou Serra Azul, ou mais propriamente morros isolados de Santo Antônio do Surubim.
Fico contente de ainda saber manejar, com certo vigor e perícia, a “magrela” de várias marchas, tão diferente da minha velha e despojada Bristol ou Gulliver. A indefinição se deve ao fato de que o nome da marca já não era visto na época ou de que já se esvaiu na fragilidade da memória.
Quando estou a passear, vejo várias aves e algumas vezes desfruto do prazer de lhes ouvir o canto, quando paro de pedalar para melhor lhes apreciar o gorjeio. Vejo e ouço o bem-te-vi com a sua emblemática admoestação ou advertência: bem te vi!; os pernaltas e ariscos tetéus, que logo se afastam ou alçam voo, enquanto alardeiam o suposto perigo com as suas metálicas trombetas de alarme.
Os casacas também marcam sua presença, como aladas notas musicais vivas, pousadas sobre as paralelas da partitura dos fios elétricos, para retomar uma metáfora de um meu antigo poema. Há os casacas-de-couro, de sóbria plumagem amarronzada e uniforme, como se vestissem um gibão de couro dos nossos indômitos vaqueiros, de que, creio, lhes adveio o nome. E há os casacas-de-peito-vermelho, elegantes e belos, como se trajassem um colete vermelho por baixo do paletó negro das asas. Não há negar, são flamenguistas ostensivos e aguerridos.
Nessas andanças vejo ao longe, em revoada, a magnífica coreografia dos urubus, que circulando se vão afastando, em sincronizado movimento de rotação e translação. E numa das vezes flagrei, de maneira para mim inusitada, dois exemplares dessas aves de rapina a fazerem amor, no cocuruto do telhado de uma das casas. Disse “fazer amor” porque o casal não se bicava e nem se espezinhava, antes se cheiravam e se acolhiam e se agasalhavam. Pensei que os urubus faziam isso entre as gazas das nuvens do poeta, em verdadeiras pulutricas e acrobacias aéreas, como autênticos e literais nefelibatas.
Mas principalmente encontro, nesses périplos de boas pedaladas, as circunspectas corujas, encarapitadas em postes ou em montes de pedras, ou simplesmente postadas no descampado. Olham-me com desconfiança, com seus olhos argutos, de pupilas arregaladas. Às vezes fogem. Outras vezes permanecem no mesmo lugar, mas ariscas, em estado de vigília e defesa.
Elas me fazem recordar os caburés dos áridos tabuleiros de minha terra, e o caburé com frio do poema dacostiano, piando, piando, contudo sem folhas lívidas cantando... Também recordo as corujas esculpidas da coleção que aos poucos estou formando, de diferentes tamanhos e materiais. Muitos as consideram aves de mau presságio, mormente as rasga-mortalha, de dilacerante canto, que dizem antecipar acontecimentos funestos.
Em minha negra bicicleta, como um esdrúxulo centauro, tento lhes imitar o piado. Mas parece que o meu crocitar é muito canhestro, porque elas, do alto do poste em que se empoleiram, me olham com certo desdém, talvez por me acharem desafinado. Ou por entenderem que eu seja uma grande, desengonçada e feia coruja.
Porém, em certa ocasião, uma pousou tão perto de mim, que fiquei com a impressão de que ela me reconheceu ao menos como um primo pobre e distante, a quem ela não poderia dar muita confiança, a não ser em rápida e fugaz eventualidade.