[Flávio Bittencourt]
Conto bizarro de Carqueija
Aquela garota de olhos brilhantes.
"(...) — Parmenas [DETETIVE PARMENAS], meu velho! Venha participar! Estamos tendo uma grande discussão filosófica! (...)"
(A ESPALHAFATOSA DUQUESA MATILDA SKINNER [personagem inventada por M. Carqueija], CUJA PRESENÇA ALI, NAQUELA HORA, NÃO PARECIA PREFIGURAR BOA COISA]
UBALDO, O PARANÓICO,
personagem do imortal Henfil:
(http://www.comix.com.br/index.php?cPath=257_353)
"ESSE CONTO DE CARQUEIJA NÃO É INÉDITO: mandei e-mail a ele perguntando onde e quando a narrativa foi publicada pela primeira vez e aguardo o retorno 'eletrônico' do escritor carioca. Quando souber, avisarei, neste mesmo recont-canal, imediatamente"
(COLUNA "Recontando estórias do domínio público")
11.5.2011 - Há pessoas que adrede começam a se defender, engendrando estrategicamente escudos que imaginariamente as "blidam" de possíveis ataques futuros, que muitas vezes nem chegam a acontecer (o escudo passa a ter existência concreta, os tais ataques, ÀS VEZES, não...) - Aquela garota de olhos brilhantes, mais um brilhante e bizarro (bizarro, só no que se refere a seu "conteúdo", com o perdão da má palavra...) conto de Miguel Carqueija. (UM PERSONAGEM DE HENFIL ERA "Ubaldo, o paranóico") F. A. L. Bittencourt ([email protected])
AQUELA GAROTA DE OLHOS BRILHANTES
Miguel Carqueija
“Eis o que diz o Senhor: invoca-me, e te responderei, revelando-te grandes coisas misteriosas que ignoras.” (Jer 33,3)
Rugas de expressão se formaram na testa do Detetive Parmenas, quando ele se aproximou dos bancos do jardim e avistou a mulher gorda e de vestido berrante, sentada junto às samambaias. Conhecia a peça e sua presença no local não parecia prefigurar boa coisa.
Parmenas era um homem discreto e reservado e, com seu terno sóbrio, não era o tipo de pessoa que chamasse muita atenção. Perto dele, a espalhafatosa Duquesa Matilda Skinner representava um grande contraste. Havia outras pessoas sentadas em roda, sendo servidas por uma garçonete, e Matilda acenou vivamente para Parmenas, pedindo que se aproximasse.
— Parmenas, meu velho! Venha participar! Estamos tendo uma grande discussão filosófica!
E assim dizendo ela fez as apresentações. O Coronel Ivan Ismirnoff, a Doutora Érika Matheus III, Marina Castañeda, o casal Hardy e seu filho de doze anos, o senhor Galhano Torres, uma garota chamada Naira, o conhecido pintor Toshiro Yuzuke...
Parmenas já conhecia Ismirnoff, de uma missão detetivesca em Calisto. Eles se cumprimentaram amavelmente e em seguida o policial volveu o olhar para Naira. Enquanto o militar ostentava grossas papadas e já ultrapassara os setenta anos, a garota, com uma calça azul e os cabelos soltos, era a imagem da juventude. Parmenas focalizou aqueles olhos azuis brilhantes, e lembrou-se dela. Em algum lugar, no passado, encontrara aquela moça. Ela também o reconheceu, sorriu para ele.
Parecia a Parmenas que já a conhecia há muito, muito tempo. Mas isso era impossível, dada a mocidade de Naira. Parmenas lembrava-se vagamente de algum episódio nebuloso em que aquela moça aparecera, desempenhara algum papel importante... e se afastara de sua vida.
Érika era uma médica infectologista e sanitarista, e ficara conhecida, dez anos atrás, por sua intensa participação no Grande Mutirão da África, quando os conhecimentos obtidos no Projeto Genoma III foram pela primeira vez utilizados em escala continental para erradicar as terríveis enfermidades que devastavam aqueles povos. Pessoalmente era gorda, de olhos apertados sem ser asiática, com braços flácidos e rosto anódino.
Marina Castañeda por sua vez era uma moça alta e esguia, de olhar triste e pele azeitonada, aparentando uma calma sobre-humana. Vestia-se de forma simples, quase displicente. Era uma representante comercial, o que explicava a sua pobreza.
Já o casal Hardy era composto por um homem corpulento, bonachão e superficial, e uma mulher de gestos nervosos e sobrancelhas grossas, um penteado horrível, e portando um colar de pedras talvez preciosas. Eram empresários de mineração, burgueses típicos e um tipo humano muito difícil de encontrar em satélites-cidades. O garoto, Peter, parecia uma criança normal.
Galhano era um empresário artístico ligado a conjuntos de rock cósmico. No mais, um homem de terno, cara quadrada à Dick Tracy, um cigarro nervoso entre os dedos, um dos quais ostentava um anel de formatura, de ouro. Um homem de talvez 40 anos, bastante vigoroso.
Quanto a Toshiro, era magro, elétrico, gaiato, contador de anedotas nem sempre engraçadas. Para Parmenas seus quadros eram simplesmente teratológicos, cheios de tornados, tsunamis, abismos, naves espaciais em chamas e até dragões cuspidores de fogo.
Toshiro tivera uma infância terrivelmente pobre e desenvolvera uma personalidade ferina, misógina e sinistra, sorumbática, além de irreverente; era uma figura discutida e polêmica, de caráter contraditório.
Foi ele, em suma, quem introduziu Parmenas na discussão:
— Nós estamos discutindo algo realmente sério: a liceidade do ato de matar. O homicídio. O senhor, que é policial, nos diga: em que circunstâncias o assassinato deixa de ser lícito?
— Como assim? — Parmenas admirou-se. — O assassinato nunca é lícito. É sempre um crime.
— Mesmo a legítima defesa? — Eugene Compostella Hardy agitou-se. — A lei reconhece...
— Matar em legítima defesa não é assassinar — apressou-se Parmenas a corrigir. — O termo “assassinato” já pressupõe a intenção criminosa.
— Querido, você não vai contar o que nós constatamos? — disse Sylvie.
— Ah, sim, senão ele não vai entender nada! — e Compostella riu às gargalhadas, aparentemente sem motivo algum.
— Francamente, acho de mau gosto lembrarmos isto... — frisou Galhano Torres.
. Parmenas Sandoval não estava entendendo “lhufas” do que se dizia. Percorrendo os demais com o olhar, ele que se sentara em frente à matrona que o chamara — os bancos rodeavam uma mesa de ferro, fixa — constatou que Marina mantinha o olhar baixo e as mãos no colo, a esquerda aberta sobre a direita, apertava os pés um no outro, parecia aflita, enquanto Naira sustentava uma atenção de coruja a tudo o que se falava.
E foi nesse ponto que ela interferiu:
— Por que, Senhor Galhano? Somente o Sr. Parmenas ainda não está a par das coincidências que nós constatamos... e é bom que ele fique a par.
— Espicaçou a minha curiosidade — admitiu Parmenas, abrindo a sua caixinha de rapé e cheirando uma pitada. — Quero saber que coincidências são essas.
— Muito simples — disse a duquesa. — Há cinco anos atrás ocorreu uma festa de gala no Rio de Janeiro, e nessa festa estiveram presentes todos os que aqui se encontram.
— Isto seria incrível — disse Parmenas, espirrando. — Tem certeza disso?
— Na verdade — intrometeu-se Peter — essa garota não esteve — e indicou a Naira.
— Uma coincidência realmente extraordinária, reconheço.
Toshiro bateu com as palmas, sem motivo aparente, e acrescentou:
— É verdade, senhor “Sherlock”. Mas o mais extraordinário é que nessa festa ocorreu um crime de morte!
— Como diz? — Parmenas sentiu-se estranhamente inquieto.
— Isso mesmo! — e Toshiro deu um pulo ridículo, igualmente sem razão aparente. — Foi tudo gravado em holograma estereográfico! Você deve ter ouvido falar no assassinato de um homem de fama sinistra, um homem que espalhava ódio e despeito por onde passava...
— Quem?
— Jean-François Barjavel, em suma! — gritou Peter, apontando para o policial, como se este fosse o nomeado. — Você é um tira, deve estar a par disso!
Parmenas sentiu-se chocado. O caso tivera ampla repercussão na mídia. Afinal, Barjavel era um conhecido homem de negócios, um homem muito rico e até muito popular, apesar do que Toshiro havia dito. É possível ter muitos amigos e inimigos ao mesmo tempo, e isso é o que sucedia com ele. Várias vezes divorciado, execrado por filhos, homem de várias amantes e de aduladores fiéis, Barjavel elevara uns e arruinara outros; incursionara pela política e traficara influência, até provocar ódios inconciliáveis.
Entretanto um homem fôra preso e condenado pelo homicídio. Esse homem, Alarico, era um venezuelano radicado no Brasil, um pianista de medíocre carreira que um dia acreditara em Barjavel e fôra por este extremamente prejudicado. O tribunal aceitara a tese da acusação, de que o móvel do crime havia sido a vingança mesquinha. Alarico tentara o suicídio na prisão mas, tanto quanto Parmenas sabia, ainda continuava preso e assim permaneceria pelos próximos vinte e cinco anos. A Lei agira com grande severidade naquele caso, deixando uma esposa na miséria, com uma filha adolescente.
— E vocês todos estavam no local? — quis saber Parmenas, incrédulo.
Ivan anuiu, enquanto acendia o seu charuto:
— Eu falei com Barjavel pouco antes do crime. Foi uma coisa chocante.
— E todos... menos Naira... estavam lá? O que fazia cada um de vocês?
A robota-garçonete veio trazer os canapés encomendados e logo se afastou rodando; Parmenas serviu-se de um refresco de umbu e continuou escutando as explanações. Ivan, por ser seu amigo de longa data, tomou a frente das explicações:
— Os Hardy moravam no Rio na ocasião e freqüentavam o palacete flutuante de Gil Penafiel, o ministro que gostava de promover festas suntuosas. Gil era o ministro de finanças do Sul da América, e um dos homens de maior prestígio dos Países Unidos... antes que o deletassem, é claro.
— A política é uma areia movediça. Há! Há! Há! — expandiu-se Toshiro, com falta de educação. Ivan procurou ignorá-lo:
— Galhano, por sua vez, estava empresariando o conjunto Tapa-na-cara, que fazia grande sucesso em sua excursão pelo Brasil, e por isso foi convidado.
— Eu próprio e minha saudosa esposa éramos amigos de Gil, que habitualmente nos convidava.
— Toshiro foi convidado porque realizava uma exposição no Rio, estava na berlinda.
— A doutora dispensa apresentação, era Prêmio Nobel da Paz e não poderia ser esquecida, estando na cidade.
— Assim se explica a presença de todos nós — concluiu o coronel.
— E Marina?
Após fazer a pergunta, Parmenas percebeu que a jovem baixara o olhar. Da posição em que estava, pareceu ao detetive que a garota apresentava um ligeiro tremor nas mãos, além disso a sua testa porejava gotinhas de suor.
— Ah, amigo! Você é observador! Eu não conhecia a senhora Marina, e não me lembro dela na festa!
— Mas então...
— Eu me lembro dela — disse Peter. — Era bem diferente, e me deu um beijo! Nunca esqueci!
— Peter!
Era a mãe ralhando. Parmenas, que detestava esses patrulhamentos com que certos pais inibem seus filhos sem motivo razoável, interferiu:
— A senhora deve deixá-lo falar, ele só disse a verdade.
— Mas, detetive, eu sou a mãe dele! — falou ela com rispidez.
— Eu quero supor que estamos tratando de um assunto sério e que eu estou tentando entender o que houve, e o testemunho do menino é importante.
— Por que diz isso? — indagou Eugene, irritado. — O caso já foi esclarecido!
— Estamos discutindo intelectualmente a presença de quase todos aqui, na aludida festa. Mas e você, duquesa? Ninguém falou o seu nome!
Ivan voltou-se para ela:
— Não precisava nem mencioná-la. A Duquesa Matilde está em todas, difícil será encontrar um convescote da “high society” em que ela não esteja presente.
— Bobalhão! Exagerado! — berrou a duquesa.
— De qualquer forma — prosseguiu Eugene, entre risadas estúpidas — não resta a menor dúvida que o criminoso foi Alarico! Era de se esperar. Um sujeito sinistro, medíocre, cheio de ressentimento, e que revelou ali a sua face cruel e vingativa... a cadeia ainda é pouco para patifes dessa laia!
— Isto é mentira! Ele não matou ninguém!
Todos os olhares se voltaram para Marina. A jovem hispano-americana se ergueu de súbito, o olhar dardejando chispas de áscua, a sua fisionomia repentinamente alterada pela cólera.
— Que deu em você? — disse Toshiro, que até deixou cair uma empadinha de legumes.
— Senhor Parmenas, sei que o senhor é da polícia. E antes que esse salafrário diga mais sandices, quero que o senhor saiba que meu pai é inocente e eu tenho comigo a prova que incriminará o verdadeiro culpado!
Vários dos circunstantes falaram ao mesmo tempo, e Parmenas fez o possível para fazer baixar o tumulto. Então Naira, que até então se conservara calada, observou taxativamente:
— Escutem com atenção o que ela tem a dizer.
Marina fitou-a meio espantada, e às várias perguntas e observações de curiosidade (Galhano, os Hardy, Toshiro, Matilda) esclareceu:
— Sim, Alarico Mendes é meu pai. A sua condenação colocou mamãe e eu na miséria, e até hoje lutamos com muita dificuldade para sobreviver. Detetive Parmenas, eu estou com o holograma multi-plano que mostra o crime e a sua cuidadosa análise mostra que meu pai é inocente, e mostra também o culpado, que por sinal está aqui presente.
Parmenas olhou-a com admiração mas não pôde deixar de olhar também para aquela outra garota, a Naira, que estava ao lado da primeira; e os olhos daquela Naira pareciam mais brilhantes do que nunca.
Toshiro, num gesto vulgar, veio dar um tapinha no ombro de Parmenas;
— É, meu chapa! De vez em quando a gente depara com chantagistas... ainda mais eu, que desperto invejas pelo meu talento... mas asseguro que essa guria não vai conseguir nada, a não ser um bom processo por calúnia...
Naira deu um passo á frente, até encostar na mesa:
— Senhor Toshiro, vou pedir que não tumultue o assunto. Ninguém o acusou, portanto o senhor ainda não precisa se declarar inocente. Não seja exibicionista.
— O que é que você tem com isso?
— Senhor Toshiro! — Parmenas foi enfático e severo. — Permita que eu conduza esse assunto!
— Está bem, meu camaradinha...
— Basta! A senhora pretende passar o holo-estereográfico?
— É claro — respondeu Marina.
— Mas como sabia que nos encontraria aqui? — indagou Ivan, perplexo.
— É simples. Eu apenas segui a pista do criminoso. Jamais imaginaria que o acaso iria reunir outros integrantes da festa.
— Deduzo — disse Galhano — que você não está usando o sobrenome de seu pai.
— É claro que não. Papai é Mendes, eu troquei de sobrenome para não ter mais problemas... ou você achava que ter um pai trancafiado como assassino perigoso iria me facilitar a vida nos próximos anos?
O coronel, homem prático à maneira militar, observou:
— Teremos meio, aqui, de passar o holograma?
— Eu tenho — falou Naira.
Houve um espanto geral e, às várias observações, a garota apenas explicou com frieza:
— Um desses novos aparelhos portáteis e desdobráveis. Está aqui, na minha mochila.
Ato contínuo ela foi retirando o objeto e montando-o sobre a mesa.
— Vocês duas já se conheciam? — indagou Parmenas, admirado.
— Eu nunca vi essa menina antes — admitiu Marina, que parecia tão espantada quanto os demais.
Parmenas achegou-se à pequena, enquanto ela ainda calibrava o aparelho, e confidenciou-lhe:
— Diga... você e eu já nos vimos antes, não é mesmo?
Ela sorriu, mostrando lindos caninos e incisivos:
— É possível, Parmenas. Nós sempre encontramos muita gente no mundo.
— Quem é você, afinal?
— Isso agora não é importante. Realmente importante é livrar um inocente da cadeia.
Parmenas observou a destreza da garota e recordou aqueles acontecimentos do passado, que tanta repercussão haviam provocado.
Barjavel fôra apunhalado. A arma assassina atravessara sua pleura, seu pulmão esquerdo, e penetrara no coração. Durante o julgamento o holograma apresentado tinha sido exaustivamente analisado quadro-a-quadro e, apesar do ajuntamento, Alarico acabara sendo condenado porque a referida análise mostrava uma grande possibilidade de ter sido ele o assassino. Aliás, Alarico minutos antes batera boca com a vítima, e quase havia ocorrido uma cena de pugilato, apenas evitada pela habitual turma do deixa-disso.
Afinal Naira aprontou o projetor e observou:
— Para obtermos uma visão ideal devemos projetar sobre um fundo mais escuro... como aquela cerca viva que tem mais adiante. Sugiro que a gente se desloque para lá.
— Se me permite, eu levarei o conjunto aparelho-filme.
— Pois não, Senhor Parmenas.
O detetive, no íntimo, temia algum atentado que visasse destruir a alegada prova. Mas ninguém ousou fazer nada e logo o pessoal todo se encontrava diante da escura cerca viva. Parmenas, então, novamente se dirigiu à estranha garota:
— Pois bem, Naira. Você conhece o aparelho, faça a projeção.
— É pra já.
Parmenas era um “expert” nesses aparelhos. Enquanto o ajustava na mesa também transportada, buscava ao menos identificar a origem racial de Naira. Diferentemente de quase todos os presentes, ela falava o Inglês Planetário com desenvoltura e sem qualquer sotaque reconhecível; mas a morenice da garota não dava a entender que fosse inglesa, australiana ou norte-americana.
Yuzuke se aproximou:
— Vamos lá, irmão! Mostre a famosa cena do crime!
Assim dizendo ele deu um suposto tapa amistoso no ombro direito de Parmenas, no momento em que este tentava fixar o quadripé. O suporte desequilibrou-se e o hologramógrafo voou longe, arrancando um grito angustiado de Marina; porém Naira, que por mero acaso (?) se encontrava bem em frente, apanhou o objeto com a classe de uma goleira.
Eugene Hardy segurou o japonês pelos ombros e sacudiu-o:
— Começo a achar que você é o assassino! Por que fez isso?
— Eu não tive a intenção, eu juro!
— Basta — disse Naira. — Senhor Parmenas, vou em frente.
Parmenas estava com a pulga atrás da orelha, mas passou o conjunto para a moça, que iniciou a projeção.
A filmagem mostrava o bafafá entre os dois convivas, a intervenção da “turma do deixa-disso” e, em seguida, Alarico voltando, como se houvesse esquecido alguma coisa, e quase roçando com a vítima; falou-lhe alguma coisa e se afastou empurrando as pessoas. O próprio Galhano fôra empurrado.
— Onde é que nós chegamos? — perguntou a Duquesa Matilda. — Esse é o mesmíssimo holograma mostrado durante o julgamento que condenou o Alarico Mendes! Lembro muito bem da mendacidade com que ele negava o óbvio... desculpe, menina, ele é seu pai, mas vamos enxergar a verdade...
— Aí é que está, Duquesa. A verdade se encontra nesse holograma, só que ninguém soube vê-la. Mas eu a vi. E vou mostrar a vocês.
— Menina, o quadro-a-quadro foi exibido no julgamento.
— Mas não foi acertadamente analisado. Vou provar a vocês.
Ela pôs-se a manipular o hologramógrafo, fazendo retroceder a cena até a discussão entre os dois homens e um empurrão mútuo. Algumas pessoas interferiram, evitando uma luta corporal.
— Reparem bem — observou a jovem — o senhor Galhano, o senhor Hardy, a Doutora Érica, o coronel e o senhor Toshiro estavam em volta e impediram que houvesse pancadaria. O meu pai se afasta. Quando ele voltou foi porque não resistiu em falar “Isso não vai ficar assim, canalha!” a Barjavel. Logo em seguida o senhor Barjavel caiu.
— Mas vejam, Barjavel foi apunhalado pelas costas. Embora o ajuntamento impeça ver o golpe, ao se afastar meu pai teria uma fração de segundo para se voltar e esfaquear o outro. E teria de ser um golpe enviesado, esquisito, na fração de segundo em que seu corpo foi totalmente ocultado pelos do pintor e do senhor Galhano. Mas o exame anatômico diz que o punhal entrou pelos músculos costais em ângulo de 90 graus e não de 45 graus, digamos.
— O que você quer dizer com isso? – cobrou Parmenas.
— O senhor é detetive e lida com a ciência da investigação. Veja, momentos antes... recuarei um pouco... quem aparece justamente atrás de Jean-François Barjavel. Olhem bem.
Todos olharam — e todos viram a figura de elevada estatura do Coronel Ismirnoff, falando qualquer coisa rápida e fazendo algum gesto quase totalmente oculto, aparentemente um afago conciliatório do tipo “Calma, não esquente a cabeça!”.
Marina congelou rapidamente o holofotograma:
— Vejam, a vítima faz um esgar de dor ou incômodo. A lâmina de aço atravessou rapidamente os tecidos epiteliais e musculares, entre as costelas, e penetrou no pulmão esquerdo. Para o coronel, que vinha pelo lado direito das costas de Barjavel, era fácil fazer isso. Para meu pai é que não. O coronel é destro, meu pai idem. Só que papai passou pelo lado esquerdo de Barjavel e não cruzou as suas costas, afastou-se para a direita. Jamais conseguiria apunhalar daquele jeito, com a mão esquerda e enviesada ainda por cima.
— Ora, que absurdo! — exclamou Eugene Hardy, porém o seu filho manifestou outro parecer:
— Absurdo nada, pai! Ela mostrou por A mais B! Esse homem é o assassino!
— Peter! Não diga uma coisa dessas do Coronel! — berrou Sylvie, transtornada.
— Parem! — gritou Parmenas, fazendo calar também ao pintor nipônico, que iniciara uma algaravia em sua própria língua, esquecendo-se de falar em inglês. — Coronel Ivan, o que o senhor tem a dizer sobre o caso?
O militar empalidecera horrivelmente e falou em tom raivoso:
— Eu posso processar esta moça. O holograma foi examinado pelo tribunal e ninguém o interpretou desse jeito.
A moça estava preparada para a objeção:
— Papai não pôde pagar advogado. Deram-lhe uma defensora pública incompetente ou desinteressada. O que o senhor esperava? A Justiça já tinha um bode expiatório ideal. Para que bulir com um militar de alta patente?
— Isto é uma calúnia, uma invencionice!
— Não é, e o senhor sabe disso.
Surpreendentemente já não era Marina quem falava. Era Naira. Ela se adiantou e se dirigiu ao coronel, e naquele momento o Detetive Parmenas, julgando delirar, teve a nítida impressão de avistar uma emanação luminosa naqueles olhos azuis:
— Coronel Ivan Ismirnoff, há uma velha história abafada. Sua filha Nena, que foi seduzida por Barjavel, envolveu-se com ele e por causa dele pôs fim à vida. Naquele dia o senhor se vingou. E embora julgasse nobre a sua vingança, o senhor perdeu toda a nobreza quando permitiu que um inocente e sua família pagassem pelo crime. O senhor já é um homem velho, coronel. Vai levar isso para a sepultura? Em cada noite de insônia, Deus o está cobrando pelo seu crime.
A cena era tão solene que todos estacaram, como paralisados. Parmenas, perplexo, esperava até que Ivan estapeasse a atrevida pequena; ao invés ele se pôs a tremer convulsivamente, a fisionomia derreada, e com voz profundamente aflita exclamou em voz bem alta, como se precisasse desabafar:
— Como você sabe? Como sabe das minhas noites de insônia, relembrando aquele fato terrível? O que diz é verdade. Eu matei Barjavel naquele dia. Foi como esmagar um verme...
— Talvez, coronel. Não discuto que Barjavel não prestava. Mas e o homem inocente que está apodrecendo na prisão? E a sua esposa? E a sua filha aqui presente? Para se desforrar de um homem culpado o senhor destruiu três vidas inocentes!
— Você tem toda a razão. Eu peço perdão a todos. Soltem Alarico. Eu confesso tudo, fui eu o culpado. Barjavel não reagiu de imediato ao fio da lâmina, que era muito fina. Foi por isso que se passaram vários segundos antes que ele se sentisse mal e eu já tinha me afastado. Esse fenômeno às vezes acontece, você é esfaqueado e não percebe de pronto. Foi isso que me salvou da acusação naquele dia fatídico.
Ismirnoff levou a mão ao peito, o rosto contraído num repentino ricto de dor. Ao tombar para a frente, Parmenas o amparou.
— Doutora Érica, me ajude, por favor!
Poucas horas depois Ismirnoff morria num hospital, tendo antes assinado a sua confissão.
Após as providências tumultuosas que se seguiram e os cumprimentos a Marina, com as demais pessoas dispersas, tanto a venezuelana quanto Parmenas procuraram por Naira e não a encontraram em parte alguma. E nem acharam qualquer registro de sua passagem nos hotéis e companhias de navegação cósmica.
Parmenas resolveu acompanhar Marina à Terra, para providenciar a libertação de Alarico. Ao se acomodarem no ônibus espacial, o detetive ainda observou:
— Que será ela, afinal?
Marina assumiu um ar sonhador;
— Quem sabe a reencontramos algum dia? Um raio de luz fugaz pode aparecer em qualquer lugar!